Uma série de reportagens especiais do Estadão revelou como o PCC e o Comando Vermelho (CV), as duas maiores organizações criminosas do Brasil, e as milícias se infiltraram no poder público e na política de cidades nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, e como operaram para influenciar as eleições municipais de 2024.
Garage of one of the bus companies investigated for alleged association with PCC. (Courtesy)
A equipe de repórteres investigativos apurou, entre outras coisas, como a prefeitura de São Paulo pagou R$ 827 milhões a empresas de ônibus investigadas pela polícia por ligação com o PCC e que o PRTB, partido que teve Pablo Marçal como candidato à prefeitura da capital paulista, chegou a ser comandado no estado de São Paulo por um indiciado por associação com o grupo criminoso pela polícia paulista.
“Uma fonte falou isso para mim e eu compartilho dessa ideia: hoje, o Brasil está mais perto de se tornar um narco-estado do que de conseguir limpar a corrupção e o envolvimento de crime organizado no setor público”, disse o repórter do Estadão Heitor Mazzoco à LatAm Journalism Review (LJR). “Eu me surpreendi muito com a atuação silenciosa e a infiltração na política. Quando eles passam a operar assim não é mais um grupo de criminosos, é a máfia”.
A série do Estadão começou a ser desenhada em novembro de 2023 com um pedido da chefia de reportagem para investigar a relação entre o crime organizado e as eleições municipais. Sem tantas evidências concretas num primeiro momento, o pontapé inicial foi a partir de documentos obtidos com exclusividade pela equipe de reportagem. O dossiê mostrava uma investigação da polícia e do Ministério Público sobre a infiltração do PCC em empresas de transporte público da cidade de São Paulo.
“É impactante. Estamos falando da maior cidade do Brasil, uma das maiores do mundo. O que se sabia, até por apuração nossa, é que havia infiltração em cidades menores, fora do holofote. É chocante pelo fato de ser uma cidade com visibilidade”, disse Mazzoco.
Depois dessa primeira descoberta, a apuração se desdobrou para as outras regiões do país. Os repórteres mostraram como Bahia e Ceará sofrem com a influência do CV e da milícia, e o Rio de Janeiro com a atuação da milícia. No caso do Ceará, a reportagem mostrou que investigações da Delegacia de Combate às Ações Criminosas Organizadas (Draco), da Polícia Civil do estado, identificaram que o Comando Vermelho não apenas financiou candidatos nas eleições municipais de 2020, mas também impôs restrições políticas.
O objetivo da série era entender como essas facções criminosas influenciavam a política local e como isso poderia impactar as eleições. No total, foram publicadas 12 matérias dentro do especial ao longo de 2024, que foi o vencedor da categoria principal do prêmio de jornalismo do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa em novembro do ano passado.
“Acho que o grande mérito dessa série foi deixar de ver isso [a infiltração do crime organizado] como um problema pontual e passar a ver como um problema do sistema, como algo que estava pondo em risco o Estado. A gente espera que o Estado seja feito para a garantia do bem-estar comum e isso estava sendo completamente desvirtuado pela ação mafiosa dessas organizações”, disse o repórter do Estadão Marcelo Godoy à LJR. “A ideia foi mostrar para as pessoas que essa convivência com o crime organizado não causa mais escândalo. As pessoas perderam a capacidade de se escandalizar, né?”
Os repórteres tiveram acesso a inquéritos sigilosos sobre o PCC por meio de fontes no Ministério Público e na Polícia Civil. A equipe analisou cerca de 15 processos judiciais, inclusive os que estavam sob sigilo, buscando evidências de ligações entre candidatos e facções criminosas. Foram usados métodos manuais para cruzar informações, sem o auxílio de ferramentas automatizadas, além da ajuda de fontes para acessar o que estava em segredo de Justiça. No caso do PRTB, a equipe descobriu as informações preliminares sobre as suspeitas envolvendo a sigla a partir de uma série de documentos que foram entregues na redação por uma fonte anônima.
“Eu pensei que a série teria duas semanas de publicações, mas durou meses. Com a visibilidade que as reportagens ganharam, começaram a aparecer informações de fontes anônimas. Eu recebi um pacote na redação com uma série de documentos sobre a questão do PRTB. Pedi para o Godoy me ajudar, apuramos e as informações estavam corretas”, contou Mazzoco.
The special report won in the main category of the journalism award from the Institute for Reform of State-Business Relations in November 2024. (Courtesy of
No Rio de Janeiro, a reportagem mostrou como a milícia vem usando a estratégia de lançar a candidatura de familiares para manter sua influência em diferentes partes do estado ao longo dos anos. A apuração começou com um levantamento inicial de candidatos que foram investigados pelo Ministério Público e pela Polícia Civil do Rio por ligações com a milícia. Também foi feito um cruzamento de dados com o Divulgacand, a base de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para mapear as relações entre esses candidatos e as lideranças ou nomes conhecidos do crime.
“Para mim, o principal desafio desta reportagem foi contar uma história sobre a milícia, morando no Rio de Janeiro. Eu fiquei com um pouco de receio de trabalhar com o tema ainda mais em período eleitoral, quando havia muito acirramento ideológico”, disse o repórter do Estadão Rayanderson Guerra à LJR. “Outra questão foi fazer o outro lado com essas pessoas. Muitas vezes eles não querem falar, ou desviam do assunto, então normalmente a gente não consegue uma resposta clara de quem é citado na matéria”, completou.
Apesar da influência das organizações criminosas ser evidente no estado do Rio, o número de candidatos eleitos com esses laços é relativamente baixo, de acordo com Guerra. Porém, o impacto da infiltração de criminosos na política em comunidades locais é significativo na medida em que limita a democracia e influencia o fornecimento de serviços.
“Durante o processo eleitoral no Rio, muitos bairros e muitas comunidades são cerceadas de poder ter uma escolha democrática do voto. São candidatos pré-escolhidos por grupos criminosos e somente eles podem fazer campanha naquelas regiões. Isso impacta diretamente no voto da pessoa”, disse Guerra.
Os repórteres pretendem agora acompanhar os desdobramentos das investigações que basearam a série investigativa e também monitorar as próximas eleições, apesar da expectativa ser de que essas movimentações aconteçam mais frequentemente em pleitos municipais. “Se o PCC conseguir eleger um deputado terá apenas um entre 513 parlamentares. É muito mais interessante para seus integrantes ter acesso às Câmaras Municipais, onde são discutidos os contratos da coleta de lixo e as regras do transporte público e do uso e ocupação do solo”, disse o promotor Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial e Repressão do Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo, ao Estadão.