Levar livros a pessoas que não tinham possibilidade de acessá-los devido à situação econômica da Nicarágua tornou-se a missão de vida da jornalista Fabiola Tercero. Tudo começou em 2017 quando, durante sua recuperação após uma cirurgia, ela sorteou seus próprios livros por meio de suas redes sociais como o Facebook.
Quando seus livros acabaram, Tercero pediu doações e viu na troca de livros mais uma forma de incentivar a leitura. 'O conhecimento deve circular', disse ela à revista Literal em 2021, quando estava retomando seu projeto após superar a pandemia de Covid-19.
O projeto cresceu até se tornar formalmente “El Rincón de Fabi”' (O Cantinho da Fabi'), um espaço cultural de troca de livros e promoção da leitura. De acordo com os próprios registros de Tercero, em 2023, ela doou mais de mil livros e realizou pelo menos 10 atividades de empréstimo e troca.
Além de promover a leitura, Tercero sempre se definiu como uma jornalista feminista, que defendia a igualdade de gênero e a diversidade sexual, disse à LatAm Journalism Review (LJR) Víctor Manuel Herrera, diretor da organização Jornalistas e Comunicadores Independentes da Nicarágua (PCIN, na sigla em espanhol).
Ela trabalhou no jornal Hoy e no 100% Noticias, onde foi apresentadora. Quando começou a perceber como o jornalismo estava se tornando um inimigo do regime de Daniel Ortega, decidiu diminuir sua visibilidade, principalmente porque não poderia deixar a Nicarágua devido ao estado de saúde de sua mãe, disse Herrera.
De faqto, o 100% Noticias foi um dos veículos mais atacados por Ortega. Em dezembro de 2018, seus diretores e fundadores Lucía Pineda e Miguel Mora foram presos, acusados, entre outros crimes, de “promover e incitar ao ódio e à violência”. Eles foram libertados em 11 de junho de 2019, depois de passar seis meses na prisão, enquanto a sede do canal foi invadida em 21 de dezembro de 2018 e posteriormente convertida emum centro de reabilitação.
Tercero passava os dias promovendo a leitura e defendendo questões como feminismo e igualdade de gênero, até que em 12 de julho de 2024 a Polícia Nacional invadiu sua casa, em circunstâncias ainda não esclarecidas, após as quais Tercero desapareceu.
A jornalista Fabiola Tercero segura um livro, uma das causas de sua vida (Foto: Cortesia PCIN)
Sete meses após seu “desaparecimento forçado”, como o descreveram organizações como a PCIN, seus colegas continuam a pedir informações sobre o seu paradeiro e estado de saúde.
“Estamos fazendo todo o possível para manter o caso da Fabíola em evidência. Sabemos que é uma realidade que qualquer coisa que dissermos pode representar uma dificuldade [para Tercero]”, disse Herrera. “Sabemos que ela é uma pessoa forte e em diversas ocasiões nos disse: 'Se um dia me colocarem na prisão, lembrem-se que nunca devem se calar por minha causa. Continuem lutando e insistindo para que isso mude'. Por causa dessa convicção continuamos a levantar a voz por Fabiola”.
Desde seu desaparecimento, a Rede Centro-Americana de Jornalistas (RCP, na sigla em espanhol) também acompanha o caso e insiste na necessidade de pressionar a Nicarágua para que forneça informações sobre a situação de Tercero.
“No caso de Fabiola Tercero, infelizmente, continuamos em situação de desaparecimento sem ter a confirmação de prisão por parte do Estado nicaraguense, o que também não podemos descartar. E esse é um ponto bastante crítico porque estamos falando de uma jornalista que também defendeu a questão da perspectiva de gênero, do feminismo e dos direitos das mulheres nicaraguenses”, disse Angélica Cárcamo, diretora da RPC, à LJR.
Cárcamo disse que a pressão da comunidade internacional sobre a Nicarágua deve ser mais forte para pelo menos obter informações.
“A Nicarágua continua a criar um regime que avançou rapidamente, que continua a se deteriorar porque a comunidade internacional não agiu com rigidez suficiente para poder gerar um impacto mínimo e pelo menos ter acesso à informação sobre o que está acontecendo”, disse ela.
Talvez uma das perguntas mais frequentes seja por qual razão uma jornalista dedicada à promoção da literatura poderia representar uma ameaça ao governo Ortega.
“Acho que o que está acontecendo é um ataque à consciência crítica”, disse Cárcamo. “O que o regime pretende é minimizar qualquer expressão por parte de cidadãos que possam potencialmente se organizar”.
Cárcamo vê a leitura como uma forma de criar aquela consciência crítica que o governo Ortega-Murillo teme.
Uma análise com a qual concorda Fabiola León, pesquisadora para a América Latina da Repórteres Sem Fronteiras (RSF). “El Rincón de Fabi tinha um compromisso com a leitura, e sob o regime isso se torna crime”, disse ela à LJR.
Além da preocupação com Tercero, as organizações também se unem ao apelo para exigir a libertação de outros dois colegas, Leo Cárcamo e Elsbeth D'Anda, que foram presos no final de 2024 por acusações ainda não esclarecidas.
Leo Cárcamo foi preso em 23 de novembro quando patrulhas policiais invadiram sua casa sem apresentar ordem judicial, publicou a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (Rele) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh). Cárcamo havia sido preso em 2019 por trabalhar em uma estação de rádio local, mas estava aposentado no momento de sua recente prisão.
Segundo organizações como PCIN e RCP, a maior preocupação com Cárcamo tem a ver com seu estado de saúde devido a doenças crônicas.
“Tivemos informações de que em alguns momentos ele teve crises de saúde que poderiam colocar em risco sua integridade física”, disse Angélica Cárcamo, da RCP.
Em 6 de janeiro de 2025, a Corte Interamericana ordenou ao Estado da Nicarágua que libertasse Cárcamo imediatamente.
A prisão de Elsbeth D'Anda ocorreu no dia 27 de outubro, depois que a comunicadora falou em seu programa no Canal 23 sobre o aumento dos preços dos produtos básicos. Ao menos 20 agentes chegaram à sua casa sem ordem judicial, confiscaram equipamentos eletrônicos e a transferiram para a Diretoria de Assistência Judiciária 'El Chipote', informou a Rele.
Embora se saiba que Cárcamo e D'Anda estão sob poder do Estado, desconhece-se sua situação de saúde atual, bem como as acusações contra eles. Segundo Herrera, do PCIN, com a modificação da Lei Orgânica do Poder Judiciário, as autoridades têm até três meses para abrir uma ação criminal contra uma pessoa.
“Presumimos que essas pessoas serão processadas pela Lei do Crime Cibernético, lei 1.055, ou possivelmente serão banidas pela lei 1.049”, disse Herrera. “Estas são as leis que estão usando para todas as pessoas que se opõem à ditadura e basicamente uma é para processá-las e outra é para tirar sua nacionalidade e bani-las”.
Em acontecimentos mais recentes, em 10 de fevereiro, foi anunciada a prisão de Irving Guerrero, jornalista que dirigia um programa na Rádio La Cariñosa. Embora a Polícia o tenha detido sob a acusação de suposta posse ilegal de armas, a organização Alertas Libertad de Prensa Nicaragua denunciou que se tratava de uma retaliação pelo seu trabalho jornalístico, informou o 100% Noticias.