O presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, e alguns de seus aliados não parecem ter diminuído o tom das declarações contra o jornalismo crítico desde a eleição, no fim de outubro.
Apenas nos últimos dez dias no Twitter, Bolsonaro publicou ou retuitou dez posts com críticas ou afirmações deletérias sobre a imprensa tradicional. Já seu filho Carlos Bolsonaro, vereador no Rio de Janeiro e um dos principais nomes entre os aliados do presidente eleito, publicou ou retuitou no mesmo período 26 posts com conteúdo similar.
Alguns exemplos estão afirmações do filho de que parte da mídia é “podre” e “o ‘cancro’”, enquanto o pai afirmou que “a maior parte da imprensa ignora” o atentado que ele sofreu durante a campanha eleitoral e classificou “escarcéus propositais diários” a repercussão na imprensa de declarações de seus aliados sobre seu futuro governo.
Abrimos mão de sediar a Conferência Climática Mundial da ONU pois custaria mais de R$500 milhões ao Brasil e seria realizada em breve, o que poderia constranger o futuro governo a adotar posições que requerem um tempo maior de análise e estudo. O Estadão esnoba o bom jornalismo!
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) 15 de dezembro de 2018
A duas semanas da posse do novo governo, Bolsonaro também reverberou uma tentativa de deslegitimar a imprensa tradicional por meio de uma fraude de que foram alvo duas repórteres da Folha de S. Paulo.
A jornalista Patrícia Campos Mello tem sido alvo de xingamentos nas redes sociais e recebeu até ameaças de morte pela publicação, em outubro, de uma reportagem sobre como empresas estariam comprando disparos de mensagens no WhatsApp em favor do presidente eleito, uma violação da lei eleitoral brasileira.
No último sábado (14/12), dois meses depois da publicação que a colocou no radar dos apoiadores de Bolsonaro que agridem jornalistas nas redes, Campos Mello começou a receber mensagens de amigos e conhecidos sobre dois boatos sobre ela que estavam circulando nas redes sociais. O primeiro dizia que ela havia sido condenada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a pagar uma indenização a Bolsonaro pela reportagem de outubro e o segundo afirmava que ela havia recebido um prêmio da Folha como “Guardiã da Verdade”.
As duas mentiras partiram de dois perfis no Twitter que se dizem de “humor” e que emulam os perfis oficiais do STF, no primeiro caso, e de Mônica Bergamo, também jornalista e repórter da Folha, no segundo.
O tuíte sobre a falsa condenação foi publicado na noite do dia 13 e retuitado 855 vezes até o momento, mas também circulou como print no Twitter, no Facebook e no WhatsApp, o que leva Campos Mello a acreditar que tratam-se de milhares de compartilhamentos. “‘Ah, mas era uma sátira’, dizem. Mas as pessoas acreditaram que é verdade e me xingavam: ‘vai ter que pagar, v********’, ‘paga, petista de m****’”, contou ela ao Centro Knight.
A segunda mentira, publicada na manhã do dia 14, parece ser inspirada no fato de que Campos Mello foi citada pela Time na reportagem da revista sobre a homenagem aos jornalistas em sua edição especial que elege a “Pessoa do Ano”, publicada na semana passada. Os jornalistas foram os escolhidos pela revista, que os qualificou como “Guardiões da Verdade”.
Campos Mello diz que os xingamentos online vinham diminuindo desde outubro, quando uma ameaça de morte direcionada a ela e a seu filho de seis anos levaram a Folha a contratar um guarda-costas para acompanhá-la. Mas a homenagem da Time, repercutida por colegas e admiradores nas redes sociais, e as duas mentiras que começaram a circular no último fim de semana deram novo fôlego a detratores da repórter nas redes sociais.
Um dos boatos também serviu a uma campanha de descrédito da imprensa tradicional. Alguns jornalistas compartilharam o tuíte sobre o prêmio inexistente parabenizando Campos Mello, sem se dar conta de que se tratava de um perfil falso de Mônica Bergamo - a foto era a mesma do perfil original e o nome, “Mônica Bengamo”, muito semelhante ao nome da colunista da Folha. Prints dos tuítes de jornalistas que caíram na “pegadinha” foram compartilhados por diversos perfis, inclusive o do presidente eleito e o de seu filho Carlos.
“Isso logo virou um post ‘olha como a imprensa acredita em qualquer coisa’, e o próprio Bolsonaro retuitou. É algo que tem um método, apesar de parecer aleatório”, acredita Campos Mello.
Para ela, esta nova ofensiva está ligada à publicação no dia 13 de uma reportagem assinada por ela e por Arturo Rodrigues, seu colega na Folha, sobre a presença de bots e perfis falsos no Twitter dedicados a fazer posts de apoio ao presidente eleito. “Fazia muito tempo que não acontecia nada. De repente, no dia em que a gente faz a matéria, surge uma notícia falsa”, disse a jornalista.
Campos Mello lamenta que este seja “o novo normal” para jornalistas nas redes sociais. “Se houver novas ameaças eu vou denunciar, mas por enquanto só estão me chamando de filha da p*** e mandando eu me f****. É triste, mas acho que esse é o novo normal. É muito horrível porque é uma tentativa clara de intimidação: você faz uma matéria e meia hora depois os caras inventam uma mentira e começam a bombar isso. É assustador.”
A conta que propagou a mentira sobre o falso prêmio e que emulava o perfil da jornalista Mônica Bergamo foi suspensa pelo Twitter, mas já há um novo perfil nos mesmos moldes ativo na rede social. Campos Mello também afirma que já encontrou e denunciou dois perfis falsos imitando o seu, que foram retirados do ar. “É um jogo de gato e rato”, diz a repórter. Já a conta que emula o perfil oficial do STF continua na plataforma.
A assessoria de comunicação do Twitter explicou ao Centro Knight que qualquer usuário pode denunciar perfis e tuítes por violar as regras da plataforma. Estes casos são analisados e estão sujeitos “à aplicação das medidas cabíveis”, disse a empresa.
A pesquisadora Esther Solano, cientista social e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) tem estudado no último ano o eleitorado de Bolsonaro. “Uma característica dos eleitores de Bolsonaro é que eles têm uma enorme desconfiança da grande imprensa”, disse Solano ao Centro Knight. “Consideram que ela é politizada, partidária e que está perseguindo Bolsonaro, porque não querem ele [como presidente].”
Para a pesquisadora, os ataques à imprensa perpetrados pelo presidente eleito e por políticos em sua órbita são uma tentativa de “potencializar a desconfiança [de seus apoiadores] como estratégia de fazer política”.
Tal estratégia é “uma fotocópia” do que faz Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, desde 2016, lembrou a pesquisadora. “[Bolsonaro e filhos] estão copiando uma estratégia de ataque e demonização da grande imprensa, para que as pessoas não confiem nas informações” que vêm das mídias tradicionais, e de utilização das redes sociais, especialmente o Twitter, para se comunicar diretamente com seus apoiadores.
Utilizo minhas redes para ter comunicação direta com quem realmente manda neste país e fazer o possível para deixá-los por dentro do que acontece no dia a dia. Essa é a nova política apoiada pelos que anseiam por rumos melhores. Estamos apenas atendendo a esta nova demanda!
— Carlos Bolsonaro (@CarlosBolsonaro) 10 de dezembro de 2018
Em seu discurso de diplomação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no dia 10 de dezembro, Bolsonaro afirmou que “o poder popular não precisa mais de intermediação: as novas tecnologias permitiram uma relação direta entre o eleitor e seus representantes”. Essa frase chamou a atenção do jornalista e pesquisador Eugênio Bucci, professor da Universidade de São Paulo (USP).
Esta afirmação, junto com as críticas de Bolsonaro à imprensa tradicional, “são sinais de que ele vai querer atravessar o papel da imprensa e de outras instituições que fazem a mediação” entre os cidadãos e o poder público, disse Bucci ao Centro Knight.
No entanto, essa “relação direta” entre governantes e governados invocada por Bolsonaro não é tão inovadora quanto ele tenta fazer parecer: Napoleão Bonaparte já imprimia esse tom como imperador da França no século 19, observa o professor. “Isso não tem nada a ver com tecnologia, tem a ver com política”, sublinha.
“Vem daí a expressão ‘bonapartismo’ como uma forma de autoritarismo que se caracteriza exatamente por atravessar as mediações da institucionalidade de um Estado mais ou menos democrático”, explica o professor. “A tecnologia é uma ferramenta, uma facilitadora da comunicação, mas ela pode tanto servir para melhorar a mediação como para atravessar as instâncias de diálogo, de crítica, de questionamento e, principalmente, de contestação.”
Querer usar o Twitter para se comunicar com seus apoiadores não é um problema, ressalva Bucci. Mas a afirmação de que a intermediação não é mais necessária “pode ser lida também, considerando os sinais secundários, como uma certa predisposição a não responder a questionamentos”.
Ele observa que “política é mediação e intermediação”. “A democracia é resultado de diálogo, negociações, composições, regramentos para tratar as divergências. De tal maneira que, se não houver mediação, nem a política é possível e muito menos a democracia.”
Nesse contexto, o jornalismo crítico e independente tem um papel crucial a cumprir.
“O trabalho dos jornalistas agora deve ter atenção a esta exigência que a conjuntura apresenta”, avalia Bucci. “Eles estarão trabalhando para fiscalizar o Poder Executivo como sempre aconteceu, bem como os outros Poderes, mas em uma situação em que isso é ainda mais dramático como necessidade. A consciência desse lugar pode ajudar muito o trabalho da imprensa, e a imprensa nesse contexto precisa buscar todas as formas de pactuação com a sociedade.”