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'Capricho de governante' não deve ditar publicidade oficial na imprensa, diz relator da CIDH após declarações de Bolsonaro

O presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, reiterou nesta segunda-feira (29/10) que pretende retirar a publicidade contratada pelo governo federal do jornal Folha de S. Paulo e de veículos de imprensa que, segundo ele, estejam “mentindo descaradamente”.

Jair Bolsonaro (By Antonio Cruz/Agência Brasil [CC BY 3.0 br (https://creativecommons.org/licenses/by/3.0/br/deed.en)], via Wikimedia Commons)

Em resposta a estes comentários, Edison Lanza, relator especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), disse ao Centro Knight que a discriminação por parte do Estado segundo a linha editorial de cada meio de comunicação consiste em uma violação do direito à liberdade de expressão, segundo estabelece a Convenção Americana de Direitos Humanos. A distribuição de publicidade oficial em meios de comunicação deve obedecer a critérios objetivos, observou o relator.

Em entrevista no dia seguinte à sua eleição ao Jornal Nacional, da TV Globo, Bolsonaro se disse favorável à liberdade de imprensa, mas disse que “a questão da propaganda oficial do governo é uma outra coisa”.

Bolsonaro se referiu a duas reportagens da Folha sobre supostas irregularidades em sua atuação parlamentar e em sua campanha eleitoral. A mais recente, publicada em 18 de outubro, tratou de como empresas apoiadoras de Bolsonaro teriam comprado disparos em massa via WhatsApp de mensagens contra o PT, partido de Fernando Haddad, seu oponente no segundo turno.

Tal prática é ilegal, pois consistiria doação empresarial à campanha do candidato, o que é proibido no Brasil. A reportagem da Folha motivou a abertura de cinco ações no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contra Bolsonaro, movidas por partidos opositores, acusando-o de abuso de poder econômico, conforme reportou o site Jota.

Bolsonaro acusou a Folha de produzir “fake news” contra ele. “Logicamente que eu não posso considerar essa imprensa digna”, disse ao Jornal Nacional. “Não quero que ela acabe, mas no que depender de mim, na propaganda oficial do governo, imprensa que se comportar dessa maneira, mentindo descaradamente, não terá apoio do governo federal.”

Em editorial publicado nesta quarta-feira e intitulado “Acostume-se”, a Folha afirmou que “o eleito para servir à Constituição no cargo mais elevado sugere descumprir, uma vez empossado, o princípio constitucional da impessoalidade na administração”.

“Se mostra disposição para discriminar veículos da imprensa entre amigos e inimigos, que dirá quando os interesses em jogo tiverem mais vulto”, escreveu o jornal, acrescentando que “não depende de propaganda federal”, mas de seus leitores, anunciantes e “da reputação decantada ao longo de décadas de fidelidade ao cânone do jornalismo profissional”.

“Veículos como a Folha não deixarão de escrutinar o exercício do poder porque seus detentores de turno resolveram adotar a tática da intimidação. Jair Messias Bolsonaro não precisa aprender a lição. Basta que se acostume com o fato”, concluiu o jornal.

Lanza: discriminação de meios na publicidade oficial é recorrente na região

A publicidade oficial do governo federal e de empresas estatais como o Banco do Brasil, os Correios e a Eletrobras é uma das fontes de receita de meios de comunicação no Brasil. Em 2016, a Folha recebeu R$ 6,9 milhões referentes a estas peças publicitárias, segundo levantamento do site Poder360. No total, o governo federal naquele ano, liderado por Dilma Rousseff (PT) até agosto e depois por Michel Temer (MDB), investiu R$ 1,5 bilhão em publicidade oficial, dos quais R$ 78 milhões em jornais, R$ 46,9 milhões em revistas, R$ 182 milhões em sites na internet e R$ 976,4 milhões na TV aberta.

Em março de 2017, o governo de Michel Temer extinguiu o IAP (Instituto para Acompanhamento da Publicidade), órgão paraestatal que desde 1999 coletava e organizava os dados sobre a publicidade contratada pelo governo federal. De acordo com o Poder360, com a extinção do IAP passa a ser necessário “ler todos os Diários Oficiais e vasculhar em todos os balanços de mais de 100 empresas estatais para entender o que foi gasto – ainda assim, o resultado desse trabalho seria impreciso”, pois “os critérios de cada órgão para divulgar tais informações não são padronizados”.

Lanza observou que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seu artigo 13.3, estabelece que “além da censura, a supressão direta de uma mensagem, a liberdade de expressão pode ser violada por meio de medidas indiretas que, usando o poder legítimo do Estado, violem o direito à liberdade de expressão”.

Edison Lanza (Twitter)

Segundo ele, na América Latina isso acontece historicamente por meio do “tratamento discriminatório dos meios de comunicação”.

“O Estado não tem a obrigação de anunciar nos meios, de fato muitos países em determinado momento reduzem o investimento em publicidade oficial ou o restringem. Mas se o Estado continua anunciando e gastando com publicidade e o faz de forma discriminatória de acordo com a linha editorial do meio, apenas destinando publicidade aos meios que considera amigos ou dóceis ao governo, e retira a publicidade dos meios que considera críticos ou inimigos, é óbvio que há um tratamento discriminatório indireto para punir [os meios] pela expressão do pensamento”, disse Lanza.

Quando isso ocorre, trata-se de uma violação do direito à liberdade de expressão, o que aconteceu recentemente em países como Argentina nos governos Kirchner, no Equador no governo de Rafael Correa e na Venezuela nos governos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, afirmou o relator da CIDH.

“Esperamos que não aconteça [no Brasil], mas não seria novo. Deve haver critérios objetivos para distribuir a publicidade oficial, e não apenas o capricho de um governante”, disse Lanza.

A Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos estabeleceu critérios para a publicidade oficial, disse Lanza. Eles estão disponíveis no documento “Principios sobre regulación de la publicidad oficial y libertad de expresion” e devem estar vinculados “à audiência e ao alcance que tenham os meios de comunicação, ao público e ao objetivo que se queira alcançar, ao caráter da informação que se queira difundir”, enumerou Lanza.

“Também se deve recordar que existe o direito da sociedade à informação”, notou o relator. “A publicidade não deveria ser propaganda, mas sim cumprir uma função importante para que a população se inteire sobre seus direitos, as políticas públicas que desenvolve o governo, avisos ou questões que [a população] precisa tomar em conta, enfim, uma série de informações que as pessoas têm direito de receber e a forma mais prática de fazer isso é através dos meios de comunicação.”

Presidente eleito deve ter “prudência” em declarações sobre imprensa

Lanza observou que, a partir do momento em que foi eleito, Bolsonaro não é mais candidato, e portanto “deve falar como o Estado”, que “tem uma posição de garantir o exercício dos direitos, entre eles a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa”. “Obviamente que presidentes, ministros, pessoas que ocupam altos cargos públicos têm direito a se expressar e a imprensa não está isenta de críticas, mas quando se adota uma retórica de intimidação ou descrédito para minar a imprensa, isso gera efeitos.”

Agentes públicos têm um dever de “prudência” e “responsabilidade” ao se expressar “sobre temas que podem afetar jornalistas, a imprensa, os direitos humanos e setores da população”, disse o relator da CIDH. Isso porque “jornalistas e meios que são estigmatizados ficam em posição de vulnerabilidade [em relação a] possíveis ataques de fanáticos ou violência tanto online como física”, afirmou.

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) registrou 153 agressões em contexto político-eleitoral contra jornalistas desde o início do ano — 72 físicas e 81 digitais. Desde o início da campanha eleitoral, no dia 16 de agosto, foram 42 casos de intimidação, assédio e ameaças contra repórteres na cobertura das eleições.

A maioria destes ataques “é atribuída a partidários de Bolsonaro, enquanto o restante é atribuído a apoiadores do Partido dos Trabalhadores (PT)”, afirmou a Abraji em nota conjunta com outras organizações de defesa da liberdade de imprensa, publicada no dia 25 de outubro.

Lanza salientou que o problema da violência contra profissionais da imprensa não é novo no Brasil, que recentemente apareceu novamente no ranking anual do Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) dos países onde há mais impunidade em casos de assassinatos de jornalistas, ficando no 10o lugar.

“Nossa obrigação [da Relatoria] é recordar que o Brasil assinou tratados de direitos humanos, que tem uma Constituição que protege a liberdade de expressão e que isso gera obrigações para o Estado [brasileiro]”, disse Lanza.