Carlos Fernando Chamorro, da Nicarágua, foi forçado ao exílio. José Rubén Zamora Marroquín, na Guatemala, passou mais de dois anos na cadeia e segue em prisão domiciliar. E o meio digital El Faro teve que transferir seus setores administrativo e legal de El Salvador para a Costa Rica. Todos eles foram alvo de acusações similares dos governos de seus países, em uma aparente retaliação ao jornalismo investigativo pelo qual são internacionalmente reconhecidos.
Há uma tendência global de governos acusarem jornalistas e organizações de notícias de crimes financeiros como forma de silenciá-los, de acordo com um relatório da Unesco sobre o uso indevido de leis financeiras para pressionar meios jornalísticos, publicado no dia 23 de outubro. A América Central concentra a maioria dos casos na América Latina e no Caribe, diz o informe.
Os autores Edward Pittman e Elisa Juega analisaram mais de 120 casos ocorridos em todo o mundo entre 2005 e 2024. Eles destacaram que, como esse é um fenômeno relativamente novo e subnotificado, é provável que o número global de casos ocorridos nesse período seja maior.
Os últimos cinco anos concentram 60% dos casos analisados, o que indica um aumento acentuado no uso dessas acusações contra jornalistas, disse o relatório.
Os casos analisados dizem respeito a acusações de evasão fiscal, lavagem de dinheiro, extorsão, financiamento de terrorismo, fraude, desvio de fundos e até o recebimento de financiamento estrangeiro, algo criminalizado em alguns países.
O relatório observa que, diferentemente das acusações por difamação ou calúnia, não é preciso estabelecer uma conexão entre a acusação financeira e o conteúdo produzido pelo jornalista ou meio de comunicação. Isso possibilita esconder a real motivação da acusação.
“Quando se decide fazer o assédio aos jornalistas e ao jornalismo por meio desse tipo de prática, uma das consequências positivas para o assediador é que, à primeira vista, não se está discutindo a liberdade de expressão, já que supostamente se trata de um crime financeiro”, disse Guilherme Canela, chefe da seção da Unesco sobre Liberdade de Expressão e Segurança dos Jornalistas, à LatAm Journalism Review (LJR).
Canela disse que uma das hipóteses levantadas pela análise dos casos é que existe uma tendência global de substituição da censura direta, que seria processar um jornalista ou meio por algo que publicaram, pela censura indireta, por meio do uso de subterfúgios como a legislação fiscal e financeira.
O relatório afirma que enquanto ameaças, assassinatos e uso indevido do Judiciário são métodos para atacar jornalistas que podem ser usados por atores privados, as acusações de crimes financeiros são quase exclusivamente iniciadas por atores estatais.
“Em alguns países, o Poder Executivo pode instruir autoridades fiscais e outros órgãos a iniciar investigações diretamente, ignorando o sistema judicial”, disse o relatório.
O informe aponta que os processos derivados dessas acusações frequentemente resultam em longos períodos de prisão e multas vultuosas. Além disso, a defesa nesses casos é complexa, pois demanda advogados tributários e criminais, assim como especialistas em contabilidade e outros conhecimentos jurídicos, aos quais jornalistas não têm acesso fácil.
“Como a defesa contra acusações de crimes financeiros é normalmente complexa, o foco e os recursos dos jornalistas e/ou do meio de comunicação que enfrentam essas acusações são desviados da realização de seu trabalho jornalístico”, afirmou o relatório.
O informe registrou sete casos na América Latina e Caribe entre 2010 e 2023 e destacou que a maioria ocorreu na América Central. As outras regiões analisadas foram África (15 casos), Ásia e Pacífico (44) e Eurásia (60).
Cinco dos sete casos na América Latina foram iniciados a partir de 2021. Em três casos, jornalistas e meios de comunicação receberam múltiplas acusações. Lavagem de dinheiro foi a única ou principal acusação em cinco casos.
O relatório também apontou a América Central como uma das regiões onde “jornalistas recebem rotineiramente sentenças de prisão quando acusados de crimes financeiros”, o que implica em um “efeito inibidor” para jornalistas que investigam corrupção.
Outra consequência desse tipo de acusação é o congelamento dos bens do jornalista ou do meio acusado, levando à interrupção do trabalho do profissional ou das operações do meio. Trata-se de uma ação “muito eficaz” para censurar meios de comunicação, ainda que temporariamente, e que pode levar ao fechamento definitivo do meio, disse o relatório.
Foi o que aconteceu com El Periódico, na Guatemala. O jornal fundado e liderado por José Rubén Zamora Marroquín encerrou suas operações em maio de 2023, após quase 27 anos de existência. Zamora Marroquín foi preso em 29 de julho de 2022, acusado dos crimes de lavagem de dinheiro, tráfico de influência e chantagem. Funcionários do jornal foram acusados de participação nesses crimes, e outros jornalistas e colunistas foram acusados do crime de obstrução de justiça por publicar sobre o caso em El Periódico.
Para evitar o mesmo destino de El Periódico, em abril de 2023 o meio salvadorenho El Faro transferiu sua estrutura administrativa e legal para a Costa Rica.
“Nunca teríamos tomado essa decisão se este país não tivesse se tornado um lugar tão hostil e perigoso para se trabalhar”, disse Sergio Arauz, subchefe de redação de El Faro, à LJR. “É importante esclarecer que nós, jornalistas, continuamos a trabalhar em El Salvador, fazendo as matérias que caracterizam nosso meio de comunicação desde o seu nascimento, no terreno.”
Em setembro de 2020, o presidente salvadorenho, Nayib Bukele, anunciou em cadeia nacional de televisão e rádio que El Faro estava sendo investigado por lavagem de dinheiro. O meio afirmou que o Ministério da Fazenda estava auditando sua contabilidade e exigindo informações que não são de caráter tributário, como os dados pessoais de seus assinantes.
Outros ataques à imprensa crítica em El Salvador se seguiram. Em janeiro de 2022, uma investigação do Citizen Lab, um laboratório especializado em segurança cibernética da Universidade de Toronto, revelou que pelo menos 22 jornalistas de El Faro e outros oito de outros meios foram espionados com o software Pegasus. A empresa israelense NSO Group, que fabrica o software, alega vender a licença do programa apenas para governos. O governo salvadorenho negou a responsabilidade pela espionagem.
Um ponto positivo da mudança administrativa para a Costa Rica, segundo Arauz, é que isso acelerou várias ações de El Faro para se converter em um meio regional. Além de passar a contar com jornalistas na Guatemala, o meio digital realizou em junho uma edição do Fórum Centro-Americano de Jornalismo (Forocap) em San José, capital costarriquenha.
Entre os pontos negativos da mudança estão os custos, disse ele. “Continuamos a enfrentar as auditorias da Fazenda. O governo continua tentando nos sufocar e nos distrair de nosso trabalho. Em outras palavras: não fazemos apenas jornalismo, também temos que trabalhar para nos defender, cuidar de nós mesmos e sobreviver.”
Arauz disse que não existe no momento a possibilidade de El Faro transferir sua estrutura administrativa de volta para El Salvador.
“Um país sem democracia, independência de poderes e devido processo legal não é uma opção atraente. Além disso, o caminho que estamos trilhando como país não é um bom presságio para uma maior abertura ao exercício do jornalismo”, disse Arauz. “Temos como presidente um ditador que é muito popular nas pesquisas de opinião pública, cool, como ele mesmo diz. Mas no dia em que ele começar a se desgastar ou se tornar impopular, as poucas vozes críticas sofrerão as consequências.”
Na Nicarágua, o país com a situação mais crítica para jornalistas na região, o governo de Daniel Ortega vem intensificando a repressão a vozes críticas desde 2018. Centenas de pessoas foram presas e pelo menos 278 jornalistas foram forçados ao exílio nos últimos seis anos.
Carlos Fernando Chamorro é um dos jornalistas nicaraguenses que se viu obrigado a sair do país. A sede do Confidencial, meio que Chamorro fundou e dirige, foi invadida em dezembro de 2018 pela Policía Nacional e nunca foi devolvida. Posteriormente foi convertida pelo governo em um centro para mulheres grávidas.
Chamorro se exilou temporariamente na Costa Rica, mas voltou para a Nicarágua em novembro de 2019. A polícia invadiu a nova sede do Confidencial em maio de 2021 e, em junho, Chamorro anunciou que ele e sua esposa haviam deixado o país definitivamente após uma batida policial na casa deles e de alguns de seus familiares. Em agosto de 2021, o Ministério Público da Nicarágua informou que Chamorro estava sendo acusado dos crimes de lavagem, apropriação e retenção indevida e gestão abusiva de dinheiro, bens e ativos.
Canela disse que o que considera mais preocupante é que as acusações indevidas de crimes financeiros, além de silenciar jornalistas e meios de comunicação, também atacam a credibilidade, “o maior patrimônio do jornalismo”.
“Há uma intencionalidade muito clara de descredibilizar o jornalismo como instituição relevante para a democracia”, disse ele. “Se começa a haver uma série de casos em que você diz ‘estes jornalistas na verdade não pagam impostos, fazem lavagem de dinheiro, fazem evasão fiscal’, a frágil, infelizmente, conexão de credibilidade que existe da sociedade com jornalistas em particular e com o jornalismo como instituição ficará ainda mais frágil.”
Canela disse que a investida de alguns governos contra o jornalismo está dentro de um contexto de “ataque aos sistemas de freios e contrapesos da sociedade”, pois o jornalismo faz parte desse sistema ao investigar e exigir a prestação de contas do poder público à população.
“Quando um ator autoritário chega ao poder, em geral ele faz duas coisas simultaneamente: censura a imprensa e reduz a independência do Judiciário”, disse Canela. “Os atores autoritários não gostam nem de jornalistas independentes e nem de juízes independentes. Esse fenômeno que nós estamos vendo – e essa investigação [da Unesco] é uma parte desse quebra-cabeças – está apontando para isso.”