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Violência digital silencia jornalistas argentinas: coberturas sobre aborto e feminicídio são as que mais rendem ataques

“Não sei como é escrever sem ser violentada.”

Esse é o testemunho de uma jornalista argentina citada anonimamente em um novo estudo sobre a realidade que essas profissionais enfrentam no país latino-americano que mais avançou nos direitos das mulheres na última década. A cobertura desses avanços – a legalização do aborto e o combate à violência de gênero – é a que mais rende agressões online contra jornalistas argentinas.

Um estudo da Anistia Internacional publicado em outubro com mais de 400 jornalistas em toda a Argentina encontrou que quase dois terços (63,5%) foi vítima de algum tipo de violência digital nos últimos seis anos.

Mais da metade delas (57,4%) disse que a cobertura do direito ao aborto é a que mais motiva ataques online, seguida pelas coberturas de feminicídios e violência de gênero (47,3%) e direitos humanos (46,1%).

“Esses eventos não são aleatórios”, disse Lucila Galkin, diretora de Gênero e Diversidade da Anistia Argentina e coordenadora do estudo, à LatAm Journalism Review (LJR). “Há uma intenção de silenciar a cobertura de determinadas agendas temáticas que, de alguma forma, são fundamentais para o avanço dos direitos humanos em geral e dos direitos das mulheres e da diversidade em particular.”

As jornalistas relataram que os tipos de violência mais frequentes são agressões ou insultos isolados (98,3%), assédio ou trollagem (85,6%), assédio sexual ou ameaças de violência sexual (45,9%) e ameaças de violência física (44%).

A grande maioria (90%) das jornalistas disse ter sido atacada por contas anônimas com poucos seguidores, criadas especificamente para cometer o ataque, disse o relatório. Outras 27% disseram ter sido atacadas por “personalidades das redes”, que seriam usuários muito ativos e influentes. E 23% disseram ter sido atacadas em plataformas digitais por figuras do âmbito político.

“A presidência de Javier Milei deu início a um período de grande hostilidade contra o jornalismo, sendo as mulheres jornalistas o principal alvo desses ataques”, disse o estudo.

Efeito silenciador

As agressões online contra as jornalistas têm um efeito silenciador, afirma o relatório. Metade das entrevistadas (49,8%) disse que, após ser atacada, passou a se autocensurar nas redes sociais. Muitas disseram que passaram a evitar a interação com o público online (44,7%), deixaram de participar de alguma rede social (34,5%) ou fecharam seus perfis (7,10%).

Quase um quinto das entrevistadas (18%) disse que passou a evitar certas coberturas e 13,3% passou a evitar determinadas fontes em seu trabalho. Algumas deixaram seus empregos como consequência da violência online (2,4%) ou deixaram de exercer o jornalismo (2,4%).

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A jornalista argentina Mariana Iglesias, editora de gênero no Clarín. (Foto: Arquivo pessoal)

“Quando se avança em algo, a resistência é maior”, disse Mariana Iglesias, editora de gênero do Clarín, à LJR. Ela é a pioneira neste cargo na América Latina e uma das cinco editoras de gênero que seguem no posto na Argentina, que já teve editoras de gênero em 13 meios de comunicação.

Iglesias, que foi entrevistada no estudo da Anistia, é uma das jornalistas que recebeu ataques e ameaças por sua cobertura da legalização do aborto e deixou de participar de uma rede social.

Em 2018, enquanto cobria o debate no Congresso sobre o projeto de lei que garantiria o acesso à interrupção voluntária e legal da gestação na Argentina, Iglesias passou a receber em seu email de trabalho mensagens com insultos e imagens de fetos abortados em idade gestacional avançada.

“Eu recebia muitas críticas e também ameaças e emails que se tornaram cada vez mais horríveis à medida que o debate no Congresso avançava”, disse ela.

Iglesias entrevistou representantes do movimento contrário à legalização do aborto, a quem disponibilizou seu número de telefone. Logo ela passou a receber mensagens ofensivas em seu celular e ligações dizendo para ela “tomar cuidado” e parar de escrever sobre esse tema.

“Isso me afetou muito”, disse ela. “Foi em um domingo, eu estava na casa dos meus pais, que são idosos, e estava com meus dois filhos, que eram pequenos. Me senti muito vulnerável.”

Iglesias fez uma denúncia em uma unidade do Ministério Público especializada em violência contra mulheres, mas a investigação não conseguiu identificar nenhuma pessoa responsável pelos emails, mensagens e ligações com ameaças. Ela também comunicou seus gestores no Clarín sobre os ataques que vinha recebendo e lhe disseram que ela poderia deixar de cobrir esse tema, mas ela decidiu continuar.

No entanto, ela decidiu sair do então Twitter, atual X.

“Toda vez que eu compartilhava uma matéria ou fazia algum comentário, começava a receber muitos comentários horríveis, e eu pensava que não precisava ler tudo aquilo”, disse Iglesias.

Mariana Fernández Camacho, jornalista e integrante da Associação Civil Comunicación para la Igualdad, disse à LJR que nunca teve perfil no X/Twitter justamente por causa dos ataques que abundam nessa rede contra mulheres jornalistas. E que já abandonou uma cobertura devido a uma agressão online que recebeu.

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A jornalista argentina Mariana Fernandez Camacho. (Foto: Arquivo pessoal)

Ela contou que, em 2014, cobria casos em que homens acusados de abusar sexualmente de seus filhos processavam as mães das crianças e as acusavam de “alienação parental”. Em alguns casos, a Justiça obrigava crianças a conviver com os genitores acusados de abusar delas.

Camacho começou a receber emails com insultos e ameaças pelas reportagens que fazia dando voz às mães das crianças. Em certo momento, recebeu um email que falava sobre o filho dela, que na época tinha quatro anos de idade, e mencionava a creche que ele frequentava, seu trajeto e seus horários de entrada e saída.

A alusão de ameaça a seu filho fez com que Camacho deixasse de cobrir esse tema.

“Senti o medo em meu corpo”, disse Camacho. “E isso me fez agir de uma certa maneira: parei de escrever. É importante levantar essa relação intrínseca entre a violência no mundo virtual e o fato de desaparecermos da cena pública e dos meios de comunicação.”

Menos mulheres jornalistas com voz

Camacho só voltou a escrever sobre esse tema em 2022 no portal Infobae, com o qual vinha colaborando regularmente como freelancer há quase cinco anos. Em outubro, porém, ela foi desligada como colaboradora.

“A crise também chegou ao setor privado, então cortaram todas as colaborações externas. Eu estava cobrindo questões de gênero, direitos das mulheres e diversidade, portanto, é uma voz a menos na cobertura desses temas”, disse Camacho.

Iglesias disse que a crise de sustentabilidade dos meios jornalísticos, combinada com o ambiente de hostilidade ao jornalismo em geral e a mulheres jornalistas em particular, está afetando a cobertura desses temas na Argentina. Mesmo os meios argentinos que já têm uma perspectiva de gênero consolidada estão abandonando essas pautas pois, segundo eles, elas não dão mais audiência, disse Iglesias.

“As ameaças e críticas nas redes em relação a tudo o que tem a ver com feminismo e gênero são terríveis, o que faz com que muitas colegas abandonem seus cargos”, disse ela. “Não há muito lucro nisso hoje. Não há respeito generalizado, porque do presidente para baixo não há mais respeito. Não há ajuda ou apoio financeiro das redações porque nós, jornalistas, estamos ganhando cada vez menos, porque os salários são extremamente precários, porque os meios vendem cada vez menos.”

O estudo de Anistia também destaca o impacto da violência digital contra mulheres jornalistas em relação à precariedade no trabalho vivida por muitas delas na Argentina.

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Lucila Galkin, diretora de Gênero e Diversidade da Anistia Argentina. (Foto: Arquivo pessoal)

“A situação sócio-ocupacional das mulheres jornalistas condiciona, de alguma forma, onde a violência de gênero as encontra, seja em uma redação ou sozinhas em casa sendo atacadas, e como elas sentem que têm o apoio do meio para se expressar com segurança e exercer sua profissão sem medo de represálias”, disse Galkin.

O relatório oferece recomendações para meios de comunicação desenvolverem protocolos de prevenção da violência digital e de apoio às jornalistas que se tornem alvos de ataques online. Também traz recomendações para o Estado argentino e para plataformas digitais abordarem essa questão.

“Um dos grandes desafios que temos é que, atualmente, para as plataformas digitais, a prioridade é um modelo de negócios, e não um modelo de sociedade”, disse Galkin. “Aqui cabe aos Estados, e eles têm um grande desafio de intervir nesses casos e desenvolver políticas públicas para garantir a liberdade de expressão para todas e todos.”

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