Nas periferias brasileiras, é comum que a comunidade se una para ajudar uma família a construir uma casa de alvenaria ou acrescentar um andar a uma casa já existente. É o que em alguns lugares do Brasil se conhece como “subir uma laje”: um grupo de pessoas unidas por laços de afeto e solidariedade construindo juntas um espaço de convivência e abrigo.
Essa prática inspirou Anderson Meneses, diretor de tecnologia e negócios da Agência Mural, no livro “Tijolo por Tijolo: a experiência de construir uma comunidade de apoiadores ao redor do jornalismo”. Lançada no dia 9 de novembro e disponível para download gratuito, a publicação traz lições das experiências da Mural e de outros 12 meios nativos digitais brasileiros e um colombiano com o financiamento de pessoas engajadas em comunidades de apoio às organizações jornalísticas.
Meneses disse à LatAm Journalism Review (LJR) que queria sistematizar o aprendizado da Mural, que faz jornalismo sobre periferias e realiza campanhas de apoio junto a seus leitores há 14 anos, e ouvir apoiadores da agência. Ele expandiu o projeto para ouvir experiências de outros nativos digitais que têm comunidades de apoiadores. Meneses entrevistou representantes de 100 Fronteiras, Amazônia Real, AzMina, Matinal, Outras Palavras, Paraíba Feminina, Periferia em Movimento, Ponte, Portal Assobiar, Revista O Grito! e Sumaúma, no Brasil, e do Mutante, da Colômbia, conhecido por seu jornalismo participativo.
“O principal aprendizado é: precisamos fazer campanha [de apoio]. Precisamos pedir recursos e colocar isso no fluxo natural do jornalismo”, disse Meneses. “Precisamos naturalizar isso. Os repórteres também precisam entender sobre essa necessidade de pedir. E esse pedir não é só em um banner no site ou um e-mail que mandamos para os leitores. É nas conversas que temos com fontes, com outros jornalistas, no dia a dia da organização.”
A pesquisa de Meneses foi financiada pelo Programa Saberes da Rede Comuá, que promove a produção e o compartilhamento de conhecimento sobre filantropia comunitária no Brasil. O objetivo do projeto foi entender como o jornalismo pode cultivar a filantropia comunitária e fomentar a cultura da doação.
O Brasil está muito atrasado em comparação com outros países, disse Meneses. Mapeamentos do setor da filantropia no país apontam que saúde e educação são prioridade para pessoas e instituições doadoras.
O desafio para jornalistas e gestores de meios é demonstrar o impacto e o serviço prestado pelo jornalismo para as audiências, disse Meneses. E, a partir disso, convencê-las a apoiar financeiramente iniciativas jornalísticas.
“Com a pandemia nós entendemos, como sociedade, que o SUS [Sistema Único de Saúde] é necessário”, disse Meneses. “O jornalismo deveria ser, para a sociedade, como o SUS. Ele está ali no dia a dia, investigando, fiscalizando, mostrando outras narrativas e potencialidades. Ainda precisamos contar para as pessoas e as pessoas ainda precisam entender a real importância do jornalismo.”
A Ponte, ouvida por Meneses em sua pesquisa, cobre segurança pública pela perspectiva dos direitos humanos há dez anos e pode demonstrar um impacto concreto em muitas vidas.
“A Ponte já tirou cerca de 100 pessoas inocentes da prisão”, disse Jessica Santos, editora de relacionamento da organização, à LJR. Duas pessoas inocentadas após denúncias da Ponte deram depoimentos em vídeo que estão na página do Tamo Junto, programa de membros do meio.
O programa foi lançado em 2020 com a dupla intenção de contribuir para a diversificação de receitas da Ponte e aproximar o público do trabalho da organização, disse Santos. Ele reúne no momento cerca de 350 membros, que contribuem mensalmente com valores a partir de 5 reais por mês. O valor total doado pelos apoiadores corresponde no momento a 13% da receita da Ponte, disse Santos.
Uma das maneiras pelas quais a Ponte estreita laços com seus apoiadores é um grupo de WhatsApp que reúne toda a equipe da organização com os membros que queiram participar. Há cerca de 100 pessoas no grupo, disse Santos.
Apesar do temor inicial de que um grupo de WhatsApp com dezenas de leitores se tornasse caótico, Santos disse os membros costumam seguir as regras para participação no grupo. Alguns membros são mais engajados nas conversas e enviam sugestões de pauta ou até se tornam fontes nas reportagens da Ponte, já que muitos são de áreas afins à cobertura da organização.
O grupo de WhatsApp “tem sido uma experiência bem boa para conhecer um pouco mais nossos leitores e para nossos leitores conhecerem nosso processo”, disse Santos.
Nos quatro anos do programa Tamo Junto, Santos disse que a equipe entendeu que redes sociais não são boas conversoras de leitores em apoiadores, enquanto a newsletter é uma ferramenta eficiente de conversão.
“O que mais converte leitor em membro é a newsletter semanal. Não é rede social, nem post orgânico nem post pago. No texto da newsletter, que é sempre um editorial, sempre tentamos dar um toque e dizer ‘olha, só quem faz esse tipo de trabalho é a Ponte, há dez anos já. Vamos ajudar a Ponte a fazer mais dez anos?’ É um trabalho de conscientização”, disse ela.
Um aprendizado compartilhado tanto por Meneses quanto por Santos é que o público que a organização quer informar, aquele que ela tem em mente quando produz conteúdo, não é necessariamente o público que vai se tornar membro e apoiar financeiramente a organização.
“Você tem que entender quem que você quer que pague”, disse Santos. Enquanto o público que a Ponte quer informar são trabalhadores de origem periférica, o público que doa para a Ponte mora no centro de São Paulo e tem pós-graduação, disse ela.
“Pedimos dinheiro no Tamo Junto, mas podemos pedir outras coisas para outras pessoas”, disse ela. “Posso fazer um grupo de embaixadores e pedir que cada um espalhe no nosso conteúdo para outras pessoas. Essa também é uma possibilidade de membresia.”
Meneses contou que este ano foi a primeira vez que a Mural realizou uma pesquisa aprofundada com seus apoiadores. A organização entendeu que o perfil de quem apoia é diferente do perfil de seu público-alvo. Esse entendimento está orientando a reestruturação da campanha de apoio da Mural para 2025.
“Enquanto a Mural tenta buscar as juventudes periféricas urbanas que estão no corre do dia a dia, pegando duas horas de transporte público, os apoiadores da Mural são jornalistas, acadêmicos, professores que acompanham nosso jornalismo de outro lugar, por outra ótica, e têm um poder aquisitivo diferente”, disse Meneses.
Outro aprendizado importante, segundo o diretor da Mural, é que campanhas para angariar apoiadores precisam ser estruturadas em todas as suas fases, do começo ao fim. Além disso, elas são cíclicas: “o fim é o começo dela novamente”, disse Meneses.
“Não basta só pedir: você precisa ter uma comunicação eficiente, ter constância no pedido, entender para quem vai pedir”, disse ele. “Você precisa trazer a pessoa [para apoiar o meio], e depois você precisa manter a pessoa [apoiando].”
A jornalista e consultora Luiza Bodenmüller tem trabalhado com comunidades de apoiadores em vários meios nativos digitais brasileiros nos últimos dez anos. Ela disse à LJR que a pesquisa de Meneses é “muito feliz em sistematizar possibilidades para a construção de comunidades a partir da realidade brasileira, que é cheia de peculiaridades e desafios que são muito próprios daqui”.
Bodenmüller disse que uma constante nessa última década é que o apoio ao jornalismo no Brasil “ainda é muito tímido” e muito poucas iniciativas conseguem se sustentar integralmente com a receita vinda das comunidades de apoiadores.
“O que mudou, por outro lado, é que os desafios relacionados à sustentabilidade financeira foram se complexificando”, disse Bodenmüller. “A distribuição é um grande gargalo e, ao mesmo tempo, essencial para que um veículo se torne conhecido e forme uma comunidade em torno de si. Por outro lado, hoje há muito mais ferramentas à disposição, tanto de comunicação direta com apoiadores como de acompanhamento por análise de dados, por exemplo, que facilitam na tomada de decisão em campanhas e rotinas de gestão de comunidade.”
Bodenmüller disse que um desafio que não existia dez anos atrás é a concorrência, pois nesse período vários nativos digitais, entre os quais existe uma confluência de temas e abordagens, criaram comunidades.
“Isso acaba gerando uma concorrência penosa, dado que o brasileiro já não é acostumado a contribuir financeiramente com o jornalismo e, ao fazê-lo, acaba escolhendo uma ou no máximo duas iniciativas para apoiar”, disse ela. “O pouco dinheiro que existe circulando nas comunidades acaba se dividindo entre muitos.”
Bodenmüller disse que o primeiro passo para construir uma comunidade de apoiadores é entender profundamente sua audiência. Isso exige manter abertos os canais de comunicação com o público e realizar questionários e entrevistas estruturadas com as pessoas que acompanham o meio. Ela disse que não é viável construir uma comunidade de apiadores sem antes ouvir quem de fato faz parte dessa comunidade e entender quais são suas necessidades e desejos e como o meio pode ou não atendê-los.
“Gestão de comunidades é um exercício de persistência e resiliência”, disse Bodenmüller. Segundo ela, o trabalho com comunidades se conecta à ideia de jornalismo como um serviço, e implica em mostrar ao público que a informação, muitas vezes oferecida gratuitamente, tem seu valor e papel social.
“Se isso se converte em doação ou não, é uma decisão das pessoas, mas o fato é que essas mesmas pessoas precisam se sentir representadas, escutadas e até acolhidas antes mesmo de sentirem imbuídas a contribuir financeiramente”, disse ela. “E isso dá trabalho, leva tempo e tem que ser feito com muito cuidado e respeito tanto com as audiências como com a equipe envolvida na empreitada.”