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A heroína da janela: a história de Joana da Paz que marcou o jornalismo brasileiro é relançada em livro

  • Por Pollyanna Brêtas
  • 8 janeiro, 2025

Uma das histórias mais impactantes do jornalismo brasileiro, contada pela primeira vez há exatos 20 anos, volta à cena literária com o relançamento do livro "Dona Vitória Joana da Paz", do jornalista Fábio Gusmão. Rebatizada para incluir o nome real da protagonista, a obra narra a coragem de Joana Zeferino da Paz, uma idosa de 80 anos que, com uma câmera na mão e um olhar corajoso, enfrentou o tráfico de drogas e a corrupção policial na comunidade Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, um dos principais bairros turísticos da Zona Sul do Rio de Janeiro.

Dona Vitória Joana da Paz book cover

Capa da nova edição do livro

Publicado originalmente sob o título "Dona Vitória", o livro traz à tona novos desdobramentos, incluindo detalhes sobre a vida de Paz após a publicação da reportagem e sua entrada no Programa de Proteção a Testemunhas. A morte da protagonista em 2023, aos 97 anos, permitiu que seu verdadeiro nome fosse revelado, encerrando quase duas décadas de sigilo. Os registros de Paz, feitos da janela de seu apartamento, foram cruciais para as investigações que levaram à prisão de 30 envolvidos em atividades criminosas.

Na nova edição, Gusmão reapresenta a protagonista, agora com sua verdadeira identidade, além de imagens exclusivas das últimas semanas de gravações da janela da testemunha que precisou passar anos no exílio para se proteger do crime organizado. Nas novas páginas, há ainda transcrições da narração completa de Paz e revelações sobre a vida da heroína por trás da câmera.

Em entrevista à LatAm Journalism Review (LJR), Gusmão contou que levou um ano e meio desde a descoberta dos registros de Paz até a publicação das reportagens. A principal preocupação da equipe era com a segurança da idosa. Além disso, como está descrito no prefácio do livro, escrito por Otávio Guedes – ex-diretor do “Extra” –, ao ouvir a narração de Paz, Gusmão teve a certeza de que a real história, ao contrário do que pensava a polícia, era da janela para dentro e não da janela para fora. O caso era sobre a vida daquela mulher e não a movimentação da quadrilha de bandidos.

O caso, segundo Gusmão, também gerou um debate ético profundo sobre o papel do jornalista em histórias de tamanha relevância social, destacando o cuidado e o compromisso com a segurança da protagonista. A nova edição do livro reafirma a importância de contar histórias reais que desafiam as estruturas de poder, e ao mesmo tempo sublinham os dramas pessoais de cidadãos que convivem com o crime organizado.

Woman and man smiling at camera

Fábio Gusmão e Joana da Paz, protagonista da reportagem que marcou o jornalismo brasileiro (Foto: Fábio Gusmão)

A história de Paz transcendeu o jornalismo e conquistou também a sétima arte. Em breve, o público poderá assistir à sua trajetória no filme "Vitória", protagonizado por Fernanda Montenegro, um sonho da própria Paz. O longa-metragem, uma produção original do Globoplay em parceria com a Conspiração, é também uma homenagem ao diretor Breno Silveira, que faleceu em 2022 durante as filmagens. A estreia está marcada para o dia 13 de março de 2025.

Com o relançamento do livro e a estreia do filme, a história de Joana Zeferino da Paz se consolida como um marco no jornalismo. Sua luta contra o crime e a impunidade neste caso foi registrada por Gusmão, que além do material empírico e diversas horas de entrevistas e conversas com a personagem, conseguiu promover uma investigação paralela sobre a quadrilha que atuava à luz do dia, corrompia e viciava crianças e contava com a conivência de policiais que deveriam combatê-la.

A entrevista original foi reduzida e editada para maior clareza.


LatAm Journalism Review (LJR): Como a dona Vitória atravessou seu caminho? Como você encontrou essa história?

FG: Era março de 2004. Eu era repórter e cobria a área de polícia no jornal “Extra”, onde havia começado em fevereiro de 1998, antes mesmo de o jornal ser lançado nas bancas, quando a equipe ainda trabalhava no projeto da nova publicação de cunho popular.

Sempre atuei na linha de polícia e segurança, com algumas fontes, principalmente no setor de Inteligência. Fui para a rua buscando uma pauta mais elaborada para o jornal de domingo. Na Coordenadoria de Inteligência da Polícia Civil, um policial mencionou a visita de uma senhora de 80 anos que havia deixado 7 ou 8 fitas com gravações sobre o tráfico de drogas e homens armados na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Eu vi o material. Não havia muita novidade nas imagens porque já sabíamos que ocorria nas favelas do Rio, mas mesmo assim me interessei porque era um bairro nobre da cidade. O policial explicou que seria necessária uma autorização para liberar as gravações.

Duas semanas depois, consegui as fitas. Dentro da sacola, encontrei um cartão da senhora que produziu o material. Quando levei as fitas para casa e aumentei o som da TV, percebi que havia algo diferente. Além das imagens, havia uma narração potente e vibrante da moradora. Era a narrativa da vida dela, do cotidiano, sua indignação. Passei a madrugada decupando as gravações e tive certeza: eu estava diante da história da minha vida.

Marina Maggessi, a policial civil que autorizou a liberação das fitas, estabeleceu uma condição para a publicação da história no jornal: eu só poderia divulgar o caso em coordenação com as investigações da polícia. Ela queria tempo para investigar. No dia seguinte, na redação, falei com meu chefe. A equipe do jornal adorou a história e contratou uma produtora para capturar as imagens e extrair frames.

LJR: Como foi a negociação para publicar, o contato com Dona Joana e sua investigação sobre o caso?

FG: A publicação levou um ano e meio. Marina Maggessi estava preocupada em avançar na investigação, identificar as pessoas e evitar críticas ao trabalho da polícia. Isso durou seis meses, mas sua equipe foi transferida da delegacia, e eu fiquei com a história, ciente de que era a maior da minha carreira.

Ao mesmo tempo, temia pela vida da dona Joana. Ela morava ali desde a década de 1960, e havia denunciado o tráfico de drogas várias vezes. Quando finalmente nos encontramos, foi em uma delegacia. Depois de ganhar sua confiança fui à casa dela. Ao entrar no apartamento pela primeira vez, vi a proximidade da boca de fumo e tive a certeza de que seria impossível publicar qualquer coisa sem antes garantir sua segurança e tirá-la dali.

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Jornalista Fábio Gusmão revela verdadeira identidade por trás do nome atribuído à mulher que da janela de sua casa lutou contra o tráfico de drogas no Rio de Janeiro (Foto: Stella Daudt)

Passei a visitá-la regularmente. Durante dois meses intensos, quando tomávamos café e comíamos biscoitos, conversávamos sobre sua vida. O tempo foi passando. Em março de 2005, pedi para retomar a história, mas com a condição de que ela saísse do apartamento antes da publicação.

Comecei uma investigação paralela para identificar os bandidos. A história era sobre ela, mas eu precisava contextualizar o que aquilo representava.

Ela aceitou sair de casa, e a Subsecretaria de Inteligência da polícia usou o apartamento como base para operações. O Ministério Público a incluiu no Programa de Proteção à Testemunha, mas ela exigiu vender o imóvel antes de sair. Depois de uma longa negociação e operações policiais, ela deixou o local.

Em julho, fiz uma entrevista formal com ela e organizei todo o material. No dia 23 de agosto de 2005, às 19h, comecei a escrever as seis páginas do caderno especial. Às 23h, finalizei. Três editores revisaram o material, e ao término do trabalho, desabei em lágrimas.

LJR: Você mesmo como jornalista estava de alguma forma envolvido também, fazendo parte daquela história também.

FG: Desde a faculdade, debatia-se a ética do jornalista ao se envolver na notícia. Minha percepção mudou. A história era real, e proteger a vida dela não era interferir; era uma questão de humanidade. Pedi para incluir na publicação do caso um texto em primeira pessoa, explicando tudo o que aconteceu e meu sentimento.

Na manhã seguinte à publicação, a repercussão foi imensa, com ligações, e-mails e entrevistas. O Fantástico, programa da TV Globo, agendou um encontro com ela, e veículos internacionais começaram a repercutir o caso.

LJR: Com toda essa repercussão, o que mudou depois de todo o trabalho que você fez?

FG: Muitos colegas de profissão me disseram que essa era a história que eles gostariam de ter contado. Para mim, a principal mudança foi na forma de enxergar as histórias das pessoas. Passei a buscar a essência delas e entender como suas denúncias podem ganhar força quando realmente são ouvidas.

O debate ético permanece, mas sempre estarei na mesma posição: a vida dela era inegociável.

LJR: Como você coordenou o processo e lidou com as demandas diárias da redação?

FG: A ansiedade era constante, especialmente com tiroteios que ocorriam próximos à casa dela. Eu dizia para ela se proteger. Temia pela vida dela. Se qualquer informação vazasse, ela poderia correr risco. Por outro lado, seguia minha vida fazendo outras reportagens, mas o caso consumia meus pensamentos. Dez dias antes da publicação, ainda consegui outro furo: um grampo da polícia com o chefe do tráfico da Rocinha, favela da Zona Sul do Rio, conversando com o goleiro Júlio César, que foi titular na Seleção Brasileira de futebol.

LJR: E depois da publicação, qual foi o seu contato com ela?

FG: Após um tempo sem contato, ela saiu do Rio de Janeiro por questões de segurança. Mas falei com ela algumas vezes. Ela chegou a deixar o Programa de Proteção à Testemunha. Convenci o promotor a reintegrá-la ao Programa de Proteção quando saiu. Porém, quando o livro saiu, ela ficou chateada porque alterei detalhes de sua vida, seu nome, para preservá-la.

Antes da pandemia de Covid-19, uma vizinha nos conectou por vídeo. Ela estava velhinha, mas ainda com boas lembranças. Quando soube de sua morte em 2023, fiquei abalado. Escrevi sua história como homenagem.

Ela sabia que sua história seria contada também em um filme e sempre sonhou em ter sua vida representada por Fernanda Montenegro. Hoje, essa história será eternizada.

LJR: O que mudou na sua carreira a partir dali?

FG: Tudo. Ganhei os maiores prêmios de jornalismo e fui promovido a editor. Mas o mais importante foi contar uma grande história, que ainda ressoa 20 anos depois.

Republica esta historia en tu medio de forma gratuita, con crédito a LJR. Lee nuestros lineamientos.

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