Durante cinco anos, um grupo de jovens da periferia da Grande São Paulo, sob a batuta da jornalista Izabela Moi, encarou um desafio: retratar suas regiões a partir de uma “visão de dentro”, com uma cobertura que fosse além dos clichês sobre violência e assistencialismo. O projeto Mural de jornalismo nasceu em 24 de novembro de 2010 como um blog de publicação diária na Folha de S.Paulo e, de lá pra cá, viu aumentar o número de participantes e o impacto de suas atividades. Tanto que o espaço do blog passou a não dar conta, e na última quinta-feira, 5 de novembro, foi lançada a Agência Mural de Jornalismo das Periferias.
Por trás da gestão da rede engajada no projeto, Izabela Moi construiu boa parte da sua carreira na Folha e viu na concepção do Mural a oportunidade de colocar em prática o que acredita ser a missão do jornalismo: informar para transformar realidades. Depois de passar um ano em Stanford com a bolsa do programa JSK, ela voltou disposta a levar a iniciativa a outro patamar e transformá-la em uma organização sustentável, capaz de, por meio do bom jornalismo, reintegrar espaços pouco ou mal representados de São Paulo.
“Quando a gente começa, não sabe se o dia seguinte vai acontecer. No primeiro ano, eram 20 correspondentes e ninguém se conhecia. Tudo foi feito sem financiamento, era uma missão que todos nós compartilhavámos. A gente só sabia que havia uma lacuna nesse tipo de noticiário, e que queríamos preenchê-la”, contou Izabela, em entrevista ao Centro Knight.
Os primeiros muralistas - como são chamados os integrantes do projeto - vieram de uma turma treinada pelo então repórter da BBC Bruno Garcez, que havia recebido uma bolsa do International Center for Journalists (ICFJ) para investir na proposta de formar jornalistas cidadãos. “Eu já tinha desenvolvido um projeto na Folha para tentar aproximar estudantes de escolas públicas do jornal. Conheci o Bruno na época em que fiquei órfã desse projeto. Ele tinha que voltar para a BBC e não sabia o que fazer com as pessoas que havia formado. Daí surgiu a ideia de fazer um blog para abrigar as histórias desses jovens, que atuariam como correspondentes locais”, explicou a jornalista.
Mais de mil histórias depois e com 75 muralistas ativos na produção de reportagens, o Mural agora conta com um site onde seus leitores poderão ter acesso às outras atividades e conteúdos produzidos pelo grupo. “O blog vai continuar a ser atualizado, mas ele ficou pequeno como vitrine”, nas palavras de Izabela.
Aposta na cobertura hiperlocal
O Mural foi o primeiro blog em um grande veículo brasileiro a praticar um gênero de jornalismo que despontou nos EUA em 2009 - o jornalismo colaborativo hiperlocal - com a crise do modelo de negócios dos jornais e a necessidade de reanimar o interesse da audiência por notícias. Um ano antes da iniciativa nascer na Folha, o New York Times lançava o Local, destinado a cobrir bairros da cidade de Nova York a partir de informações fornecidas por moradores.
O projeto do principal jornal americano terminou em 2012, três anos depois de sua estreia. Já o brasileiro segue firme na aposta de que o modelo é capaz de dar espaço a novas vozes na grande mídia e refletir a complexidade de regiões desconhecidas para a maior parte dos leitores. Entre as principais diferenças das duas iniciativas, o investimento na formação dos correspondentes comunitários e o modelo de operação mais horizontal, que permite a participação de todos nas decisões do projeto, são chaves.
“Construímos alguns processos para facilitar o trabalho, mas no começo eu passava mais de 3 horas por dia respondendo a e-mails e orientando os muralistas. Fomos construindo nossos princípios de reportagem. Apesar da maioria ser estudante de jornalismo, eu precisava garantir a qualidade das pautas e mantinha uma exigência de editora da Folha de S. Paulo”, contou Izabela. “Fiquei três anos a frente do operacional do texto. Quando eu sai do jornal, em 2012, escolhemos seis muralistas que já haviam desenvolvido um olhar de editor e montamos o conselho editorial do blog.”
Todo ano é promovida uma nova seleção de muralistas e os participantes mantêm conversas online e encontros aos sábados. O desafio inicial de Izabela foi mostrar aos envolvidos que eles poderiam reportar sobre o próprio bairro sem cair na narrativa do exótico ou nas pautas fáceis das atrações culturais.
“Eu dizia que eles tinham que ver o bairro com um olhar crítico e fazer as matérias com um olhar de correspondente mesmo, e eles questionavam 'como vamos falar mal do bairro que a gente mora?’ Quando eles entenderam que poderiam reportar sobre o bairro sem cair na dicotomia ‘ame ou deixe-o’, quando colocaram o foco na informação, o processo virou.”
O olhar crítico dos muralistas aos seus próprios bairros rendeu matérias sobre infraestrutura, com histórias sobre vazamentos nas ruas, postos de saúde, sinais de trânsito quebrados, falta de coleta de lixo. Depois de denunciados no blog, os problemas recebem atenção dos administradores locais. Segundo Izabela, as reportagens cumprem sua função e têm uma interferência grande na transformação da realidade local.
Projetos para o futuro
Além do blog, a Agência Mural traz em seu portfólio propostas para se aproximar do público, especialmente o da própria periferia. Dentre as atividades se destacam a Expo Mural, uma exposição itinerante para mostrar o trabalho da Agência, e o Mural nas Escolas, que promove palestras e oficinas sobre o projeto com turmas de ensino médio de escolas públicas. Para Izabela, esses projetos são uma forma de criar vínculos com as audiências e despertar nelas o interesse pela informação sobre o que acontece em seus bairros.
Depois do lançamento do site, os próximos passos para a Agência incluem investir em diferentes tipos de captação para garantir sua sustentabilidade. “Estamos descobrindo que os nossos projetos interessam a alguns parceiros. Estamos também criando uma plataforma de classificados de empregos focada na periferia. E as parcerias de conteúdo também são uma possibilidade de trazer recursos e veicular nosso conteúdo em mais espaços. Temos muito forte uma missão, o que dá consistência pro trabalho e estabilidade pra organização, então agora é ter paciência suficiente para correr atrás do financiamento de um jeito que garanta a nossa independência”, concluiu Izabela.
Nota do editor: Essa história foi publicada originalmente no blog Jornalismo nas Américas do Centro Knight, o predecessor do LatAm Journalism Review.