Este é o primeiro capítulo de uma série sobre a cobertura de conflitos violentos na América Latina. *
Quase quatro anos se passaram desde que os jornalistas equatorianos Javier Ortega e Paúl Rivas, juntamente com seu motorista Efraín Segarra, foram sequestrados em Mataje, uma cidade na fronteira do Equador com a Colômbia.
Eles trabalhavam para o jornal El Comercio de Quito e haviam viajado para a província de Esmeraldas para cobrir uma escalada de violência na área, desencadeada por grupos dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), que não concordaram em se desmobilizar após os acordos de paz e atravessaram para o Equador, onde procuraram controlar territórios para o tráfico de drogas.
O aumento da violência incluiu ataques terroristas que foram respondidos por ações dos governos da Colômbia e do Equador. A Frente Oliver Sinisterra, um grupo dissidente das FARC, sequestrou os jornalistas em 6 de março de 2018, para pressionar o governo a interromper a perseguição. Algumas semanas depois, em 11 de abril, eles foram mortos.
Os três jornalistas não estavam preparados para cobrir conflitos violentos envolvendo grupos armados, segundo seus próprios colegas.
Na América Latina, esses grupos armados podem até ser combinados. Existem gangues que são traficantes de drogas, e também existem grupos guerrilheiros que se envolvem em atividades criminosas para se financiar. Geralmente são grupos armados em conflito com as autoridades ou entre si. A combinação de variáveis representa um desafio para qualquer jornalista.
“A violência no México tornou os repórteres correspondentes de guerra em nossa própria terra”, disse em uma ocasião a jornalista mexicana Marcela Turati, sobre a cobertura da violência desencadeada pelos cartéis de drogas e pelas forças de segurança que os perseguem no México.
Seja no México ou no Equador, como na Colômbia, Honduras ou Nicarágua, a cobertura da violência trouxe novos desafios para os jornalistas, porque o conceito tradicional de conflito armado está sendo desafiado na região. A diversidade dos grupos armados também significa ampliar a definição do termo. Não são apenas forças de segurança regulares, como exércitos ou polícia, e grupos paramilitares, como guerrilhas, mas também podem envolver traficantes de drogas, membros de gangues ou forças de segurança privada.
O Guia de Segurança do Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), talvez o mais completo documento de recomendações de segurança para repórteres e editores, aponta que "historicamente, os cursos de treinamento em segurança não se especializaram em lidar com contingências não militares, como mitigar a risco de agressão sexual na cobertura ou reduzir os perigos da cobertura do crime organizado”.
Em muitas ocasiões, para jornalistas acostumados a reportar atividades criminosas, o trabalho pode se transformar em cobertura de conflitos violentos a qualquer momento.
Diariamente, em suas próprias cidades, os jornalistas correm o risco de enfrentar grupos armados ou se encontrar em meio a confrontos com autoridades ou entre si. Para um jornalista de Nuevo Laredo, Tamaulipas, esquivar-se das balas de dois cartéis que lutam entre si não é muito diferente do que se fosse um correspondente de guerra na Síria.
Ou o caso dos jornalistas equatorianos que viajaram para uma região de seu próprio país para cobrir uma onda de violência e sofreram o destino que antes aguardava os correspondentes de guerra.
Jonathan Bock, diretor da Fundação para a Liberdade de Imprensa na Colômbia, descreve uma situação que ocorre não só em seu país, mas em outros países da América Latina: o desprezo pelas autoridades.
“Há uma falta de presença do Estado e depois uma narrativa das autoridades dizendo que a culpa é dos jornalistas por estarem em áreas onde não deveriam estar. Não há interesse genuíno em entender os riscos”, disse ele à LatAm Journalism Review (LJR).
Diversos tipos de violência
Cobrir um conflito violento significa riscos que, na América Latina de hoje, podem se apresentar de diversas formas.
Uma delas é que o jornalista se envolve em um confronto entre grupos hostis e é vítima de fogo cruzado. Este é o modelo tradicional de risco de um jornalista cobrindo conflitos armados. De acordo com uma análise da Repórteres Sem Fronteiras, dez das 139 mortes de jornalistas entre 2011 e 2020 na América Latina ocorreram durante a cobertura em que "o jornalista tomou um tiro sem que necessariamente fosse direcionado a ele".
Foi o caso do jornalista brasileiro Gelson Domingos da Silva, morto a tiros enquanto filmava cenas de uma batida policial em uma favela do Rio de Janeiro em novembro de 2012. Domingos foi atingido por balas durante um confronto entre policiais e suspeitos.
Embora a porcentagem de casos em que jornalistas morreram atingidos em confrontos pareça baixa, apenas 7% do total, é notável que esse número seja alcançado quando a região não enfrenta conflitos armados tradicionais.
Os conflitos violentos evoluíram de tal forma que os jornalistas, por vezes, deixaram de ser observadores respeitados das partes em conflito e tornaram-se alvo de uma dessas partes.
Às vezes, eles se tornam alvos porque uma das partes do conflito não quer que ninguém os observe, como aconteceu no estado mexicano de Guerrero em janeiro de 2019, quando um policial apontou um fuzil de assalto a dez jornalistas que cobriam uma operação. Semanas depois, policiais de Nezahualcóyotl, município vizinho à Cidade do México, atacaram três fotógrafos que cobriam a descoberta de um corpo em vias públicas.
Em outras ocasiões, podem se tornar moeda de troca para um dos grupos armados.
Eles podem fazer isso para exigir um tipo de cobertura da mídia, como foi o caso do jornal El Siglo de Torreón, no México, onde 5 funcionários foram sequestrados por várias horas por um cartel de drogas para pressionar o jornal a censurar sua cobertura de atos violentos como assassinatos e ataques armados na cidade. Os jornalistas foram liberados com uma advertência aos editores do jornal, que denunciaram o sequestro e pediram proteção. Um grupo da Polícia Federal montou vigilância do lado de fora do prédio e os agentes foram agredidos por três dias consecutivos pelo grupo criminoso, colocando o jornal no meio de um confronto.
Os jornalistas também podem ser usados como meio de pressão para obter concessões de um governo, como foi o caso dos três equatorianos sequestrados pelas FARC, que tentavam libertar três membros que haviam sido detidos pelo governo equatoriano.
Em outras ocasiões, trata-se de usar jornalistas, como foi o caso de Wilfer Moreno na Colômbia, que em fevereiro de 2020 recebeu uma ligação de um homem identificado por um pseudônimo, que ordenou que ele suspendesse a transmissão de seu noticiário na televisão CNC Noticias de Arauca durante as 72 horas que duraria o ataque armado de guerrilhas anunciado pelo Exército de Libertação Nacional. Moreno recusou e em resposta o sujeito anônimo avisou que ele tinha uma hora para deixar a cidade porque seria declarado "alvo militar".
Tornar-se um "alvo" faz parte de uma nova linguagem adotada por grupos armados que vão de guerrilheiros a cartéis de drogas, que veem os jornalistas como mais uma parte do conflito e aquele que, indefeso, é mais vulnerável.
Em 2019, por exemplo, o repórter judicial Marcos Miranda foi sequestrado por homens armados no estado de Veracruz, no México, após receber ameaças por seu trabalho no portal Noticias a Tiempo. Miranda permaneceu sequestrado um dia em uma tentativa de intimidação.
Há também casos de cobertura forçada, como o relatado por Bock sobre um fotógrafo na região de Arauca que foi forçado por um grupo das FARC a tirar fotos de um policial que havia sido sequestrado para desmentir rumores de que o policial havia morrido.
Esses são alguns exemplos que mostram a complexidade da definição de “cobertura de conflitos violentos” na América Latina hoje. Os dias de correspondentes cobrindo guerras civis na América Central ou confrontos com guerrilhas na Colômbia deram lugar a confrontos entre narcotraficantes ou narcotraficantes com militares no México; a incursões de gangues armadas em bairros de cidades hondurenhas ou brasileiras; a ameaças da polícia ou ataques de seguranças privados.
Medidas de segurança
Na medida em que surgiram grupos que recorrem às armas para resolver conflitos ou promover seus interesses, os jornalistas da América Latina acharam necessário adotar medidas de segurança para lidar com situações imprevistas que possam resultar em violência armada. Para um repórter de Guadalajara, Rio de Janeiro ou San Pedro Sula, é impossível saber quando um passeio por um bairro ou a cobertura de uma presença policial terminará em tiroteio. Da mesma forma que os repórteres equatorianos que foram à fronteira com a Colômbia para cobrir uma onda de violência não sabiam que eles próprios se tornariam alvos.
Isso levou muitos jornalistas a desenvolverem protocolos de segurança que devem seguir ao cobrir situações que vão desde uma cena de crime até uma operação policial, e desde uma simples visita para entrevistar membros de gangues em um bairro até uma incursão militar em uma área urbana ou rural.
No entanto, existem distinções entre os tipos de jornalistas que fazem esse tipo de cobertura. No caso da Colômbia, onde há décadas há conflitos entre forças de segurança, grupos armados e gangues criminosas, há uma diferença entre os jornalistas de um veículo nacional que cobrem o conflito em uma região e os jornalistas que vivem e trabalham nessa mesma região.
“Há consciência dos riscos quando se trata de jornalistas de veículos nacionais que viajam para uma região. Eles adotam transporte seguro e outros tipos de medidas”, diz Jonathan Bock, da FLIP. "Por outro lado", acrescenta, "a situação dos jornalistas locais é dramática, estão em condições extremamente precárias".
Mas mesmo no caso de jornalistas de veículos com recursos para cobrir e tomar medidas de segurança, os riscos se materializam.
Um dos exemplos mais recentes de conflitos perigosos para os jornalistas cobrirem é na fronteira da Colômbia com a Venezuela, onde grupos das FARC estão lutando com as forças armadas venezuelanas. Em 2021, dois jornalistas foram detidos pelas autoridades venezuelanas enquanto faziam uma cobertura para o canal NTN24.
Repórteres e editores tiveram de aprender a desenvolver consciência de qualquer situação para estar alerta aos perigos que podem estar à espreita e ter o cuidado de planejar seus movimentos e rotinas sabendo que, a qualquer momento, podem se encontrar em um fogo cruzado. Esses protocolos foram adotados individualmente, mas também foram promovidos por jornalistas em redações, especialmente para fazer com que gerentes de empresas de mídia investissem em treinamento de segurança.
O Guia de Segurança do CPJ indica que, para compensar a falta de treinamento de segurança para cenários não militares, na última década foram desenvolvidos modelos de treinamento que abrangem cenários civis e outros aspectos como a segurança digital.
“Cursos sobre ambientes hostis e primeiros socorros são pré-requisitos para denunciar com segurança qualquer situação que envolva confronto armado”, diz o guia, que também menciona a importância dos exercícios de como reagir em um cenário de sequestro.
Nos próximos capítulos deste e-book sobre a segurança de jornalistas na América Latina e no Caribe, aprofundamos a cobertura dos conflitos violentos na região e suas diferentes formas.
Embora em vários países existam ou estejam previstos mecanismos de proteção para ajudar os jornalistas que possam estar em perigo de ser atacados por um grupo armado, analisaremos essas ferramentas em capítulos posteriores, pois esses mecanismos abrangem situações mais arriscadas, além do conflito armado. Em vez disso, vamos nos concentrar em apresentar vários casos de ataques a jornalistas nesse contexto e apresentar recomendações de medidas de segurança que podem ser adotadas, tanto individual quanto coletivamente nas redações.
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*Este é o quarto artigo de um projeto sobre segurança de jornalistas na América Latina e no Caribe. Este projeto da LatAm Journalism Review é financiado pelo Fundo Global de Defesa da Mídia da UNESCO.
Leia outros artigos do projeto neste link.