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Como desmandos, assédio a jornalistas e mais de três anos de greve culminaram no fechamento da Notimex

A Agência de Notícias do Estado Mexicano, Notimex, atravessou nove mandatos presidenciais desde sua fundação, em 1968. Não sobreviveu ao décimo mandatário que tinha a responsabilidade de administrá-la e que, em vez disso, anunciou a extinção da agência em seu 55o ano de existência.

A saga que culminou no fim da Notimex, anunciado em abril pelo presidente Andrés Manuel López Obrador, inclui acusações de desmandos, censura e assédio contra jornalistas, supostamente perpetrados pela diretora da agência, Sanjuana Martínez, no cargo desde 2019. Também conta com uma greve dos trabalhadores da empresa que se estende há mais de três anos em protesto a centenas de demissões e supostos abusos trabalhistas cometidos por Martínez.

A decisão de liquidar a Notimex “é um reflexo do atual governo”, disse Jorge Bravo, presidente da Associação Mexicana de Direito à Informação (Amedi), à LatAm Journalism Review (LJR). Assim como outras especialistas ouvidas pela LJR, Bravo sustenta que, embora o descaso do governo de turno com os meios de comunicação públicos seja recorrente, o governo de López Obrador agravou a situação ao intensificar o uso dos meios públicos para a propaganda governista.

“O desdém, o abandono, a pouca importância dada aos meios públicos não são de hoje; sempre existiram, são históricos. Mas esse governo fez um pouco mais contra os meios públicos: transformou-os em cadeias de transmissão de propaganda, de oficialismo; não aumentou seus orçamentos; não teve uma política pública; não modificou as leis para fortalecê-los. Em resumo, não se importou com os meios públicos”, afirmou Bravo.

A justificativa apresentada pelo presidente mexicano para o fechamento da Notimex é que “já não necessitamos de uma agência de notícias no governo”, como ele disse no dia 14 de abril. “Desde que entramos, há um conflito trabalhista, mas não é algo que nos faça falta como governo, pois temos a mañanera”, afirmou López Obrador, se referindo à conferência de imprensa que realiza todas as manhãs, durante a qual com frequência critica jornalistas que publicam investigações sobre seu governo.

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Sanjuana Martínez, diretora de Notimex, e Andrés Manuel López Obrador, presidente do México, em julho de 2019. (Foto: Presidência do México)

Para Bravo, “infelizmente” o presidente tem razão, pois o atual governo de fato não precisa de uma agência de notícias estatal para comunicar suas ações. Porém, é um equívoco equivaler o papel de um meio público ao de uma conferência de imprensa do presidente.

“Uma coisa é uma conferência de imprensa, ou seja, uma estratégia de comunicação política, que depende do presidente, do governo; e outra coisa é uma instituição, um meio público. É verdade, a conferência de imprensa gera as notícias, gera as informações, impõe a agenda. (...) Mas não é um meio público, não é uma instituição, muito menos é independente, plural e diversa, e não tem a responsabilidade histórica de ser algo mais e melhor”, disse ele.

Paula Saucedo, responsável pelo programa de Proteção e Defesa da Artigo 19 no México, acredita por sua vez que o governo mexicano decidiu liquidar a Notimex pela incapacidade de solucionar o conflito laboral instalado no começo de 2020 e arcar com as despesas acumuladas pela empresa nos últimos anos.

“Já é caro demais mantê-la”, disse Saucedo à LJR. “Há três anos não está produzindo notícias porque não podem, porque estão em greve. Essa é a razão, na realidade, porque a diretora da Notimex fez um trabalho tão ruim, se dedicou a atacar pessoas, violar direitos humanos, em vez de exercer seu papel como funcionária pública. (...) [López Obrador] está mais uma vez desinformando e gerando narrativas e histórias na opinião pública que não são corretas para negar a verdade”, afirmou.

Laura Martínez Águila, especialista em comunicação pública e defensora de audiências no Instituto Mexicano de Rádio (IMER), cadeia de rádio pública do país, disse à LJR considerar “preocupante” a maneira unilateral em que o governo tem tomado decisões sobre a Notimex. “A agência não é do governo e não é do López Obrador: é uma agência do Estado mexicano”, disse ela. Como tal, responde ao artigo 6o da Constituição mexicana, que estabelece que “o direito à informação será garantido pelo Estado”, acrescentou.

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A jornalista Laura Martínez Águila: "A agência não é do governo e não é do López Obrador: é do Estado mexicano". (Foto: Arquivo pessoal)

“Essa eterna mistura entre comunicação pública e comunicação governamental é o que está acontecendo com o fechamento da Notimex”, disse Águila.

Bravo também criticou a falta de transparência na liquidação da Notimex, já que desde abril o governo não divulgou mais informações sobre o processo.

“Não é um processo que esteja público. Nada foi publicado, não há um decreto, não há um acordo que diga o que está sendo feito. Estão fazendo isso à margem da legalidade”, disse ele.

LJR entrou em contato com a Secretaria de Governo do México pedindo informações sobre o processo de liquidação da Notimex, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.

‘Caos’ sob a nova direção

Enquanto agência de notícias estatal, Notimex tinha como missão cobrir questões de interesse público no México e no exterior desde o ponto de vista do Estado mexicano. Muitos meios dentro e fora do país publicavam conteúdo da agência, que tinha dezenas de correspondentes internacionais e nos Estados mexicanos. Também contava com o trabalho de jornalistas desde sua sede na Cidade do México, capital do país.

López Obrador, que chegou ao poder em dezembro de 2018, nomeou em março de 2019 Sanjuana Martínez, uma jornalista investigativa premiada nacionalinternacionalmente, como diretora da Notimex. Nos meses seguintes houve mais de 200 demissões na agência, segundo informe da Federação Internacional de Jornalistas (FIJ). O Sindicato Único de Trabalhadores da Notimex (SutNotimex) alegou que as demissões eram injustificadas e reclamou a readmissão de trabalhadores que entraram na Justiça para reaver seus postos de trabalho e o pagamento das prestações devidas àqueles que não retornariam. Também acusou violações ao contrato coletivo de trabalho e solicitou sua renegociação.

Em julho de 2019, Martínez justificou as demissões alegando corresponder a medidas de austeridade e controle orçamentário do governo. Também disse que a agência estava dominada por “uma máfia” e pela “corrupção” e que, como diretora, estava liderando um “processo de transformação” na empresa.

Uma reportagem publicada em novembro de 2019 na revista Proceso, intitulada “Caos en Notimex”, relatou que a “suposta cruzada de [Martínez] contra a corrupção sindical se transformou, segundo ex-funcionários da agência, em ‘terrorismo trabalhista’ devido à violação sistemática dos direitos dos trabalhadores, ameaças, assédio e até mesmo filiação forçada a um sindicato chapa-branca que, além do caos jurídico, administrativo e informativo, colocou a agência de notícias do Estado mexicano em uma grave crise”.

Em fevereiro de 2020, 11 meses após a chegada de Martínez, o SutNotimex iniciou uma greve, a segunda em toda a história da agência – a primeira, que durou duas horas, aconteceu em 1993, segundo o sindicato. A entidade afirmou que a greve acontecia pela recusa da direção ao diálogo e em meio a “um ambiente de perseguição e assédio trabalhista emprendidos por Martínez, no qual os trabalhadores sofremos maus-tratos, violência de gênero e repercussões econômicas, assim como demissões injustificadas e difamação”.

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O site da Notimex não é atualizado desde junho de 2020. (Captura de tela)

 

No dia seguinte ao início da greve, a Notimex publicou uma nota sustentando que a paralisação havia “fracassado” e que “a tentativa de interromper os trabalhos não terá efeito na produtividade, já que a Agência seguirá trabalhando a cem por cento”. A agência seguiu funcionando e a direção realizou mais demissões e contratações no período, o que, segundo a lei mexicana, é proibido durante uma greve, reportou o site Expansión Política.

Em junho de 2020, já em meio à pandemia de COVID-19, a Notimex interrompeu suas atividades por determinação da Junta de Governo da agência, em respeito ao direito de seus trabalhadores à greve. O site e os perfis em redes sociais da agência não são atualizados desde então.

Assédio coordenado a jornalistas

Em maio de 2020, uma investigação conjunta da Artigo 19 no México, do meio jornalístico Aristegui Noticias e do Signa_Lab, laboratório interdisciplinar do Instituto Tecnológico e de Estudos Superiores do Ocidente (ITESO), apontou que a direção da Notimex estava por trás de “ações coordenadas para assediar e atacar jornalistas e ex-trabalhadores que consideram ‘adversários’”.

Na ocasião, 10 pessoas que haviam trabalhado próximo a Martínez denunciaram que ela e seus subordinados na agência ordenavam trabalhadores “a publicar mensagens no Twitter e utilizar hashtags contra jornalistas e ex-trabalhadores” da empresa. Disseram também que a diretora solicitou que os funcionários da agência utilizassem seus perfis pessoais e criassem perfis falsos “com a finalidade de defender sua gestão na Notimex”.

Um mês depois, as organizações publicaram um novo informe com mais evidências de que Martínez seguia comandando ondas de ataque no Twitter contra pessoas que a criticavam e que apoiavam os grevistas da Notimex. Segundo os denunciantes, ela exigia que trabalhadores da empresa tomassem parte no assédio online coordenado, e retaliava aqueles que se recusavam a participar, inclusive com demissão.

Martínez também “estaria manipulando a linha editorial da agência, dando ordens para não cobrir determinadas instituições e autoridades públicas”, disseram as fontes da investigação.

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Paula Saucedo, da Artigo 19 no México: AMLO "desinformou sobre nosso trabalho e nossos recursos". (Foto: Arquivo pessoal)

“As informações detalhadas agora levam à conclusão de que a direção da Notimex autorizou, solicitou, realizou atos e utilizou recursos materiais, humanos e financeiros para se beneficiar diretamente por meio da defesa de sua própria pessoa e de ataques a jornalistas, restringindo assim o exercício de sua liberdade de expressão. O acima exposto, de acordo com a Lei Geral de Responsabilidades Administrativas, implicaria o cometimento de faltas graves, como apropriação indevida de recursos e abuso de funções, que – se comprovadas pelas autoridades competentes – poderiam constituir crimes”, escreveu a Artigo 19.

Martínez, por sua vez, negou as acusações apresentadas contra ela na investigação. Em entrevista a Aristegui Noticias, ela disse ser alvo de ataques online perpetrados por “bots e trolls todos os dias” e repetiu a acusação de que o SutNotimex é um sindicato “mafioso” que pratica “terrorismo sindical”. Também disse que algumas das fontes da investigação publicada pela Artigo 19 haviam sido demitidas e denunciadas penalmente por supostamente terem fraudado a Notimex.

Em março de 2021, o Departamento de Estado dos Estados Unidos publicou seu relatório anual sobre direitos humanos no México, citando as denúncias apresentadas por Artigo 19, Aristegui Noticias e Signa_Lab contra Sanjuana Martínez. O governo López Obrador reagiu atacando a Artigo 19, em “um dos maiores golpes que já recebemos como organização”, disse Saucedo.

“Isso desencadeou uma série de ataques, iniciados pelo presidente da república, nos quais ele nos mencionou maliciosamente e desinformou sobre nosso trabalho e nossos recursos. Até mesmo o jornal La Jornada, que tem um alcance muito grande e é o meio de comunicação que recebe a segunda maior quantia de fundos de publicidade oficial deste governo, publicou em sua primeira página que ‘a Artigo 19 recebe fundos do exterior para atacar o governo’”, contou ela.

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Detalhe da primeira página da edição de 1o de abril de 2021 de La Jornada. (Captura de tela)

Como reporta a matéria de La Jornada do dia 1o de abril de 2021, López Obrador disse, em uma de suas conferências de imprensa, que todos os funcionários da Artigo 19 “pertencem ao movimento conservador que está contra nós”. Também insinuou que a organização recebe dinheiro dos Estados Unidos e de entidades estrangeiras para atacar seu governo.

Na ocasião, a Artigo 19 respondeu que os comentários do presidente mexicano “são uma tentativa de desviar a atenção de sua incapacidade de combater alguns dos problemas endêmicos de direitos humanos no país, inclusive a proteção de jornalistas”.

Segundo Saucedo, nenhuma instituição estatal agiu para investigar as denúncias feitas pelos ex-trabalhadores de Notimex e sancionar possíveis responsáveis. Uma queixa apresentada pela Artigo 19 à Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH) do México foi encerrada meses depois sem ser investigada. A Artigo 19 também apresentou uma denúncia à auditoria da Notimex, que por sua vez a enviou ao Órgão Interno de Controle da Notimex, disse Saucedo. “Desde 2021, seguimos esperando resposta. E agora que vão extinguir a agência, não vai ter resposta”, afirmou ela.

Sem defesa

Perante o esfacelamento de um meio de comunicação público com 55 anos de existência, surpreende que poucas vozes tenham se levantado em defesa da Notimex. Para os especialistas ouvidos pela LJR, a intensificação do uso da agência para fins de propaganda do governo, o caos administrativo e trabalhista em que a empresa se afundou e o fato de que a Notimex tenha passado três anos sem operar – período em que estourou a pandemia de COVID-19 – contribuíram para que ela fosse “esquecida” pelo público.

“A Notimex foi nulificada, ninguém se lembrava mais dela”, lamentou Águila. “Ela não estava informando, fornecendo as informações de que o público precisava. A relevância da Notimex foi esquecida. Então parecia que [o fechamento] era o destino esperado depois do problema com o sindicato, que nunca resolveram”, disse ela.

Para Bravo, a greve dos trabalhadores da Notimex, embora legítima, também acabou contribuindo involuntariamente para esse desfecho.

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Para Jorge Bravo, presidente da Amedi, fechamento da Notimex é "é um reflexo do atual governo". (Foto: Arquivo pessoal)

“O problema é que os jornalistas não souberam defender o serviço público, o direito à informação. Eles preferiram seus interesses profissionais, que são absolutamente legítimos, mas há algo mais importante, que é o direito à informação e a liberdade de expressão”, disse ele.

Além disso, para ele, a agência também não vinha se adaptando adequadamente às mudanças pelas quais o jornalismo vem passando nos últimos anos, tanto em seus modos de produção quanto em seus modos de distribuição e consumo.

“As agências de notícias não são tão importantes quanto eram no século 20”, disse Bravo. “O papel que uma agência de notícias deveria ter foi matizado pela própria realidade, por uma pluralidade e diversidade que os meios públicos não incorporaram, incluindo a agência de notícias, que está sendo superada porque essa pluralidade e diversidade existem na realidade, nas redes sociais, na internet. Há mais meios independentes, há mais concorrência, e não souberam resgatar os valores e princípios que os tornariam realmente meios públicos fundamentais”, afirmou.

Nesse sentido, Águila ressaltou a importância de diferenciar uma visão de Estado da comunicação, que deveria atender ao interesse público, e uma visão de governo, que tende a priorizar a propaganda.

“São duas coisas diferentes, que na situação da Notimex não foram percebidas. Não era um jornal, uma rádio ou um canal de TV. Era uma fonte de informações para a população e para outras mídias. Pensar que isso foi descartado e desapareceu apenas porque o presidente tem um espaço todas as manhãs é não compreender os alcances e o poder da informação. E, para as nossas democracias latino-americanas, diferenciar o papel do Estado do papel do governo é fundamental para evitar a concentração do poder”, disse ela.

Saucedo destacou que o fechamento da Notimex, embora não pareça tão grave quanto a violência letal contra jornalistas no país, se soma a outros aspectos no panorama político e informacional no México para agravar a situação da liberdade de imprensa e de expressão no país.

“A ausência da Notimex se junta com a violência contra a imprensa, com o assédio à imprensa, com a precariedade da imprensa, e aumenta o ambiente já bastante hostil para que a imprensa realize seu trabalho e para que o público tenha informações de interesse público. Portanto, é muito grave que a agência de notícias não exista, e as razões pelas quais a agência de notícias deixa de existir são muito mais graves”, disse ela

LJR tentou contato com o governo do México e com o SutNotimex, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.

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