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Como duas repórteres encontraram 63 candidatos às eleições municipais procurados pela Justiça no Brasil

O comentário de um leitor desencadeou uma investigação jornalística que levou às prisões de 36 candidatos às eleições municipais no Brasil, marcadas para o dia 6 de outubro. Alvos de mandados de prisão por acusações diversas – de dívidas de pensão a homicídio –, esses candidatos estavam fazendo campanha nas ruas e nas redes sociais.

“Recebemos uma denúncia de que um candidato estava foragido por estupro de vulnerável. Fomos atrás e não encontramos nada que confirmasse essa informação. Só que, a partir dali, pensamos ‘ok, ele não está foragido, mas será que tem candidatos foragidos?’”, disse a repórter do G1 Camila da Silva à LatAm Journalism Review (LJR).

Um leitor deixou essa denúncia em uma das 5.569 matérias automatizadas que o G1 publicou com as listas de candidatos para cada município brasileiro. Ele levou Silva e a repórter Judite Cypreste a realizar uma investigação, baseada em jornalismo de dados, que identificou 63 candidatos com mandados de prisão pendentes.

Segundo Silva, o editor Vitor Sorano sugeriu que Cypreste e ela fizessem essa investigação cruzando os dados do Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP), mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com as informações disponíveis no portal de Divulgação de Candidaturas e Contas Eleitorais (DivulgaCand), mantido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

“Eu já tinha experiência com o BNMP e sabia que ele tinha alguns problemas”, disse Cypreste à LJR. “Você tem que baixar os mandados de prisão por estado, porque não tem como baixar nacionalmente. Aí travou em São Paulo, que não consegui baixar porque há um limite de 30 mil linhas por download e São Paulo tem mais de 60 mil mandados de prisão em aberto.”

Enquanto Cypreste conversava com o CNJ para conseguir os dados de São Paulo, ela começou a análise com os dados dos outros estados usando a linguagem de programação Python. Daí surgiram os primeiros nomes em comum nas bases de mandados e de candidatos, que já indicavam a existência de dezenas de candidatos procurados pela Justiça.

Silva passou então a confirmar se os nomes nas duas bases de fato correspondiam à mesma pessoa. Nesse processo ela encontrou que, entre os mandados do Distrito Federal, três haviam sido expedidos pelo gabinete do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. As repórteres suspeitaram que se tratassem de pessoas acusadas de envolvimento nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023 em Brasília, pois Moraes é relator do inquérito do STF que investiga as invasões das sedes dos Três Poderes.

Elas confirmaram que os alvos desses mandados de prisão eram acusados pelos ataques de 8 de janeiro e eram candidatos a vereador em municípios de Paraná, Santa Catarina e São Paulo. Ouviram as polícias civis e os departamentos da Polícia Federal (PF) em cada estado e as defesas dos candidatos procurados pela Justiça, e no dia 14 de setembro publicaram a primeira reportagem dessa apuração. Na tarde do mesmo dia, um dos candidatos foi preso. Os outros dois foram presos nos dias seguintes.

Agilidade e precisão

Nesse meio tempo, o CNJ enviou a Cypreste os mandados do estado de São Paulo, completando a coleta dos dados do BNMP. Elas puderam, então, finalizar a análise nacional, cruzando 302.509 mandados de prisão e 461.564 registros de candidaturas. Elas encontraram 108 casos em que o nome e a data de nascimento de uma pessoa eram iguais nas duas bases.

Mas essas informações não eram suficientes para confirmar as identidades de candidatos procurados pela Justiça. E, em decisão recente do TSE, o DivulgaCand não disponibiliza mais os números de CPF (Cadastro de Pessoa Física) dos candidatos.

“Infelizmente, diversos cruzamentos que poderíamos fazer, inclusive esse, de uma forma mais fácil, não conseguimos fazer”, disse Cypreste. “Os únicos números de identificação [disponíveis no DivulgaCand] são o título de eleitor e um número cadastral interno do TSE, que serve para fazer outros tipos de cruzamento dentro das próprias bases deles.”

Silva explicou que os documentos dos candidatos disponíveis na base de dados do TSE estão com CPF e outras informações pessoais tarjadas. No entanto, a certidão de antecedentes criminais apresentada pelos candidatos ao TSE pode ser autenticada junto à instituição que a emitiu. Na maioria dos casos, a autenticação revelou os números de CPF dos candidatos, que as repórteres então compararam com os números de CPF que constavam nos mandados de prisão. Silva ressaltou, porém, que havia mandados sem CPF, e nesses casos elas tiveram que encontrar outras vias de confirmação.

Enquanto elas checavam os dados, alguns mandados foram excluídos do Banco Nacional de Mandados de Prisão e alguns candidatos foram considerados inaptos a concorrer pela Justiça Eleitoral. As repórteres confirmaram que, além dos três candidatos procurados pela Justiça em relação aos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, outros 60 candidatos às eleições em todo o país tinham mandados de prisão em aberto.

A maioria dos casos (46) estava relacionada a dívidas de pensão alimentícia, o que implica um tipo de prisão que é revogada logo após o pagamento do valor devido, explica a reportagem. Mas há 14 casos criminais, com quatro candidatos procurados em casos de furto ou roubo, três de homicídio, dois de estupro de vulnerável, dois de estelionato, um de lesão corporal e um de associação criminosa (em um caso não foi possível saber o crime relacionado ao mandado de prisão).

Jornalistas do G1 espalhados pelo país entraram na apuração para encontrar e ouvir todos os candidatos e seus partidos.

“Tivemos uma preocupação enorme de não imputar crime e nem julgar nenhuma dessas pessoas, porque o foco da reportagem não é esse. Essa checagem era primordial, porque poderíamos ter colocado uma pessoa que não era procurada. E o impacto regional disso tem um peso tremendo. Para mim essa foi a parte mais desafiadora, porque tivemos que fazer tudo isso com muita agilidade sem perder a precisão”, disse Silva.

No dia 19 de setembro, o G1 noticiou que a PF disse ter prendido 19 candidatos procurados pela Justiça entre os dias 17 e 19 – depois, portanto, da publicação da primeira reportagem do G1 sobre candidatos com mandados de prisão em aberto.

Segundo comunicado da PF, até o dia 20 de setembro, 36 candidatos com mandados em aberto foram presos nos estados de Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Maranhão, Acre, Rio Grande do Sul, Sergipe, Roraima, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina.

LJR entrou em contato com a PF e questionou a conexão entre as reportagens do G1 e as prisões realizadas nos últimos dias. A PF respondeu que “não se manifesta sobre eventuais investigações em andamento nem sobre ações futuras”.

Desde o dia 21 de setembro, candidatos procurados pela Justiça não podem ser presos, pois a lei brasileira determina que, nos 15 dias anteriores às eleições, candidatos só podem ser detidos ou presos em caso de “flagrante delito”.

Realidade exposta

As reportagens do G1 explicam que, segundo a lei brasileira, apenas pessoas condenadas com sentença definitiva ou decisão colegiada de juízes estão proibidas de disputar eleições. Portanto, pessoas com mandados de prisão em aberto não estão impedidas de se candidatar. No entanto, uma pessoa procurada pela Justiça pode ser presa a qualquer momento, e uma eventual prisão dificulta o exercício do mandato.

“Uma prisão preventiva pode durar vários meses, comprometendo o exercício do cargo, como, por exemplo, no caso de um prefeito. Por isso, é fundamental que o eleitor saiba em quem está votando”, disse o advogado Alberto Rollo, especialista em direito eleitoral, ao G1.

A investigação realizada por Silva e Cypreste aponta para uma falta de comunicação na Justiça brasileira, disse Cypreste.

Um exemplo é o caso revelado pela investigação de um candidato que disputa sua terceira eleição com um mandado de prisão em aberto. Ele tem um mandado de prisão preventiva emitido em 1997 e se candidatou a vereador em 2016, 2020 e 2024. Segundo o G1, uma denúncia do Ministério Público de São Paulo afirma que ele matou a tiros um homem após uma discussão em um bar em 1996. De acordo com a reportagem, a defesa do candidato sustenta que a única prova contra ele é o depoimento da mulher da vítima, e que o candidato desconhecia o mandado de prisão. O julgamento do homicídio ainda não foi concluído.

Em outro caso, um homem condenado por estupro de vulnerável teve sua candidatura a vereador aprovada na Justiça Eleitoral quatro dias antes de sua condenação se tornar definitiva.

“Muita gente vai pensar que o impacto dessa matéria são as prisões. Para mim, particularmente, mais do que as prisões, [o impacto] é começar uma discussão para a Justiça se comunicar mais e os dados serem utilizados pelos órgãos públicos de uma maneira realmente eficiente, e uma discussão sobre como as leis têm brechas”, disse Cypreste.

Silva também destacou que a repercussão da reportagem entre os leitores e no debate público foi um impacto importante, para além das prisões.

“Foi legal ver nossos leitores comentando ‘nossa, mas isso pode?’, ‘caramba, como ninguém falou disso antes?’ ou ‘nossa, quantos casos!’. Tudo bem, estamos falando de eleições municipais, são muitos candidatos e esses casos são muito pouco dentro do total. Ainda assim, é uma realidade que precisa ser exposta, e conseguimos fazer isso.”

Regras para republicação

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