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Como o Spotify iniciou – e matou – o boom de podcasts na América Latina

  • Por Stan Alcorn/Rest of World
  • 10 setembro, 2024

Este artigo foi publicado originalmente pela Rest of World, uma redação sem fins lucrativos que cobre o impacto da tecnologia fora do Ocidente. 

Em julho, o podcast Mujeres Valientes ganhou o Prêmio Gabo, um prestigioso prêmio latino-americano para narrativas em áudio, tornando-se um símbolo do sucesso da estratégia de podcasts do Spotify. A série feminista sobre uma comunidade indígena em Oaxaca foi um dos muitos podcasts na região apoiados pelo Spotify, recebendo elogios da crítica após o grande investimento regional.

No entanto, nos últimos dois anos, o Spotify recuou em seus investimentos em podcasts. A empresa encerrou contratos em toda a América Latina de língua espanhola. Mais de um ano após seu lançamento, o premiado Mujeres Valientes ainda está buscando financiamento para uma segunda temporada, disseram suas produtoras à Rest of World.

Este é apenas um pequeno exemplo das consequências globais da entrada precipitada – e posterior retirada – do Spotify no mundo dos podcasts. Nos Estados Unidos, o maior mercado de podcasts do mundo, a empresa investiu centenas de milhões de dólares, mas depois mudou de rumo, cancelando programas queridos e demitindo centenas de funcionários. Contudo, nos EUA, o Spotify era apenas um entre muitos. Na América Latina, a empresa foi tão dominante que seu nome se tornou sinônimo tanto do auge quanto da queda que os produtores de podcasts enfrentam atualmente.

“Muitas dessas empresas dependiam dos orçamentos do Spotify para fazer podcasts, e agora elas interromperam a produção porque não têm esses orçamentos e vão ter que repensar o que fazer”, disse María Jesús Espinosa de los Monteros, chefe de áudio do gigante da mídia espanhola Prisa e a pessoa que entregou o prêmio a Mujeres Valientes, à Rest of World.

O Spotify não respondeu se financiaria uma segunda temporada de Mujeres Valientes, que foi apresentado e criado por Nayelli López Reyes, uma mulher indígena Triqui de 25 anos. “Estamos incrivelmente orgulhosos do que criadoras como Nayelli conseguiram alcançar participando dos programas de criadores do Spotify, e estamos sempre ansiosos para apoiar os criadores na realização de seus sonhos”, disse Nacho Gil, chefe de marketing e podcast na América Latina, em um comunicado à Rest of World.

O Spotify chegou relativamente tarde no mundo dos podcasts, mas o que lhe faltou em timing, tentou compensar em escala. Em 2019, a empresa gastou quase 400 milhões de dólares adquirindo a Gimlet, Anchor e Parcast: empresas que prosperaram após o sucesso estrondoso do podcast Serial. O CEO do Spotify, Daniel Ek, disse que fazia parte de uma estratégia “audio-first” – um plano para se tornar “o principal produtor de podcasts”.

Em uma teleconferência com investidores em 2019, Ek esclareceu que “embora nossas aquisições tenham sido focadas em conteúdo de língua inglesa, não acho que deva se interpretar que isso é uma estratégia apenas em inglês. É muito uma estratégia global”.

No final daquele ano, três dos cinco principais podcasts da plataforma eram suas próprias produções na Alemanha, e a empresa estava promovendo novos programas em Índia, México, Brasil, Colômbia e Argentina. Os relatórios de lucros do Spotify começaram a citar intermitentemente o número de podcasts originais lançados fora dos EUA: Foram 26 no último trimestre de 2019, 58 no terceiro trimestre de 2020 e 100 no segundo trimestre de 2021.

Os novos programas trouxeram novos ouvintes ao Spotify ao redor do mundo, mas o efeito foi particularmente dramático na América Latina, onde se tornou a plataforma de podcasts para quase todos. Uma pesquisa de 2024 revelou que 90% dos ouvintes da região usam o Spotify para podcasts. Pesquisas comparáveis descobriram que apenas 39% dos indianos urbanos ouvem podcasts pelo Spotify. No Oriente Médio e Norte da África, uma pesquisa de 2020 colocou a participação do Spotify em 26%, perdendo apenas para a Apple.

O domínio do Spotify nos podcasts na América Latina reflete, em parte, como os podcasts eram de nicho na região antes da chegada da plataforma. “Tivemos alguns artigos em jornais sobre o boom dos podcasts e Serial, mas foi só isso”, disse o produtor de áudio argentino Mariano Pagella à Rest of World.

Como resultado, não havia um equivalente local da Gimlet que o Spotify pudesse simplesmente adquirir. Então Javier Piñol, na época chefe de estúdios do Spotify para a América Latina, começou a encomendar programas individuais de produtores independentes. Antes desses telefonemas, muitos desses produtores viam os podcasts mais como uma paixão do que uma carreira.

“Aqui, é quase como se o Spotify tivesse construído a indústria”, disse Luciano Banchero, cofundador do estúdio de podcast argentino Posta, à Rest of World. (A Posta produz a série de áudio Long Reads da Rest of World.) “Estou falando da Argentina, mas isso se aplica ao México, ao Chile, à Colômbia.”

Os orçamentos eram pequenos em comparação com os dos EUA, mas podiam ser cinco ou dez vezes maiores do que o típico localmente, disse Banchero. De repente, o podcasting parecia uma forma viável de ganhar a vida. Profissionais de cinema, rádio e publicidade adotaram o novo título de “produtor de podcast”.

O volume de programas encomendados pelo Spotify rapidamente aumentou. “[O chefe de estúdios do Spotify para a América Latina] disse: ‘Precisamos de mais podcasts’”, disse Banchero. “E eu lembro que enviamos um deck com oito programas, e em uma hora, lembro que ele respondeu e disse: ‘Vamos fazer todos.’”

A audiência da Radio Ambulante – um popular podcast em espanhol com histórias de toda a América Latina, fundado em 2012 – subiu de menos de 30% para 45% na região, enquanto seus ouvintes no Spotify passaram de 8% para 46%, contou a CEO Carolina Guerrero à Rest of World. Dois terços desses ouvintes latino-americanos estavam concentrados em países onde o Spotify focou sua atenção: México e Colômbia. “Temos mais ouvintes na América Latina graças à expansão do Spotify lá. Muitas pessoas nos descobriram por lá”, disse Guerrero.

Até abril de 2022, o Spotify ainda dizia aos investidores que pretendia gastar mais alguns anos investindo significativamente em conteúdo original. No entanto, a expansão estava prestes a parar abruptamente.

Em 2022, como outras empresas de tecnologia dependentes de anúncios, o preço das ações do Spotify começou a cair, e a perspectiva de um retorno imediato de seu investimento de mais de 1 bilhão de dólares em podcasts parecia cada vez mais improvável. Em outubro de 2022, a empresa começou a cancelar programas e demitir produtores nos EUA.

Durante uma teleconferência com investidores naquele mês, Ek disse: “Este grande investimento que fizemos no lado dos podcasts vai se reverter em 2023”.

Inicialmente, alguns produtores na América Latina permaneceram otimistas. Mesmo que a estratégia global estivesse mudando, a América Latina continuava sendo o que o discurso dos investidores chama de “mercado emergente” – onde os custos são mais baixos do que em outros lugares e há mais potencial de crescimento no número de ouvintes.

“Apesar das grandes mudanças na indústria, no Studio Ochenta sabemos que 2023 será o ano em que as maiores estrelas dos podcasts cruzarão o canal de áudio para a Europa, América Latina e Ásia”, escreveu Lory Martinez, fundadora e CEO do Studio Ochenta, produtora do podcast de ficção premiado pelo Spotify La Cabina Telefónica, no LinkedIn no início de 2023. “Os podcasts em espanhol vão salvar e elevar o podcasting em 2023”, disse ela em um post subsequente.

O otimismo não durou muito. Produtores latino-americanos disseram à Rest of World que o Spotify não comunicou oficialmente a mudança em suas políticas para eles. “Havia pequenos sinais. Contratos que não foram renovados”, disse Banchero.

Contratos que já estavam assinados ainda seguiram adiante, e, em 2023, o Spotify continuou a produzir programas como o premiado Mujeres Valientes e outros três podcasts que ganharam o prestigioso Prêmio Onda na Espanha. Dois premiados podcasts originais do Spotify ainda estão nas paradas de “melhores podcasts” da plataforma no momento da redação deste artigo: Meterse al Rancho (número 20 na Colômbia) e La Cruda (número 8 na Argentina). Todos esses programas publicaram seus últimos episódios em 2023, e nenhum anunciou planos para uma nova temporada. O apresentador de La Cruda, que tem mais de 770 mil seguidores no Spotify, agora apresenta um programa de streaming diário no YouTube.

Tanto o ex-chefe de estúdios para a América Latina quanto o produtor contratado para dirigir o escritório em Buenos Aires deixaram o Spotify nos últimos nove meses. Ambos se recusaram a comentar oficialmente quando contatados pela Rest of World.

As declarações sobre essa reviravolta ficaram mais claras no último ano e meio. Em 2023, Ek admitiu ter “pago e investido demais” em conteúdo original e apresentou o fim da Gimlet e Parcast como uma “nova fase”.

Isso deixou os podcasters da região reavaliando seus negócios – e reconsiderando quanto o mercado pode realmente suportar. A Rest of World encontrou produtores que estavam procurando trabalho ou se voltando para o vídeo, além de outros que se sustentavam fazendo podcasts para clientes não relacionados ao Spotify – muitas vezes atraídos por seu trabalho anterior para o Spotify.

“Mais do que um momento de crise, acho que é uma correção de mercado”, disse Espinosa de los Monteros, da Prisa, à Rest of World. Sua empresa investirá mais dinheiro na América Latina em 2024 do que em 2023, embora ainda muito menos do que o Spotify fez em seu auge.

“Claramente, ninguém vai investir tanto quanto o Spotify”, disse ela. “Mas, realmente, e isso acontece com bolhas, talvez o mercado não precisasse investir tanto.”


Stan Alcorn é um repórter investigativo e jornalista de rádio baseado em Bogotá, Colômbia.

Traduzido por Carolina de Assis

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