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Comprova elimina etiquetas 'falso' e 'enganoso' em mudança de estratégia contra desinformação

O Projeto Comprova, iniciativa colaborativa de checagem de fatos no Brasil, abandonou as etiquetas "falso", "enganoso", "sátira" e "comprovado" em suas checagens e passou a adotar uma abordagem mais ampla no combate à desinformação. 

José Antonio Lima, editor assistente do projeto, disse que a mudança foi motivada pelo entendimento de que a abordagem anterior focava demais no conteúdo em si e negligenciava outros componentes essenciais da desinformação, como sua origem e o que a torna crível para tantas pessoas. 

“Percebemos que não basta fazermos uma mera refutação factual das alegações”, disse o jornalista à LatAm Journalism Review (LJR). “As verificações agora investigam não apenas as evidências e alegações das publicações virais, mas também quem são os criadores desses materiais e seus interesses, além das táticas utilizadas para persuadir as pessoas e levá-las a acreditar no que foi publicado. A ideia geral é tornar o conteúdo mais palatável com o intuito de contribuir com o debate público, permitindo que as pessoas tomem suas decisões, independentemente de sua coloração partidária ou ideológica, com base em fatos verdadeiros.”

Além disso, Lima disse que com o fim do uso das etiquetas de classificação dos conteúdos, a expectativa é que ao menos uma parte do público mais afetado pela desinformação passe a se engajar com conteúdos que trazem informações verdadeiras. 

“As etiquetas acabavam funcionando como um obstáculo ou uma barreira à conexão entre a verificação e o público”, disse ele à LJR. “Paramos de usá-las justamente após concluirmos que as pessoas têm uma aversão aos conteúdos que vão de encontro a sua visão de mundo.”

As mudanças, implementadas definitivamente após quatro meses de testes, representam uma reformulação metodológica na iniciativa, que foi lançada em 2018 e hoje reúne jornalistas de 42 veículos de comunicação de diversas partes do Brasil que trabalham de forma colaborativa. 

O Comprova tem uma equipe própria de editores que reúne os conteúdos suspeitos e envia esse material ao grupo de verificadores que participam do projeto. Repórteres das redações parceiras da coalizão se candidatam voluntariamente para checar o conteúdo, que costuma ser verificado por três jornalistas de diferentes veículos membros do Comprova. Depois que é encerrada a apuração, os jornalistas escrevem um relatório que é submetido à revisão de seus pares e só é publicado quando pelo menos três outras redações participantes revisarem e validarem a apuração e os resultados obtidos. A matéria final é publicada no site do Comprova com as marcas dos veículos que participaram de todo o processo (da apuração e verificação posterior do trabalho feito) e pode ser incorporada ou citada pelas redações parceiras em sua própria cobertura. 

Repensando títulos

Além do fim das etiquetas classificatórias, foi instituída também uma nova forma de pensar os títulos das checagens. A proposta é que todo título passe a ser “afirmativo da verdade” e evite reproduzir a informação falsa, mesmo que seja para negá-la. 

“No cenário atual, é difícil imaginar um debate público sem desinformação. Como dizem alguns especialistas, a desinformação não é mais um defeito do debate público, mas sim uma característica dele que dificilmente será eliminada”, disse Lima. “Assim, na prática estamos comprometidos com a redução do dano causado pela desinformação. A questão dos títulos se encaixa nisso.”

A repórter Gabriella Braz, parte do time do Comprova pelo jornal Correio Braziliense, disse que o maior desafio das novas diretrizes tem sido adaptar o pensamento e a forma de construir títulos e textos para explicar para o leitor que se trata de uma peça de desinformação sem dizer que aquilo é falso. 

“Antes as matérias diziam: é falso que tal coisa aconteceu. Hoje não, a gente tem que pensar num título muito mais indireto de certa forma porque entendemos que essa etiqueta [de falso] pode afastar justamente o público que caiu nessas peças [de desinformação]”, disse Braz à LJR. “Toda essa ideia de falar a verdade primeiro, de não ficar usando o tempo todo ‘falso’, ou ‘enganoso’, ou o ‘não’ muda muito a nossa mentalidade na hora de pensar no texto.”

Para além da questão do texto, o novo formato trouxe mais reflexão para todo o processo de apuração. Por exemplo, para dar conta de todos os elementos que compõem a peça de desinformação — quem cria os conteúdos e as táticas para torná-los críveis — é feita uma análise profunda das páginas que produzem os conteúdos checados, do discurso usado por esses perfis, da forma como títulos e legendas são criados e do conteúdo de outras publicações compartilhadas. Tudo isso é destrinchado e pode ser usado nas checagens. 

“Por ser mais complexa a própria cadeia da desinformação hoje, isso tem exigido da gente um processo muito mais reflexivo”, disse Braz. “A gente tem visto durante esse processo muitas características comuns, como o uso de sirene, um ‘urgente’, um conteúdo que parece alarmante. Essas características e também novas técnicas que a gente vê esses perfis usando podem ser um alerta para que as pessoas vão aprendendo com o tempo a identificar [desinformação].”

Mais diálogo contra a desinformação

Braz disse que também passou a ter um olhar mais empático em relação às pessoas que acreditam nesses conteúdos e que tem procurado entender a linha de raciocínio delas. Ela disse que o conteúdo produzido agora é muito mais educativo. 

“Não é porque a gente é checador que às vezes a gente não bate o olho numa coisa e pensa: ‘Poxa, isso aqui eu poderia ter caído se eu não tivesse o hábito de pesquisar’”, ela acrescentou. “Isso é até uma coisa que o Sérgio [Lüdtke, editor] e o Zé [Lima, editor assistente] falam, que às vezes as próprias pessoas têm vergonha de ter caído. Então a gente não pode entrar nessa postura de que é falso, é enganoso. Você tem que entrar num teor mais explicativo mesmo e dizer para aquela pessoa que entende por que ela caiu, mas que agora ela pode ficar alerta.”

A pesquisadora Taís Seibt, doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, disse que abolir as etiquetas pode ser um caminho para o diálogo e para atenuar a resistência das pessoas. A jornalista pesquisa sobre checagem no Brasil há 10 anos. Ela disse que além de um formato de jornalismo informativo, a checagem de fatos é também uma peça de educação midiática e esse canal de diálogo pode ser um instrumento contra a desinformação. 

“Abandonar as etiquetas é um caminho possível. Não sei se é, precisamente, o futuro da checagem, mas é uma possibilidade para atenuar a resistência à correção, que é materializada de forma mais ostensiva nas etiquetas”, Seibt disse à LJR. “Se você compartilha uma informação e alguém responde com uma checagem indicando que era falso, você se sente exposto, e pode sofrer com reações decorrentes dessa exposição. A resposta, muitas vezes, é atacar a correção e os corretores. Há um fator emocional nessa reação, assim como há um apelo emocional na adesão a certas convicções.” 

Seibt observa ainda que no cenário atual de desinformação há uma noção mais clara de que checagens avulsas têm efeito limitado. Isso porque a narrativa da desinformação já está consolidada na memória coletiva de pessoas que têm uma determinada visão de mundo. Segundo a pesquisadora, é mais difícil contornar essa mentalidade usando o fact-checking do jeito que ele nasceu, há uma década. 

“Pouco adianta etiquetar uma peça xis, outras tantas vão fazer o mesmo estrago sem checagem. Por isso também cresce a corrente de pesquisa e prática de prebunking, que seria uma espécie de ‘vacina’. Você de alguma maneira prepara a audiência para quando a desinformação aparecer, sem atribuir a correção a uma peça específica de conteúdo”, disse. “Isso também tem a ver com educação midiática e com o papel educativo do fact-checking, eu diria que do jornalismo de modo geral.”

Nesse sentido, Lima disse que o Comprova também quer ampliar sua capacidade de se antecipar diante da disseminação da desinformação, entre outras coisas, ajudando as pessoas a identificarem conteúdos gerados por IA. O projeto de checagem também passou a verificar golpes virtuais desde abril.

“Pretendemos também reforçar junto ao público a importância de estar ciente sobre as táticas de persuasão usadas para desinformar e sobre o funcionamento dos algoritmos”, acrescentou Lima. “O objetivo é contribuir para criar um ambiente informativo mais saudável, algo que não depende apenas de iniciativas como o Comprova, mas também do poder público, da iniciativa privada, da sociedade em geral e também de cada cidadão.”



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