Porto Alegre avançava pelo sétimo dia consecutivo de chuvas fortes na última sexta-feira, 3 de maio, quando o diretor de redação do jornal Correio do Povo, Telmo Flor, de 64 anos, se pegou olhando fixamente para um quadro pendurado na parede de sua sala. A fotografia emoldurada foi tirada em 1941, durante uma enchente até então sem precedentes: mostra uma mulher com água pelas canelas, em frente à sede do jornal – o histórico Edifício Hudson, localizado no Centro Histórico. Flor se dirigiu então a uma das sacadas do prédio e se pôs a olhar para a Rua Caldas Júnior abaixo. Àquela altura, umas 13 horas, a água barrenta já tinha avançado até a quadra anterior ao edifício. O jornalista passou a tarde liderando a apuração das notícias e vistoriando o nível da água que efluía da bacia hidrográfica do Guaíba, e que avançava pouco a pouco, encontrando brechas largas no muro de contenção.
Por volta das 14 horas, a energia elétrica do bairro foi desligada. Os geradores do Correio do Povo, com diesel suficiente para manter a operação por 48 horas, foram acionados e a equipe se manteve trabalhando, em ritmo intenso, atuando em várias frentes simultâneas. Com a informação de que o parque gráfico do jornal, situado no bairro Quarto Distrito, fora inundado pela enchente, Flor concentrou a cobertura no site da publicação, mas não abriu mão de fechar uma edição no formato flip – a versão digital do jornal impresso, que tem sido publicada diariamente, aberta a não assinantes (a edição do dia 9 de maio tem 20 páginas, praticamente todas dedicadas à cobertura das chuvas).
Desde então, está suspensa a distribuição do periódico em papel, que circula todos os sete dias da semana no formato tabloide. Nesse parque gráfico, criado em 1997, as rotativas foram atingidas pelas águas e só no futuro os danos poderão ser aferidos.
Ainda naquela tarde de sexta, 3 de maio, a prefeitura emitiu um alerta para que o bairro fosse evacuado. Mesmo com essa mobilização, Flor esperava que a água não chegasse ao prédio. Ainda assim, enquanto se dedicava ao fechamento da edição, reunia-se com designers gráficos da equipe para orientá-los a levar para casa os principais computadores, em que estavam instalados programas e sistemas de diagramação. No térreo, onde funcionam os departamentos comercial, de treinamento e de manutenção, além da recepção e da garagem, houve uma pequena força-tarefa para subir sobre as mesas o que fosse possível: de cadeiras e CPUs de computadores a fardos de edições anteriores do Correio e documentos.
De quando em quando, Flor saía à rua, preocupado. No início da noite, chegou a medir o nível da água, constatando que faltavam cerca de 30 cm para que o prédio fosse alagado. Por volta das 21 horas, ele e os sete colegas que ainda estavam no jornal se despediram. Apesar de todo o transtorno daquele dia e do avanço da água, o chefe de redação planejava voltar ao jornal no dia seguinte. Na madrugada de sábado (4 de maio), no entanto, recebeu a notícia de que a enchente agora tinha invadido o imóvel.
“Foi um misto de choque com consternação. Eu trabalho nesse prédio há 39 anos. Olhava para a foto de 1941 e não acreditava na possibilidade de a água entrar no nosso prédio de novo. É chocante”, disse à piauí. “Na despedida, alguém falou: ‘Daqui três dias a gente volta.’ Outro emendou: ‘Na pandemia, a gente falava a mesma coisa e ficou naquilo por dois anos.’ É como na pandemia. E é assustador.” Nos dias seguintes, o nível do Guaíba bateu em 5,33 metros, superando a enchente da década de 1940, que chegou a 4,77 metros.
Diante da informação de que a sede do jornal tinha sido alagada, Flor comprou um par de galochas e começou a se dirigir ao local na manhã de sábado, pensando em entrar no edifício, ver o estrago com os próprios olhos e avaliar o que poderia ser feito. Não pôde sequer chegar perto do endereço. Diversas ruas que davam acesso ao Centro Histórico estavam tomadas pela cheia, impedindo a passagem de carros. Um colega que conseguiu chegar ao prédio, no entanto, relatou o estrago. Pelo celular, Flor recebeu fotos que mostravam salas e corredores inundados, com edições do Correio boiando na água turva. Nos dias seguintes, a enchente chegou ao nível de um metro. A redação, que fica no primeiro andar, não foi atingida.
Sem alternativa, o jornalista voltou para casa, em um pequeno condomínio de prédios localizado no bairro Pedra Redonda, e que continuava com luz, embora estivesse sem água. De lá, comandou a nova edição do jornal, mais uma vez no formato flip. Apesar de os diagramadores terem levado para casa parte dos computadores, a equipe estava com acesso limitado, pois os sistemas centralizados no servidor estavam fora de operação, uma vez que o prédio estava sem energia. Havia possibilidade de acesso pela nuvem, mas de forma limitada.
No domingo, 5 de maio, os entraves se agravaram. Com equipe reduzida, o fechamento da edição se estendeu até as 4 horas da madrugada.
Além de estar no epicentro de uma tragédia humanitária, o diretor tentava se equilibrar entre o esforço para manter a cobertura em pé e saber das necessidades pessoais e profissionais da equipe. Na segunda-feira, 6 de maio, ele tinha dificuldade até de saber com exatidão com quantos profissionais poderia contar – calcula que das oitenta pessoas da redação, apenas cerca de trinta tinham condições estruturais para trabalhar.
Muitos colegas foram desalojados, estavam sem energia elétrica em casa ou não conseguiam se dirigir a um local com condições mínimas de trabalho. Um dos casos que mais preocuparam a equipe foi o da coordenadora de produção, Luciamem Winck, que teve seu apartamento térreo inundado e perdeu praticamente tudo. A água chegou a 1,8 metro e ela precisou se refugiar num andar superior do edifício. Ainda assim, a profissional planejava se dirigir ao litoral do estado, de onde poderia trabalhar.
“Tem a preocupação com o trabalho, com a missão de informar. Mas a gente não se pode permitir formar mais vítimas. Não podemos colocar as pessoas em risco. A vida é mais importante que tudo neste momento”, diz Flor. “Não são só notícias. Os acontecimentos estão do lado da gente, com a gente. Eu tenho três equipes que foram fazer cobertura no interior e que estão ilhadas, sem conseguir voltar para casa.”
O repórter fotográfico Ricardo Giusti, de 63 anos, o jornalista Cristiano Abreu, de 43, e o motorista Alexandre Soares, de 54, partiram da redação do Correio do Povo na manhã de 30 de abril, a bordo de um Citroën C3, com a missão de chegar a Santa Maria, que fica a cerca de 300 km de Porto Alegre. Ao longo do trajeto, passaram por outros municípios, como Santa Cruz do Sul, que já sofriam com enchentes. Registraram o estado de calamidade: ruas inundadas, pessoas sendo resgatadas de suas casas em botes ou aeronaves. Naquele dia, no entanto, não conseguiram chegar a Santa Maria. A 18 km da cidade, a rodovia BR-392 estava submersa.
“Eu contei: havia cinquenta caminhões, além de várias dezenas de carros particulares. Nós tivemos que pernoitar na estrada. Foi uma noite horrorosa. Raios, trovões e uma chuva intensa a noite toda. Assustador”, resume Giusti. O trio dormiu no próprio carro: Soares e Giusti, nos bancos da frente; Alves, no de trás.
Como a água não baixou, na manhã de quarta-feira, 1º de maio, a equipe pegou uma vicinal e fez um longo contorno de cerca de 250 km, passando por quatro municípios, para chegar a Santa Maria pelo lado Oeste. A insistência tinha uma justificativa: o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e sua comitiva decidiram visitar Santa Maria no dia seguinte. Na ocasião, as chuvas tinham provocado 13 mortes e 21 pessoas estavam desaparecidas. Em 13 de maio, o número de mortos confirmados chegou a 147, mais 127 desaparecidos e 2,1 milhões de pessoas diretamente afetadas.
Após a cobertura da missão presidencial e dos efeitos do desastre em Santa Maria, a equipe do Correio iniciou o regresso. Àquela altura, além dos transtornos da catástrofe, a equipe enfrentou outro tipo de percalços. O grupo se preparou para uma expedição de apenas dois dias. Cada um tinha levado apenas uma mochila com duas mudas de roupas e materiais básicos de trabalho – entre os itens, apenas um powerbank (carregador portátil). Ainda em Santa Maria, tiveram que comprar novas roupas, prevendo que a viagem pudesse se estender indefinidamente.
Na noite de sábado, 4 de maio, os três profissionais chegaram a Guaíba, na região metropolitana de Porto Alegre, mas não puderam ir adiante: estavam ilhados. As notícias que recebiam davam conta de 95% de Eldorado, município vizinho, estava inundado. A equipe começou a viagem até lá, mas a rodovia também tinha um ponto de alagamento que impedia a passagem de veículos pequenos. Giusti pegou sozinho uma carona em um caminhão do Exército e chegou ao ponto crítico.
“Tu não imagina o que tinha de moradores de Eldorado que estavam à beira da rodovia, com carros, acampados, esperando alguma coisa que eles nem sabiam o que era. Aquela coisa de refugiados, que a gente vê na Europa”, relata Giusti. Lá, o fotógrafo registrou moradores sendo resgatados em botes e em helicópteros, idosos e crianças com água pela cintura, animais sendo removidos por voluntários. Impossível não recorrer a um clichê: “Era uma cena de guerra”, resume o profissional.
Apesar de ter visto muitos exemplos de solidariedade, Giusti também se assombrou ao presenciar saques. Um deles aconteceu em uma loja de conveniência de um posto de combustíveis. Ele conta que o dono, quando viu o movimento em direção aos produtos, orientou que os funcionários não reagissem. Havia militares do Exército no local, mas ninguém interveio.
O trabalho continuou e, quando a noite caiu, o fotógrafo não conseguiu reencontrar o Exército. Refugiou-se em um abrigo improvisado em um galpão de uma revenda de caminhões. Na manhã seguinte, soube que haveria uma operação de resgate no município. Conseguiu voltar a Guaíba a bordo de um helicóptero da Polícia Militar (PM) do Paraná. Só então reencontrou seus colegas.
“Eu quero que meu jornal tenha a melhor imagem, para informar melhor o meu leitor”, justificou o fotógrafo, que não deixou de se sensibilizar ao longo da cobertura. “Num Grenal [embate clássico do futebol entre o Grêmio e o Internacional], eu, que torço para o Grêmio, sou profissional. Fotografo os dois times da mesma forma. Mas ali [na tragédia], não tinha como. Me emociono, não sou um robô. Nessa hora, todas as fotos têm sentimento”, disse Giusti, que soma quarenta anos de carreira. Na manhã de ontem, 8 de maio, a equipe contabilizava oito dias fora de casa. Eles se preparavam para pegar uma carona em um helicóptero do Exército, que os levaria de volta a Porto Alegre.
As tempestades começaram em 27 de abril e logo se converteram em uma catástrofe humanitária e social. Desde então, os municípios do Rio Grande do Sul registraram mais de 800 mm de água, de acordo com a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), quase oito vezes a média esperada para o mês de maio no estado. Há mais de 79,5 mil pessoas em abrigos e 538 mil desalojadas. Dos 401 municípios gaúchos, 477 relataram problemas decorrentes do temporal.
Na manhã de segunda-feira, 6 de maio, quando soube que a sede do Correio continuava inundada, a editora de política, Mauren Xavier, decidiu transformar seu apartamento num “mini quartel-general” da redação, para que os colegas pudessem trabalhar. Localizado no bairro Cidade Baixa, o prédio estava sem água, mas continuava com acesso à luz e à internet. Por volta das 11 horas, a repórter Flávia Simões chegou, trazendo seu notebook, celular e outros materiais de trabalho. O editor Carlos Corrêa começou a se deslocar para lá, mas não houve tempo. Ao meio-dia, o fornecimento de energia elétrica foi interrompido, desarticulando o “mini QG”.
Do alto do quarto andar, ela olhou pela janela e viu que o nível da água estava alto, embora ainda a algumas quadras do prédio. Enquanto seus colegas procuravam guarida na casa de amigos, Xavier optou por descer à rua, para entender o que estava acontecendo. Avistou um cenário de desolação: pessoas saindo às pressas de casa, um menino com água na altura da coxa resgatando um gato sob seu blusão de moletom. “Você via aquela água suja avançando pelas ruas e as pessoas procurando desesperadamente por uma garrafa d’água, dispostas a pagar quanto fosse”, disse a editora, emocionada.
Imagem de satélite divulgada pela Nasa, agência espacial dos Estados Unidos, em 6 de maio mostra enchente em Porto Alegre. (Foto: Nasa)Pouco depois, as autoridades emitiram uma recomendação para que o Cidade Baixa fosse evacuado. Xavier fez uma mochila às pressas, pegou seus dois gatos e foi para a casa da mãe, no bairro Mario Quintana, a 40 minutos dali. Apesar de ser editora de política, já tinha sido direcionada à cobertura das enchentes, como todo o time. Passou a ir às ruas, a reportar os efeitos dos alagamentos e a produzir vídeos para as redes sociais. Em meio às dimensões da tragédia, a jornalista se constrangia ao assentir que sofria o peso do episódio pelo qual passava, como se não tivesse o direito de reclamar, porque milhares de pessoas estavam em condições piores.
Fundado há quase 130 anos, em 1895, o Correio do Povo nasceu com a proposta de ser um jornal mais neutro entre os dois grupos que então predominavam na política gaúcha, não pendendo para os maragatos (identificados pelos lenços vermelhos) nem para os chimangos (dos lenços brancos). Como símbolo de equilíbrio, o jornal era impresso em um tom rosado, passando a ser conhecido pelo apelido de “o róseo”. Desde 1946, o Correio está sediado no Edifício Hudson, na rua que ganharia o nome de seu fundador: Caldas Júnior. Além do Correio, o prédio também abriga, hoje, a Rádio Guaíba – ambas são hoje empresas do Grupo Record RS. O jornal também teve uma importante veia literária, publicando nomes como Émile Zola, Machado de Assis e, décadas depois, Mario Quintana.
É o principal concorrente do jornal Zero Hora, do grupo RBS, cujo prédio também foi parcialmente evacuado devido à proximidade da enchente (parte da equipe técnica segue trabalhando por lá, “em segurança”, conforme explica a empresa, enquanto a maior parte do time atua de casa ou da sede da afiliada da TV Globo, em outro bairro. A edição diária está sendo veiculada gratuitamente pelo site).
Formado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Telmo Flor começou a trabalhar no Edifício Hudson em 1985. A porta de entrada foi a Rádio Guaíba, mas em pouco tempo foi transferido para o Correio. Passou por diversas editorias até que, em 1992, aos 32 anos, foi promovido ao cargo que ocupa até hoje, de diretor de redação. “Eu já dormi aqui em diversas coberturas, em eleições… Vale o clichê: é a minha segunda casa”, resume Flor. Essa trajetória passa pela sua cabeça ao ver a sede inundada. A enchente histórica de 1941 não é mais só um quadro na parede.
Na noite de 6 de maio, Telmo Flor estava exausto. Enquanto corria para liderar a cobertura, lidava com as questões pessoais. Precisou acolher o filho, a nora e a cachorrinha do casal, que tiveram que sair às pressas da residência em que moram. O condomínio em que vive continuava sem água. Para tomar banho e limpar a casa, os moradores retiravam com baldes a água da piscina. A única água potável que havia em casa era com gás. Há supermercados funcionando, mas a água mineral sumiu da prateleira.
Depois de encerrar a conversa com a piauí, às 18h30, ele ainda editou todos os textos que lhe foram enviados entre o fim da tarde e o início da noite e tentou refazer contato com os colegas com quem não conseguira falar nos últimos dias. Por fim, planejou a cobertura do dia seguinte. Nesses dias de crise, desenvolveu problemas digestivos e passou a tomar ansiolíticos, diante da água que resiste a baixar mesmo em dias de trégua da chuva. “A gente passa o dia todo angustiado. Não confia mais no sol”, disse.
O diretor de redação sabe que não será possível retornar à sede do jornal no curto prazo e se instalou em uma escrivaninha improvisada como mesa de trabalho. “Não me arrisco a fazer uma previsão de quando a água vai baixar. Mas a gente sabe que a informação, principalmente nos alertas, pode salvar vidas. Esse é o nosso mote. Tem muita gente dedicada – me desculpe o clichê – fazendo das tripas coração para poder manter o jornal no ar. E vamos em frente.”