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Jornalista paraguaia propõe modelo de 'Jornalismo Centrado na Mudança' para revitalizar indústria de notícias

Durante a eleição presidencial de 2023 no Paraguai, o El Surtidor, veículo independente local, documentou como grupos políticos e econômicos conseguiram manipular com facilidade as conversas públicas naquele período por meio da desinformação. Mesmo desmentindo alguns dos conteúdos falsos mais virais, os esforços do veículo ficaram para trás diante do impacto da manipulação. 

O que mais chamou a atenção de Jazmín Acuña, cofundadora e diretora editorial do El Surtidor, foi ver a quantidade de jovens que acreditaram que a eleição havia sido roubada, o que levou a semanas de protestos violentos no país. Para ela, aquele momento deixou claro que não bastava apenas levar a informação correta até o público: o jornalismo precisava repensar a forma como se conecta e demonstra seu valor.

“Comecei a me preocupar menos em como atingir o público jovem com a informação certa e mais com a possibilidade real de que isso não fará diferença para eles, seja porque não confiam no trabalho jornalístico em geral ou porque não veem valor no que oferecemos”, disse Acuña à LatAm Journalism Review (LJR)

Essa experiência, somada à queda no tráfego de referência, à crescente desconfiança do público no jornalismo e ao reposicionamento das big techs em relação à imprensa, levou a jornalista a desenvolver o chamado “Jornalismo Centrado na Mudança”. Esse conceito de jornalismo, pensado durante o fellowship de Acuña no Instituto Reuters para Estudo do Jornalismo da Universidade de Oxford, é, segundo ela, uma alternativa ao atual paradigma de conteúdo que atingiu seu ápice com as mudanças no tráfego trazidas pela IA.

“Essas questões trouxeram à tona a relação problemática que o jornalismo construiu com a elite mais poderosa”, disse ela. “A situação não apenas levanta questões éticas, mas também nos deixa com a questão de saber se podemos continuar a depender de todas as plataformas para alcançar as pessoas. Esses fatos me reafirmaram a urgência de reformular a forma como interagimos com nosso público e como pensamos sobre nosso propósito.”

Acuña propõe resgatar a mudança como propósito central do jornalismo e defende que os veículos precisam se engajar de forma intencional com suas audiências e reposicionar sua atividade não como simples produção de conteúdo, mas como facilitadores ativos de transformação social.

“Reportagens rigorosas, equilibradas e aprofundadas são mais importantes do que nunca diante da crescente influência das redes de desinformação, da enxurrada de conteúdo raso gerado por IA e do retrocesso democrático”, disse ela. “Mas há outros aspectos igualmente importantes da comunicação humana que espero que prestemos mais atenção para não perdermos o contato com aqueles a quem estamos tentando servir. Na estrutura que desenvolvi, tento incluir alguns desses aspectos.” 

Acuña acredita que veículos de comunicação podem e devem facilitar espaços onde as pessoas possam se conectar, conversar, discutir e se envolver com a informação de forma coletiva. 

“Ao fazer isso, estamos contribuindo para o árduo, mas vital, esforço de reconstruir os alicerces da vida pública, que sustenta as democracias e o jornalismo”, disse. 

O conceito na prática

O Jornalismo Centrado na Mudança rompe com a ideia de que a publicação é o ponto final do trabalho jornalístico. Nessa forma de trabalho, publicar é apenas uma parte de um processo mais amplo de engajamento, no qual os repórteres permanecem mais tempo trabalhando nas matérias, buscam ativamente oportunidades para facilitar transformações e podem até considerar adiar a publicação para que ela coincida com momentos estratégicos.

Para colocar em prática os princípios do Jornalismo Centrado na Mudança, o El Surtidor desenvolveu o que eles chamam de "La Memetodología". Trata-se de uma estrutura de planejamento de impacto própria que integra elementos da teoria de memes, design ágil e pensamento de produto. Essas ferramentas orientam o trabalho da redação para concretizar o slogan do El Surtidor: "informação para ação" na era digital.

“Um veículo de notícias pode ter recursos, mas ainda assim estar focado em produzir mais conteúdo para responder à questão da relevância”, disse Acuña. “Outros veículos podem não conseguir adotar totalmente essa abordagem se acreditarem que se trata apenas de adotar novas maneiras de mensurar seu impacto além do alcance e dos cliques. Lindsay Green-Barber, da Impact Architects, resumiu de forma muito sucinta: ‘as organizações que têm sucesso nesse trabalho não criam apenas um Rastreador de Impacto, elas fomentam uma cultura de impacto’.”

O processo se inicia assim que um repórter traz as primeiras descobertas da sua apuração. Em vez de correr para publicar, a equipe usa um conjunto de perguntas iniciais que orientam uma conversa na redação para guiar o design de impacto daquela reportagem e quais mudanças ela pode provocar. As respostas servem para alinhar todas as decisões — do design gráfico à estratégia de distribuição – em torno de uma visão comum de mudança.

A primeira pergunta foca no "melhor cenário de impacto possível" da matéria, analisando as descobertas através de um rastreador de impacto próprio que considera indicadores quantitativos e qualitativos. Em seguida, as próximas três perguntas ajudam a identificar as potenciais partes interessadas na matéria. A ideia é incentivar a equipe a pensar em quem eles conhecem e que conexões podem ser estimuladas, desde fontes tradicionais até acadêmicos, organizações da sociedade civil, autoridades públicas e até seguidores fiéis do veículo. 

Por fim, entra em cena o checklist memético, inspirado no livro "Memes to Movements", de An Xiao Mina. Essa lista lembra o que torna os memes tão poderosos e orienta a equipe a pensar nessas características para escolher em quais descobertas da matéria focar para a divulgação e apresentá-la de forma mais compreensível, compartilhável e adaptável.

O checklist faz perguntas mais amplas, como "É fácil de se relacionar?", "É compreensível?", "É compartilhável?" e "Pode ser adaptado?". Em seguida, indica ações para garantir que o conteúdo responda a essas questões.

Um exemplo prático da “La Memetodología” em ação foi a investigação sobre uma fazenda de criptomoedas canadense no Paraguai que fazia barulho 24 horas por dia, afetando a qualidade de vida e a saúde mental dos moradores locais. Mesmo antes da publicação, alguns indicadores de impacto se materializaram: só com as entrevistas o prefeito da cidade ordenou uma nova investigação sobre o caso, e a própria empresa responsável pela fazenda de criptomoedas passou a registrar o risco de poluição sonora em seus relatórios anuais. Após a publicação, o El Surtidor organizou assembleias comunitárias, e os moradores entregaram o material da reportagem ao Ministério Público. Isso levou à abertura do primeiro julgamento no país contra uma fazenda de criptomoedas por poluição sonora. 

Nesse caso, o checklist memêtico permitiu que a equipe selecionasse e compartilhasse as descobertas que seriam mais fáceis de entender e compartilhar. 

“Por exemplo, o ruído que os moradores registraram foi uma informação bastante poderosa. A equipe fez questão de divulgá-lo em nossas plataformas”, disse Acuña. “Aliás, a primeira publicação incluiu esse ruído para que as pessoas se identificassem rapidamente com a situação dos moradores. Funcionou muito bem.”

Contexto do Sul Global

O framework está profundamente enraizado na experiência de fazer jornalismo no Sul Global. Isso porque, de acordo com Acuña, nessa parte do mundo muitas vezes não há alternativa senão ocupar o espaço da mudança.

"O jornalismo no Sul Global evoluiu não apesar da desigualdade, mas por causa dela", explica a jornalista. "Em contextos onde os cidadãos não podem contar com o Estado para proteção ou bem-estar, o acesso a informações locais  confiáveis torna-se uma questão de sobrevivência."

É essa consciência da função cívica do jornalismo que Acuña acredita que levou muitos veículos digitais do Sul Global a declarar explicitamente o seu objetivo de facilitar mudanças. Ela cita como exemplos, além do El Surtidor, o Mutante, da Colômbia, que vê seu jornalismo participativo “como uma ferramenta para mudança social”, e a Agência Mural, do Brasil, que quer que suas matérias sobre bairros carentes de São Paulo sejam “relevantes e úteis, para que todos possam se sentir parte da mesma realidade e capazes de transformá-la”

Ainda assim, uma preocupação possível com essa nova mentalidade de fazer jornalismo é que o foco na mudança possa borrar a linha entre reportagem e ativismo. No entanto, conforme Acunã escreveu no site do projeto, o Jornalismo Centrado na Mudança não propõe que os repórteres ditem resultados ou defendam soluções predeterminadas. A ideia é explorar como o trabalho jornalístico pode gerar valor, e para quem, sem abrir mão dos padrões fundamentais da profissão.

Janine Warner, cofundadora e diretora executiva da SembraMedia, organização sem fins lucrativos que apoia empreendedores de mídia digital, elogia o framework de Acunã. Warner destaca como ela demonstra como jornalistas podem atuar como facilitadores para fornecer informação de forma acessível, para que as pessoas possam entender o que está acontecendo e o que podem fazer se quiserem mudança.

“Com o Jornalismo Centrado na Mudança, Jazmin capturou uma série de tendências que outros jornalistas na América Latina também estão experimentando, desde tornar o jornalismo relevante até realmente ouvir e interagir com o público, alcançando as pessoas onde elas estão, seja no Instagram ou em um evento presencial”, disse Warner à LJR. “Uma das coisas que mais gosto é que ele reconhece que os leitores não são membros passivos da audiência; eles podem se organizar por conta própria para promover mudanças.”

Aplicabilidade e implementação

Para Acuña, adotar o Jornalismo Centrado na Mudança passa por começar gradualmente e abrir espaço para experimentação. Um primeiro passo simples pode ser, segundo ela, escolher uma matéria antes da publicação e se perguntar: “qual é o impacto potencial dessas descobertas?". A jornalista disse que as perguntas iniciais para design de impacto do seu projeto podem ajudar. 

“Acredito que qualquer redação, pequena ou grande, tradicional ou nativa digital, pode se inspirar nessa estrutura”, disse ela. “O que os veículos menores têm a seu favor é que podem ser mais ágeis. Organizações maiores provavelmente encontrarão mais restrições para adotar novas formas de abordar o trabalho, mas eu as incentivaria a abrir espaço para mudanças.”



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