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Liberdade digital no Brasil está ameaçada por mudanças no Marco Civil da internet, diz especialista

Depois de ter a votação adiada quatro vezes por falta de consenso entre os deputados, o Marco Civil da internet, proposta que define direitos e deveres dos usuários e das empresas que navegam na rede, está novamente na pauta da Câmara desta terça-feira, 13 de novembro. Contudo, surgiu mais um ingrediente polêmico em torno de seu texto: um parágrafo incluído no artigo 15 do projeto de lei permite que conteúdos que infrinjam Direitos de Autor não precisem de decisão judicial para serem tirados do ar.

A alteração foi criticada pela Associação Brasileira de Internet (Abranet). "A nova redação proposta, com a inserção de um parágrafo segundo que limita a proteção do usuário contra remoção indiscriminada de conteúdos, seguramente importará em casos de censura, sendo por essa razão absolutamente inconstitucional e atentatória à liberdade digital", afirmou em carta aberta publicada em seu site.

Uma carta assinada por diversas entidades que defendem a democratização da comunicação e órgãos de defesa do consumidor enviada ao relator do Marco Civil, deputado Alessandro Molon, também criticou o novo parágrafo do artigo 15.

Ao acrescentar o lobby dos direitos autorais, a mudança acirra ainda mais uma disputa que já envolve empresas de telecomunicações, provedores de serviço, governo e setores que defendem a ampla liberdade no ambiente online, explicou Sérgio Amadeu da Silveira, pesquisador de redes digitais, professor da Universidade Federal do ABC e representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet brasileiro.

Amadeu conversou com o Centro Knight para o Jornalismo nas Américas e afirmou estar preocupado com a ameaça à liberdade digital que as alterações feitas ao projeto original do Marco Civil, construído a partir de um processo colaborativo que teve ampla participação da sociedade, representam.

Knight Center: O Marco Civil vai entrar em pauta na Câmara hoje com uma modificação no seu artigo 15, referente aos direitos dos usuários, que inclui a politica do Notice and Take Down para violações de direitos autorais. Isso pode representar ameaças à liberdade de expressão digital?

É uma ameaça cujas consequências negativas para a liberdade de opinião, expressão e criação na rede ainda não podem ser completamente medidas. Essa modificação é muito perigosa, a começar pelo ponto de vista da nossa estrutura jurídica. Quando eu acuso alguém de cometer um crime, enquanto acusador eu tenho o ônus da prova. Quando se insere mecanismos tipo Notice and Take Down, inverte-se o ônus da prova. Então eu posso entrar em contato com o provedor de um inimigo político ou de um concorrente econômico e dizer que uma determinada postagem viola direitos autorais. Se há uma lei que diz que o provedor é obrigado a atender esse aviso, ele vai retirar o conteúdo da internet sem que necessariamente exista violação. Quem foi acusado vai precisar provar que é inocente, uma inversão completa e inaceitável do ponto de vista jurídico. Cria-se uma estrutura, uma indústria da censura em temas que são extremamente complexos. Há conflitos relacionados a conteúdos na internet que exigem perícia técnica, por exemplo, para avaliar se uma foto foi retrabalhada. O Marco Civil original fala em recorrer ao judiciário para que, com isso, existam garantias mínimas. O problema é que a indústria do copyright subordina todos os direitos civis das pessoas ao interesse da propriedade intelectual, ou melhor, à defesa de um modelo de negócios do mundo industrial que não está compatível com o universo das redes digitais. A ultima pesquisa do Comitê Gestor da Internet (CGI) mostra, em 2011, que 51% dos brasileiros baixaram músicas na internet, 33% baixaram filmes. Existe uma prática social que envolve milhões de pessoas e essa indústria, em vez de criar modelos de negócios para essa prática, quer criar bloqueios. É uma ação extremamente nefasta que, infelizmente, o atual governo brasileiro está dando cobertura. Aliás, o atual governo representa um retrocesso brutal em relação à gestão de Lula, que se posicionou contra esse vigilantismo na rede.

KC: O que levou a pauta da defesa dos direitos autorais ao Marco Civil às vésperas da votação desta legislação?

O Marco civil não discute direitos autorais, mas parece que o lobby da indústria conseguiu incluir esse ponto nele para forçar a defesa da propriedade intelectual em uma outra frente legislativa. Veja, a indústria do copyright tem como um dos seus maiores representantes o Jack Valenti, presidente da Motion Pictures Association of America (MPAA), que tentou impedir, denunciando a Sony na justiça, a venda de reprodutores de vídeo (os VCR) com o discurso de que eles aniquilariam a indústria cinematográfica. Por ironia do destino, o que acabou acontecendo é que boa parte da renda de Holywood hoje vem da venda de cópias, e não só das salas de exibição. Há uma mudança cultural em curso motivada pelas novas tecnologias, que constroem e consolidam práticas sociais. A indústria do copyright quer criminalizar essas práticas sociais e criar uma paralisia no avanço tecnológico. Mesmo com uma banda larga péssima, 51% dos usuários de internet brasileiros baixam música na rede, não dá pra falar que metade dos internautas são criminosos. É importante ressaltar também que esse lobby não está defendendo os direitos dos autores, mas da indústria da intermediação, que começa a ser substituída pela rede e, ao invés de inovar seus modelos de negócio, quer segurar a história, como os ludistas.

KC: O sistema de notificações é utilizado nos EUA sob o argumento de que é uma forma mais célere e simplificada de se evitar danos aos direitos do autor, além de evitar mais processos judiciais. Como você avalia esse argumento?

Esse argumento é falacioso. Então deveríamos considerar, por exemplo, a prisão de um motorista que causou um acidente de trânsito antes dele ser julgado, para evitar outros danos? Isso é um absurdo. Quer dizer, esse argumento só vale para o copyright? O copyright está acima de toda a estrutura jurídica? Este argumento funciona nos EUA porque o capital vale mais que a vida, no Brasil, não. A legislação elenca diversas garantias que estão acima dos interesses econômicos. Uma delas é a presunção de inocência, princípio que diz que todos são inocentes até que se prove o contrário. Não dá pra considerar o lobby de uma indústria cujo argumento quer forçar o judiciário a violar outros direitos para ter celeridade em processos de seu interesse.

KC: Você acha que a responsabilidade de retirar conteúdos, por exemplo, ofensivos, publicados por terceiros é dos provedores?

No meu modo de ver, a responsabilidade de retirar o conteúdo só pode vir por ordem judicial, e o destinatário da ordem judicial deve cumpri-la, seja ele o blogueiro ou seu provedor. Ordem judicial pode até ser criticada, mas deve ser cumprida. O artigo 15 coloca, inclusive, que, em defesa da liberdade, só se aceita remoção de conteúdo por ordem judicial. Mas o parágrafo segundo recém-incluído neste artigo abre uma exceção para os direitos autorais, atacando a liberdade de expressão. Eles dizem que o sistema judiciário é demorado, mas existem outros direitos em jogo aguardando decisões da justiça e isso não legitima ilegalidades e afrontas aos nossos princípios constitucionais, como é o caso da presunção de inocência. O Brasil é um país que estava na vanguarda da defesa da liberdade digital, mas infelizmente está retrocedendo nesse ponto por interesses da indústria do copyright. Interesses estes que, nos EUA, legitimam processos judiciais até contra adolescentes e crianças.

KC: Mas mesmo sem essa regulamentação, o Brasil está entre os países que mais pedem para retirar conteúdo da internet. O que explica essa cultura de bloqueio à informação?

Existem escritórios de advocacia que já se posicionam, mesmo sem a lei, como uma máquina de guerra pra atacar conteúdos online. Se a legislação passar da forma como está hoje, pode significar a paralisação da internet no Brasil. Por enquanto, esses escritórios lidam com uma grande corporação que é o Google. Agora, imagina blogueiros e sites recebendo notificações de retirada de conteúdo indiscriminadamente. Isso é o que eu chamo de censura distribuída e privatizada na rede. Esses pequenos provedores de conteúdo na internet não têm estrutura jurídica ou técnica para avaliar se uma notificação para retirada de conteúdo é correta ou não. Se há uma lei que diz que ela deve ser acatada, os conteúdos serão retirados. Imagina os blogs de crítica política no Maranhão, por exemplo. A censura não vai ter como argumento o incômodo gerado pela crítica, mas a violação de propriedade intelectual. Isso pode se tornar uma arma de controle político e cultural com base em denúncias infundadas.

KC: Temos casos em que só a participação em processos judiciais já é prejudicial para pequenos produtores de conteúdo independentes. Deveríamos ter algum órgão específico para essa defesa da liberdade de expressão na internet?

Estamos chegando a uma situação em que precisamos pensar uma defensoria pública que se preocupe com a defesa da liberdade de expressão, porque há um agigantamento da judicialização da rede para tentar conter práticas corriqueiras da internet. Então eu acho que vamos precisar ter entidades como a Eletronic Frontier Foundation e também reivindicar do Estado que as pessoas tenham condição de serem defendidas de forma gratuita.

KC: A neutralidade da rede é um outro ponto polêmico do Marco Civil hoje. Por quê?

Porque envolve os interesses das teles. As empresas de telecomunicações não tinham declarado até essa semana que eram contra o princípio da neutralidade de rede, que diz que quem controla a infraestrutura de cabos não pode interferir no conteúdo que passa por ele, deve ser neutro. As teles já dominam a infraestrutura e ganham muito dinheiro com isso, são um poderoso oligopólio que domina a comunicação digital o mundo. Mas não querem mais ser neutras. Elas pensam: se o mundo digital tem que usar os meus cabos, então eu posso definir que conteúdo vai ter prioridade se puder pagar mais. Isso também pode ensejar barreiras por motivos políticos. As teles podem começar a definir que determinadas informações não circulem na rede. Então elas querem ter o poder de filtrar o conteúdo. No Marco Civil original isso está vetado, a neutralidade da rede é defendida. A questão é que existem exceções a esse princípio e algumas interferências técnicas são válidas para garantir o bom funcionamento da rede. Em que caso essas interferências são legítimas? Isso precisa ser regulamentado. E o debate está todo aí. A sociedade civil quer que a regulamentação seja feita por quem entende de internet, o CGI.br, as teles querem que a Anatel faça já que, por ela, fica mais fácil matar a neutralidade da rede. A polêmica está aí. Resta torcer para que a base do governo na Câmara leve em conta os interesses dos usuários, e não os interesses comerciais em jogo.

Nota do editor: Essa história foi publicada originalmente no blog Jornalismo nas Américas do Centro Knight, o predecessor do LatAm Journalism Review.

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