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Lúcio Flávio Pinto, 57 anos de jornalismo em defesa da Amazônia, para jovens repórteres: ‘Saia da frente da tela e vá para a terra’

No começo de julho, o jornalista brasileiro Lúcio Flávio Pinto anunciou em seu blog, que ele atualiza diversas vezes ao dia desde 2014, que decidiu encerrar sua “atividade jornalística pública diária”. Colegas e leitores receberam o anúncio com tristeza e perplexidade. Com 57 anos de profissão e prestes a completar 74 anos de idade, Lúcio Flávio Pinto é sinônimo de cobertura independente e intrépida sobre a Amazônia e a corrupção dos poderes políticos e econômicos na região.

Em conversa com a LatAm Journalism Review (LJR), Pinto falou sobre sua decisão e seu estado de saúde e refletiu sobre sua trajetória. Também teceu críticas à imprensa do Pará, estado onde nasceu e trabalha, e nacional, especialmente na cobertura jornalística sobre a Amazônia.

“Cobrir a Amazônia é caro. Precisa se deslocar muito, e isso é caro. A imprensa local não faz mais isso, ela reproduz o que a grande imprensa nacional publica. O que a grande imprensa nacional publica é caudatário de personagens, pesquisadores, ONGs que ditam o que deve ser estabelecido porque eles têm a fonte primária. O jornalista não vai mais à fonte primária, ele vai aos intermediários e repete o que eles dizem, não questiona”, disse ele.

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Lúcio Flávio Pinto em 2016. (Foto: Paulo Santos / Acervo H)

Questionado sobre o que diria para jovens jornalistas cobrindo a Amazônia, Pinto disse que os instaria a ser “personagem do I-Juca Pirama, o famoso poema do Gonçalves Dias: ‘meninos, eu vi’”.

“Se você escrever sobre a queda de uma árvore, esteja lá para ver a árvore. Se você não viu a primeira [árvore caindo], veja a segunda. Se você sabe de um conflito importante de terras no interior da Amazônia, vá para lá. Se você não ouvir o primeiro tiro, ouça pelo menos algum. Não se deixe seduzir pela força do computador. Saia da frente da tela e vá para a terra”, disse ele.

Jornalismo local com relevância internacional

Desde seu começo como jornalista em Belém, capital do Pará, em 1966, Lúcio Flávio Pinto dedicou-se a fazer jornalismo investigativo local com relevância nacional e internacional. Isso foi reconhecido pelos vários prêmios que recebeu ao longo da carreira, entre eles o Colombe d'Oro per la pace, em 1997; o Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa do Comitê para Proteção de Jornalistas (CPJ), em 2005; a homenagem no Congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), em 2009; o Prêmio Especial Vladimir Herzog, em 2012; e sua distinção pela Repórteres Sem Fronteiras (RSF) como um dos 100 Heróis da Informação em 2014, quando foi o único brasileiro na lista.

Trabalhou em jornais locais e nacionais, tendo inclusive coordenado uma sucursal amazônica do jornal O Estado de S. Paulo na década de 1970, que tinha repórteres baseados em todas as capitais da região. Em 1987, fundou o Jornal Pessoal, publicação de um jornalista só: Pinto realizava as investigações, escrevia reportagens e análises, diagramava o jornal, cuidava da impressão e o distribuía em bancas de Belém a cada 15 dias. Assim fez durante 31 anos, período em que nunca aceitou publicidade no jornal e o sustentou com as vendas e contribuições de leitores, além de tirar dinheiro de seu próprio bolso. Em dezembro de 2018, circulou sua última edição.

“Eu não consigo fazer do jornalismo um instrumento profissional. É, na verdade, o instrumento de causas que eu tinha e tenho, desde muitas décadas atrás”, disse ele, explicando que, em julho de 2019, tentou pela primeira vez se afastar do “jornalismo cotidiano, de linha de frente, de front mesmo”, como escreveu em seu blog. Naquele momento, ele já sentia o avanço do mal de Parkinson, diagnosticado em 2016.

“Eu queria, desde essa época, parar tudo. Parava por uns dias e voltava de novo, porque ficava sabendo de coisas que não saíam em lugar nenhum, como aconteceu em 1987 com o Jornal Pessoal. Ele surgiu por causa do assassinato de um ex-deputado estadual, um caso gravíssimo, de morte planejada, e nenhum jornal publicava os nomes dos envolvidos”, contou.

Pinto disse que passou três meses investigando o assassinato do ex-deputado Paulo Fonteles de Lima, morto em junho de 1987, e criou seu Jornal Pessoal para publicar essa reportagem.

“Publiquei uma matéria dando o nome de todo mundo: intermediário, mandante, etc. Eu ia fazer só esse número, mas logo em seguida teve um desfalque no Banco da Amazônia e nenhum dos jornais deram, porque estavam envolvidos. Daí eu segui, de lá para cá, por causa do silêncio da imprensa. Silêncio que não é gratuito”, disse ele, que sustenta que a grande imprensa do Pará é aliada de governos e empresas implicados em esquemas de corrupção e na exploração predatória da Amazônia.

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Primeira página de edição de outubro de 2013 do Jornal Pessoal. (Reprodução)

Ao longo de sua carreira, foi alvo de 34 processos judiciais. Dois seguem em aberto, ambos movidos em 2005 pelos irmãos Rômulo Maiorana Jr. e Ronaldo Maiorana, herdeiros do Grupo Liberal, conglomerado de empresas no Pará. Entre elas estão a TV Liberal, afiliada da Rede Globo no estado, e o jornal O Liberal, onde Pinto trabalhou nas décadas de 1970 e 1980.

Pinto escreveu ostensivamente sobre este que classifica como o “maior complexo de comunicação do norte do Brasil”, como afirmou na introdução de seu livro “Uma arma letal – A imprensa do Pará”, lançado em 2015 e um dos 21 livros que publicou.

Em 21 de janeiro de 2005, Pinto foi agredido e ameaçado por Ronaldo Maiorana, então diretor do jornal O Liberal e hoje presidente do Grupo Liberal. Conforme relato de Pinto publicado pela Abraji, ele estava almoçando com amigos em um restaurante em Belém quando Maiorana, acompanhado de dois seguranças, se aproximou dele e lhe deu um soco. Pinto disse ter sido “pego pelo colarinho, jogado no chão e chutado por Maiorana e pelos seguranças, repetidas vezes, quando tentava se levantar”. O empresário também teria ameaçado matá-lo.

Pinto prestou queixa na polícia, que resultou em um processo que culminou na condenação de Maiorana a pagar uma multa equivalente a 50 salários mínimos. “Não em dinheiro, mas no fornecimento de cestas básicas a instituições de caridade, uma das quais muito ligada à família [Maiorana]”, escreveu Pinto.

“Combatente do bom jornalismo”

No post “Perdão, leitores”, publicado em 8 de julho em seu blog, Pinto explica que decidiu interromper sua “atividade jornalística pública diária” ao se dar conta de um erro em um texto publicado no blog dias antes. Ele atribuiu tal “falha cognitiva” ao agravamento do mal de Parkinson.

“Em toda essa minha vida de jornalismo, que tem mais de 57 anos, enfrentei agressões, ameaças, processos judiciais porque eu tinha perfeita segurança daquilo que publicava”,  disse ele.

“Estabeleci até minha segurança contra tentativas de me agredir com o pressuposto de que tenho provas de tudo que falo. Quando tive esse acesso umas semanas atrás, o que ficou em questão foi a minha capacidade de discernir com perfeita lucidez os dados antes de publicá-los. Daí meu abalo muito grande, porque o Parkinson chegou à parte cognitiva. Eu vi a informação e li de outra maneira”, disse Pinto.

Embora tenha decidido encerrar sua produção jornalística original, ele pretende seguir escrevendo em seu blog e divulgando o trabalho realizado nessas quase seis décadas. Pinto espera que, diminuindo o ritmo de trabalho, consiga retardar o avanço da doença.

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Lúcio Flávio Pinto em 2016. (Foto: Paulo Santos / Acervo H)

 

“É uma coisa angustiante”, disse sobre as dificuldades impostas pelo mal de Parkinson. “Isso me abala muito porque talvez haja a repetição desses episódios, e se isso se repetir mais vezes, aí eu vou parar totalmente de escrever. É um fator com o qual eu não posso mais lutar, se ele se repetir”, afirmou.

O texto de Pinto sobre sua decisão de deixar o jornalismo diário repercutiu entre outros jornalistas, especialmente aqueles que o conhecem e acompanham seu trabalho há várias décadas.

Marcelo Beraba, cofundador e primeiro presidente da Abraji, enviou o texto a colegas da associação no dia seguinte à sua publicação. “É um texto de honestidade e de compromisso com o jornalismo, e que me emocionou muito. Não me lembro, nestes mais de 50 anos de jornalismo, ter lido nada mais forte, corajoso e honesto. Um momento de reflexão sobre as nossas vidas, nossas limitações e nosso compromisso com o jornalismo ético. Uma aula de ética e de coragem”, escreveu ele.

Em conversa com a LJR, Beraba disse conhecer Pinto “há décadas, já nem me lembro desde quando”.

“Eu trabalhava no Globo no Rio na década de 1970 e acompanhava o seu trabalho como correspondente do Estadão na Amazônia. Foi um período de ditadura militar, de censura, de políticas públicas e de projetos danosos para a Amazônia – e lá estava o Lúcio Flávio a investigar e a reportar. Tinha que ter muita coragem e muito discernimento. Esta disposição e o compromisso de acompanhar de perto os gastos públicos e as consequências de projetos e programas para as populações de Belém, do estado do Pará e dos confins da Amazônia permaneceram intactos, mesmo depois que deixou a imprensa tradicional e criou seus próprios meios jornalísticos”, disse Beraba.

Em resposta a Beraba, a jornalista Miriam Leitão, também membro da Abraji e homenageada pela associação em 2019, disse que o texto de Pinto “é uma lição para além do jornalismo”.

“Conheci Lúcio Flávio no começo da década de 1980 quando fui fazer uma cobertura no Pará”, disse Leitão à LJR. “O trabalho dele é precursor da cobertura da Amazônia com preocupação com o meio ambiente, direitos dos indígenas, e a denúncia constante do conluio entre grupos econômicos e políticos na região. Seu jornalismo enfrentou todo o tipo de bloqueios econômicos e perseguição judicial e permaneceu. Seu trabalho pode ser definido como uma longa resistência. E continuará sendo. Seus textos têm sido uma fonte de consulta para os outros jornalistas”, afirmou.

Kátia Brasil, cofundadora e codiretora da agência Amazônia Real, onde Pinto mantém uma coluna semanal desde 2016, disse à LJR que conheceu o trabalho dele lendo o Jornal Pessoal no começo dos anos 1990. “Lúcio Flávio sempre foi um combatente do bom jornalismo”, afirmou.

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Da esq. para a dir., os jornalistas Kátia Brasil, Leonêncio Nossa, Lúcio Flávio Pinto, Paulina Chamorro e Eliane Brum em 2015. (Arquivo pessoal de Kátia Brasil)

“No Pará é muito latente o poder que a imprensa tem em relação aos acontecimentos políticos e empresariais. Principalmente em relação ao desmatamento da Amazônia, à mineração, às grandes corporações que investem milhões de dólares para explorar recursos minerais e florestais do estado. Não se fala dos impactos ambientais ou da devastação em territórios indígenas, e Lúcio Flávio sempre trouxe isso no Jornal Pessoal”, disse ela.

Brasil também disse ser “uma honra” tê-lo colunista na Amazônia Real. “Ele me ensina demais, principalmente a ter paciência, a saber enfrentar os desafios, que são muitos, e a enfrentar os poderosos, essas pessoas que entram com ações contra o nosso trabalho e conseguem censurar nossas reportagens (...) Ele, que já enfrentou tantos impactos, sempre tem uma palavra de conforto, de esperança, de nunca desistir”, disse ela.

Pinto disse à LJR ter ficado “muito feliz” com as manifestações de carinho e solidariedade que tem recebido de colegas e leitores nas últimas semanas, mas lamentou que “as mensagens melhores e mais intensas vieram de fora de Belém, de fora do Pará, de fora do Brasil”.

“Parece que quanto mais distante está o meu leitor, mais generosamente ele me avalia. Porque quem está aqui sabe que não pode contar com a minha pena a serviço de amizades ou de interesses. Não tenho amigos quando me sento para escrever. Quem me comanda é o diabo. Eu digo ‘diabo, por favor, eu não quero escrever isso sobre esse cara, é um cara tão legal…’ E o diabo diz ‘escreva!’ E deus diz: ‘é a tua luta com o diabo na terra do sol’”, brincou.

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