A série de recomendações para a mudança do sistema interamericano de direitos humanos aprovada pelo Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos (OEA) no dia 25 de janeiro poderia limitar e neutralizar a ação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e da Relatoria para a Liberdade de Expressão.
Já qualificada de “golpe” à “liberdade de expressão”, a série de recomendações representa uma vitória para o presidente do Equador, Rafael Correa, principal defensor das mudanças. O mandatário vem tentado desprestigiar o trabalho da relatoria e da CIDH, por considerar que elas interferem em assuntos internos.
“As recomendações falam em 'fortalecer' o sistema interamericano, mas, na realidade, são contrárias à proteção de um direito fundamental. Elas podem limitar seriamente a capacidade de investigação e de denúncia [a relatoria]", disse ao Centro Knight para o Jornalismo nas Américas Carlos Lauría, coordenador sênior para as Américas do Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ).
Por enquanto, as recomendações têm caráter não vinculante. Sua aprovação depende da decisão dos 34 países membros da próxima Assembleia Geral da OEA, em junho, na Bolívia.
Embora as medidas tenham, em tese, o objetivo de fortalecer a transparência e o rigor jurídico do sistema interamericano de direitos humanos, mais de 60 ONGs e representantes da sociedade civil argumentam que as mudanças teriam impacto negativo sobre a eficiência e autonomia da relatoria. As reformas —promovidas por um grupo de trabalho criado pelos governos do Equador e da Venezuela — estão ligadas à capacidade de ação das relatorias da OEA.
Recomenda-se que o investimento em todas as relatorias da CIDH seja o mesmo. Atualmente, a Relatoria para a Liberdade de Expressão recebe mais do triplo dos recursos de todas as outras. Como o financiamento externo ficaria proibido, a relatoria ficaria muito prejudicada. Além disso, a sugestão de implantação de um código de conduta poderia impedir a publicação de seus tradicionais comunicados — muitos deles com críticas às atitudes do Equador e da Venezuela contra a livre expressão—. Além disso, o pacote prevê que o informe anual da relatoria seja breve e sobre toda a região, não separado por país.
Tal ataque contra a relatoria dirigida pela advogada colombiana Catalina Botero não é inédita. O governo do Equador considera improcedentes as críticas e as recomendações sobre liberdade de expressão recebidas nos últimos meses. (Do mesmo teor são as respostas dadas às numerosas cartas e relatórios de organizações internacionais preocupadas com a situação das liberdades de imprensa e opinião.) O presidente Correa também já tentou desprestigiar a própria Botero.
A Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH), além de entidades de defesa da liberdade de imprensa, como a Human Rights Watch, o Comitê para a Proteção dos Jornalistas e a Repórteres Sem Fronteiras, saíram em defesa de Botero. Até agora, nem Botero nem o secretário-geral da OEA, José Miguel Insulza, se pronunciaram sobre as possíveis mudanças.
Criada em 1997, a relatoria tem realizado um importante trabalho na região em prol da liberdade de expressão e do acesso à informação, da proteção dos jornalistas, da despenalização da opinião e do desacato, da pluralidade informativa e contra a impunidade dos crimes contra repórteres. “É um trabalho de mais de 10 anos, mas buscam neutralizar seu trabalho e limitar sua influência”, disse Carlos Lauría, do CPJ.
Nos últimos anos, diversos índices mostram crescentes obstáculos à liberdade de expressão no continente e, em consequência, à democracia. “A Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da OEA tem mais razão de ser do que nunca”, dissera, em um comunicado conjunto, a Repórteres Sem Fronteiras (RSF) e a Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC).
Como disse Carlos Lauría, do CPJ: “esse é um reflexo do desgaste das instituições da democracia a nível regional. […] O Equador, com o apoio de seus sócios da ALBA, tentam acabar com as instituições que fazem ressalvas incômodas”, como as recebidas pelo governo equatoriano por seus ataques à imprensa. Precisamente por isso é “importante reforçar mecanismos como a relatoria”, disse Lauría.
Mas Lauría destacou que, durante a sessão do Conselho Permanente da OEA, não houve apoio unânime às recomendações do Equador sobre a relatoria. Ao contrário, países como Uruguai, Costa Rica e Panamá apoiaram o atual trabalho da CIDH e seus órgãos.
Outros líderes regionais como México e Colômbia, porém, tiveram uma reação considerada ambígua. A Fundação para a Liberdade de Imprensa (FLIP) da Colômbia, por exemplo, criticou as declarações do representante do governo colombiano, que chamou as possíveis mudanças de “positivas” e não defendeu explicitamente o papel da relatoria na garantia da liberdade de expressão no continente.
Há anos, o governo equatoriano é questionado por suas ações contra a liberdade de expressão e manter uma relação muito hostil com a imprensa.
Organismos como a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), a Associação Mundial de Jornais e Editores de Notícias (WAN-IFRA) e a Repórteres Sem Fronteiras já pediram ao presidente Correa que ponha fim ao ataques contra jornalistas e veículos de comunicação, entre eles os processo judiciais (como o enfrentado pelo jornal El Universo). Veículos como o New York Times, o Washington Post, o El País, da Espanha, o El Espectador, da Colômbia, e o La Nación, da Argentina, também questionaram as atitudes de Correa e até ex-presidentes do país pediram mais respeito à liberdade de expressão.
O presidente garante haver “total liberdade de expressão” em seu país. Ele ainda insiste querer apenas o exercício responsável do jornalismo e nega que haja uma perseguição à mídia em seu país, apesar da campanha governamental que acusava a imprensa, o rádio e a TV de “esconder a verdade”. Em seus anos no governo, Correa também consolidou uma importante e crescente rede de veículos públicos, em resposta aos “bandidos da tinta” que dominariam a imprensa privada.
Para José Miguel Vivanco, diretor para as Américas da Human Rights Watch, “parece que, para o presidente Correa, o único exercício possível da liberdade de expressão é aquele que se verifica em aplausos" ao governo atual.