Um grupo de pescadores ilegais em uma província das Filipinas que se tornaram "guardiões do mar", uma comunidade na Índia que planta 111 árvores para cada menina que nasce em um ritual que reduziu o número de casamentos infantis e inundações, as mulheres do povo de Nunavut, no Canadá, que dão assistência ao parto e cuidam das novas mães, e a construção de uma comunidade em Cuba para oferecer proteção a sobreviventes de violência sexual.
Esses foram os temas de algumas das histórias que fizeram parte da Edição Global 2023 da Rede de Jornalismo Humano, uma iniciativa concebida como uma plataforma para compartilhar histórias que "retratam como as pessoas e as comunidades enfrentam nossos problemas sociais mais urgentes".
E em meio a um mundo cada vez mais caótico, que inevitavelmente se reflete nas reportagens diárias e levou a outros fenômenos, como a "evasão de notícias", esse tipo de histórias parece ser uma brisa refrescante, um freio à "negatividade extrema" da mídia.
Essa é a convicção do jornalista argentino Chani Guyot, diretor e criador da Rede de Jornalismo Humano, para quem aumentar o alcance dessas histórias – que ele chama de "jornalismo humano" – tornou-se uma missão profissional.
"Os meios têm a responsabilidade de mostrar os problemas da sociedade em seu papel de 'cão de guarda', mas acreditamos que também têm a responsabilidade de mostrar as histórias das pessoas e organizações que estão buscando resolver esses problemas, porque essas histórias existem e muitas vezes são sub-representadas", disse Guyot, que também é fundador do meio nativo digital Red/Acción, à LatAm Journalism Review (LJR).
A Rede de Jornalismo Humano começou em 2021 como um projeto "piloto", de acordo com Guyot. Naquela época, a plataforma era destinada a meios aliados, ou parceiros, na América Latina. Para essa edição latino-americana, oito meios participaram e compartilharam cinco histórias cada, totalizando 40 histórias. Além de compartilhar suas histórias, os meios parceiros têm liberdade para republicar os textos compartilhados por todos.
Depois de uma pausa em 2022, e vendo o impacto que haviam alcançado com o piloto, em 2023 a equipe da Rede pensou em fazer uma edição global envolvendo meios em inglês e espanhol. Com o apoio do Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ, na sigla em inglês), eles iniciaram a chamada para inscrições em fevereiro. Embora inicialmente planejassem ter 20 meios participantes, 10 em cada idioma, eles conseguiram reunir 14.
A diversidade geográfica e temática é um dos aspectos que Guyot destaca nesta edição. Da América Latina, participaram Mi Voz (Chile), El Toque (Cuba), GK (Equador), Convoca (Peru) e Río Negro e Red/Accción (Argentina). Também participaram Globe and Mail (Canadá), elDiario.es (Espanha), San Francisco Chronicle (Estados Unidos), Rappler (Filipinas), The Quint (Índia), The Irish News (Irlanda), Reasons to be Cheerful World (Reino Unido) e Daily Maverick (África do Sul).
"Isso torna tudo muito interessante, pois os leitores de cada um desses meios têm a chance de acompanhar essas histórias que são desenvolvidas localmente", disse Guyot. “E outra coisa interessante para mim sobre esta edição da Rede é que muitas das questões com as quais lidamos têm a ver com os desafios sociais que enfrentamos como sociedade e como mundo.”
Nesse sentido, a crise climática foi um tema presente nesta edição, mas também houve histórias focadas na inclusão, especialmente de gênero, ou sobre líderes comunitários. Histórias sobre educação, saúde, migração, arte, inovação social, pobreza e sustentabilidade fizeram parte da edição.
"Quando falamos de jornalismo humano, o que fazemos é ter uma definição muito precisa do tipo de jornalismo que buscamos compartilhar. É o jornalismo que é feito em campo, ou seja, apurado no terreno. São histórias de pessoas ou organizações que estão buscando resolver desafios sociais, basicamente", explicou Guyot. "É uma definição semelhante ao jornalismo de soluções, mas um pouco mais ampla, porque em alguns casos podemos compartilhar soluções que estão a caminho ou problemas que não são tão bem conhecidos e cobertos pela imprensa.”
Além dessa abordagem, Guyot ressalta que a Rede sempre busca os mais altos padrões de jornalismo: excelentes reportagens e excelente redação. Mas a isso se acrescenta um componente vital que dá valor agregado à Rede: os processos de edição e tradução são realizados por dois jornalistas da Red/Acción, meio que impulsiona a Rede.
A edição, como explica Guyot, é dupla. Além da edição que cada meio de comunicação faz quando envia uma história, a equipe da Rede precisa editar no idioma original. Com essa edição, a Rede dá um toque mais global às histórias. Por exemplo, explicando termos, lugares ou costumes que podem ser "óbvios" para um público local, mas que podem não fazer sentido para um público internacional. Após essa edição, a história é traduzida para o outro idioma (espanhol ou inglês) e uma segunda edição da tradução é publicada em seguida.
"É um processo no qual damos muita ênfase, porque o valor da rede depende muito, fundamentalmente, da qualidade das histórias que são compartilhadas por meio dela", explica Guyot.
Para Guyot, o principal benefício da rede é que os meios de comunicação participantes podem expandir o público que alcançam com suas histórias.
"Queremos que esse jornalismo de qualidade, que é praticado em todo o mundo, alcance novos públicos", explicou o diretor da rede. "E essas histórias, que são histórias locais ou regionais, por causa de como são relatadas, por causa de como são editadas, em algum momento elas também são, eu diria, histórias universais. E é por isso que elas podem ser relevantes para meios em outras latitudes.”
A experiência com essas duas edições mostrou que esse é de fato o caso. O caso dessa edição global ficou muito mais claro, pois cada história tem uma tag PixelPing que permite rastrear o alcance de uma republicação: eles sabem quantos meios republicaram quais histórias e com que alcance (visualizações de página). Guyot esclarece enfaticamente que eles não coletam dados do púbico, mas exclusivamente o alcance da história.
De acordo com os registros da Rede, compartilhados com a LJR, a matéria mais republicada foi a do San Francisco Chronicle, intitulada em espanhol "Un barrio de San Francisco logró un notable avance en la lucha contra la falta de vivienda, pero hay un gran inconveniente". E a matéria do El Toque intitulada “Un programa de mentorías impulsa a las mujeres cubanas de las industrias creativas” conseguiu multiplicar por 15 vezes seu alcance, segundo os registros da Rede.
Agora, depois de concluir essa experiência, Guyot e sua equipe estão planejando uma segunda edição global a ser lançada no último trimestre de 2023. Destinada também a meios que publicam em espanhol e inglês, essa edição tem como objetivo adicionar mais meios e continuar aprendendo.
"Por trás da Rede de Jornalismo Humano há uma ideia muito importante sobre o valor da colaboração extrema [...] tudo o que temos a ganhar neste setor em termos de colaboração em um contexto extremamente desafiador por causa da perda de confiança dos leitores, por causa da forma como os negócios estão se desgastando e assim por diante", disse Guyot. "E, embora o compartilhamento de conteúdo possa parecer uma simples colaboração, é algo extremo porque, na realidade, cada meio depende do outro para fazer bem o seu trabalho: suas reportagens, sua edição, e assim por diante. É também por isso que damos tanta ênfase à seleção de parceiros, aos meios de comunicação que entram na [rede] e a todo o trabalho de edição e tradução.”
Imagem do banner: Cortesia Rede de Jornalismo Humano