Diante da seca sem precedentes que consumiu rios na Amazônia, um barqueiro carregou nos ombros as crianças ribeirinhas que transporta todos os dias à escola. A reportagem publicada pelo site Amazônia Latitude mostra o impacto humano da emergência climática e foi um dos destaques da newsletter Brasis no começo de outubro.
“Essa é a história, esse é o brasileiro que está construindo o país”, disse à LatAm Journalism Review (LJR) Audrey Furlaneto, editora da Brasis, sobre o que pensou quando leu a história do barqueiro e das crianças ribeirinhas de Santarém, no Pará.
Histórias do jornalismo local que ecoam questões nacionais e mesmo globais são compartilhadas diariamente na Brasis. A newsletter de curadoria foi lançada há dois anos pela Associação de Jornalismo Digital (Ajor) para divulgar o conteúdo produzido por suas associadas.
Furlaneto contou que participou da criação desse produto jornalístico que chega de segunda a sexta aos seus assinantes, com amostras do trabalho dos 157 meios nativos digitais membros da Ajor.
“A ideia, quando começamos, era mostrar que esse jornalismo digital brasileiro está produzindo conteúdos, e conteúdos de qualidade, que não vemos na mídia tradicional”, explicou Furlaneto.
A Brasis traz abordagens diversas desses meios digitais para assuntos em evidência no noticiário nacional. E também a cobertura local e de temas nos quais alguns desses meios são especializados, como questões ambientais, de gênero e raciais, que nem sempre recebem o devido destaque no jornalismo tradicional.
“Buscamos novos ângulos: quando todo mundo está falando de eleição, vamos falar de eleição de pessoas quilombolas ou olhar para as candidaturas LGBT”, disse Furlaneto. “Temos sempre esse olhar sobre o que está acontecendo no país agora e de que forma podemos olhar para as associadas [da Ajor] e pegar as perspectivas delas sobre isso.”
A Brasis é produzida por Furlaneto e Tainah Ramos, analista de comunicação da Ajor. Elas fazem uma ronda nos sites dos meios digitais e tentam entrar diariamente em todos eles – o que nem sempre é possível, disse Furlaneto. Além disso, elas têm um canal no Slack para que as associadas à Ajor mandem por ali suas recomendações para a newsletter.
A Brasis foi lançada em setembro de 2022 e enviada, a princípio, para uma base de emails da Ajor que continha cerca de 4 mil pessoas. Hoje, a newsletter tem 7.410 assinantes e uma taxa de abertura de 29%, disse Furlaneto.
Nos dois anos de Brasis, a equipe que produz a newsletter fez duas pesquisas de satisfação com os assinantes. A mais recente, realizada entre fevereiro e março deste ano, teve respostas de 158 deles. Mais da metade (55%) disse que passou a acompanhar um meio digital que conheceram pela Brasis. O mais citado foi o Nonada, sediado em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, que cobre cultura com foco em políticas culturais, comunidades tradicionais, culturas populares e memória e patrimônio.
Thaís Seganfredo, diretora de jornalismo e editora do Nonada, disse à LJR que todas as manhãs lê tanto a Brasis quanto alguns jornais tradicionais brasileiros. Ela considera que existe uma complementaridade entre o conteúdo dos nativos digitais veiculados na Brasis e aquele publicado na grande imprensa.
“Muitos fatos muito importantes do país naquele dia não são abordados pelo jornalismo tradicional e estão lá na Brasis”, disse Seganfredo.
Nesse sentido, Furlaneto considera a newsletter “um manancial de pautas” para jornalistas que trabalham em meios tradicionais. Ela mesma tem uma história de trabalho em grandes redações, pois iniciou sua carreira na Folha de S.Paulo aos 20 anos de idade, trabalhou também n’O Globo e colaborou com o jornal Valor Econômico e as revistas piauí e a extinta Época.
“Quando você está no dia a dia da redação, dentro do jornal, você olha para os concorrentes, para a grande imprensa. Quando eu fui para a Brasis, eu pensei que se eu soubesse antes que existia um ecossistema tão grande, eu teria me beneficiado muito disso, não só para conseguir pautas mas para ter outro olhar para as coisas”, disse Furlaneto.
Ela disse ter ouvido de amigos jornalistas que a Brasis os ajudou a encontrar fontes para suas reportagens sobre contextos locais dos quais eles estavam distantes.
“Por exemplo, uma pessoa estava cobrindo uma seca e não estava encontrando quem entrevistar. E aí entrou em contato com um veículo local que saiu na Brasis e conseguiu o contato de um morador. O jornalismo local nesse sentido tem muito a ensinar e oferecer para o jornalista da grande imprensa. Pode ser um caminho de troca muito interessante”, disse Furlaneto.
Seganfredo ressaltou, porém, que é recorrente que meios nativos digitais pautem, direta ou indiretamente, meios tradicionais e não recebam nenhum reconhecimento por isso.
“Eu acharia muito bom se os veículos tradicionais começassem a valorizar mais o que o jornalismo digital traz e cada vez mais dessem crédito para o que essas organizações fazem com tanta qualidade, como temos visto na Brasis”, disse ela.
Além de ter trazido mais leitores para o Nonada, a Brasis também proporcionou impactos mais “subjetivos” ao meio, disse Seganfredo. “Sei que o Nonada se tornou mais conhecido por representantes de organizações do terceiro setor, um público com quem temos bastante interesse em dialogar”, disse ela.
Seganfredo também observou que estar na Brasis potencializa a republicação do conteúdo do Nonada em outros meios de comunicação.
“O Nonada tem licença livre, e todas as nossas reportagens podem ser replicadas nos sites de outros veículos na íntegra. Já vi algumas vezes matérias nossas serem replicadas por outros veículos no mesmo dia ou no dia seguinte que saíram na Brasis. Para nós isso é muito importante, porque amplifica e faz ecoar nosso jornalismo”, disse ela.
Furlaneto disse que o conteúdo divulgado pela Brasis que mais recebeu cliques até hoje foi a reportagem “Do outro lado da tela: Por que jovens das periferias entraram no mercado de conteúdo adulto na internet”, publicado em abril deste ano pela Agência Mural, que faz jornalismo sobre periferias.
Além dos cliques nessa reportagem, 10% dos assinantes da Mural Inbox, newsletter da agência, vieram da Brasis, disse à LJR Anderson Meneses, diretor de tecnologia e negócios da Mural. Esses assinantes vieram por meio da recomendação da Substack, plataforma usada pelas duas newsletters.
Meneses disse que acompanha a Brasis diariamente e que o maior valor que vê na newsletter, em comparação com boletins de meios tradicionais, é a pluralidade de visões oferecidas.
“A Brasis traz múltiplos olhares. Ela tem uma linha editorial, digamos, que é a da Ajor, mas ela acopla linhas editoriais diversas, de tantos olhares distintos do Brasil, e traz olhares muito diferentes de um Grupo Globo ou um Grupo Folha”, disse Meneses em referência a dois grandes grupos de comunicação no país. “A pluralidade da Brasis está em ser feita pelas várias mãos e pelos vários olhares das pessoas que estão em distintos territórios do Brasil.”
Suzana Barbosa, professora de jornalismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) que pesquisa comunicação e cultura digital, disse à LJR que é leitora assídua da Brasis e que valoriza a diversidade ofertada pela newsletter.
“Sempre falo para os estudantes que [a Brasis] é uma amostra tanto da diversidade temática, pelas características das associadas à Ajor, quanto da diversidade regional do Brasil. Essa amplitude talvez não exista em outro lugar”, disse ela.
A professora destacou, porém, que vê a newsletter pela perspectiva de uma profissional do jornalismo e pesquisadora do tema, e que não sabe se as pessoas que assinam a Brasis conseguem dimensionar a relevância dessa diversidade. A newsletter, disse ela, fura bolhas informacionais ao oferecer alternativas aos meios tradicionais.
“Infelizmente, sabemos que não é todo mundo que busca a diversificação de suas fontes de informação. E isso é uma perda, é um prejuízo muito grande para a formação não só dos leitores, mas para as vidas das pessoas, para saber que há mais além daquilo que é ofertado no mundo hegemônico das marcas [de jornalismo]”, disse Barbosa.
Furlaneto disse que, nesses dois anos, não houve uma grande campanha de divulgação da Brasis para além de posts nos perfis da Ajor em redes sociais. O próximo passo para ajudar a disseminar a newsletter, segundo ela, será divulgá-la entre estudantes e faculdades de jornalismo.
“Queremos mostrar para quem está se formando – e essa é também uma das missões da Brasis – que existe trabalho fora da mídia tradicional. Que podemos olhar para veículos locais, em nossas próprias comunidades, e ver ali mesmo o potencial de trabalho”, disse Furlaneto. “Eu sou da geração que saía da faculdade e ia tentar fazer os trainees da Folha ou do Estadão. Hoje você pode ir em busca de um veículo na sua comunidade e fazer um excelente trabalho.”