A reconstrução da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) é uma das promessas do atual governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que criou a estatal em seu segundo mandato, em 2008. Nomeado presidente da EBC em 13 de fevereiro, o jornalista Hélio Doyle foi destacado para liderar a reconstrução da empresa responsável pela comunicação pública no país após seis anos de desmandos e censura sob os governos de Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022).
“A EBC é uma empresa estatal, mas tem como foco a comunicação pública, e é isso que queremos: fazer uma comunicação isenta, de qualidade, independente do governo. E o jornalismo naturalmente vai ser um carro-chefe nesse sentido”, disse Doyle à LatAm Journalism Review (LJR).
A EBC administra emissoras de rádio e televisão federais e uma agência de notícias online, a Agência Brasil. Segundo Doyle, a prioridade da nova gestão é restabelecer a separação entre a comunicação pública e a comunicação governamental.
“Vemos a EBC como o grande instrumento que temos para fazer uma comunicação pública de qualidade, que chegue realmente às pessoas, que preste um serviço público. No caso do jornalismo, pretendemos deixar muito claro o que é o jornalismo público e o que é a informação de governo”, disse ele. Isso será feito por meio da separação dos canais da empresa dedicados à comunicação pública e à comunicação do governo, explicou.
Em abril de 2019, o governo Bolsonaro fundiu os dois canais de TV da EBC: a TV Brasil, emissora pública, e a TV NBr, dedicada à comunicação do governo. O efeito dessa medida foi o sequestro da comunicação pública pela comunicação governamental, com a frequente interrupção da programação da TV pública para veicular eventos do governo com a presença de Bolsonaro. Essas inserções tomaram quase 193 horas da TV Brasil entre agosto de 2021 e julho de 2022, segundo o 4º Dossiê de Censura e Governismo na EBC, realizado pela Comissão de Empregados da EBC e pelos Sindicatos dos Jornalistas e dos Radialistas de Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo.
Além disso, se tornaram regra a cobertura benevolente de atos do governo e entrevistas amigáveis com então ministros e outras autoridades governistas nos programas da TV Brasil, segundo reportagem da revista piauí publicada em maio de 2022.
Já no atual governo, a Ouvidoria Cidadã da EBC, grupo formado em 2020 por funcionários e defensores da estatal dedicado à análise do conteúdo veiculado pelos canais da empresa, registrou que em mais de uma ocasião em janeiro a programação da TV Brasil foi interrompida para veicular eventos com o presidente Lula.
“No momento em que nós tivermos dois canais ativos, claramente identificados como TV pública e TV do governo, isso não vai acontecer mais”, disse Doyle, acrescentando que esses episódios aconteceram antes de sua nomeação como presidente da EBC.
“O que ainda está acontecendo, enquanto não implantamos o novo sistema, é que em algumas circunstâncias muito especiais a programação da TV Brasil poderá ser interrompida por uma informação importante de governo ou um pronunciamento do presidente. Mas não da maneira como foi feita [em janeiro]. Seria programado, o espectador seria avisado de que isso vai acontecer e que a programação vai ser retomada logo depois. Mas está acontecendo cada vez menos. Estamos evitando isso ao máximo. E não será assim no futuro. Agora, não temos condições de fazer essas mudanças de uma hora para outra. Estamos trabalhando nesse sentido e alguns ruídos ainda podem acontecer”, justificou.
A nova gestão da EBC se dedica no momento à elaboração de novas grades de programação para a TV pública e para a TV governamental, e também está discutindo novos nomes e novas identidades visuais para os dois canais, disse Doyle. A estimativa, segundo ele, é que as mudanças explicitando a divisão entre as duas modalidades de comunicação produzidas pela EBC nas TVs, nas rádios e na Agência Brasil devem ir ao ar entre a segunda quinzena de abril e a segunda quinzena de maio.
Doyle é jornalista e iniciou sua carreira em 1967, segundo o site Jota. Atuou em meios nacionais e regionais como Correio Braziliense, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Rede Globo, Veja, IstoÉ e Jornal do Brasil, entre outros. Também foi professor no curso de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) e exerceu várias funções públicas, especialmente no governo do Distrito Federal, em Brasília, onde atuou como secretário de Governo, da Casa Civil e do Gabinete de Articulação Institucional.
Segundo ele, o jornalismo nos canais públicos da EBC se dedicará a “abordar principalmente os temas mais prementes na sociedade hoje e que não têm uma cobertura à altura nas emissoras privadas”. “Queremos tratar bastante de temas atuais como meio ambiente, ciência e tecnologia, diversidade, direitos humanos, direitos de minorias, educação, saúde. São temas que consideramos que fazem parte do rol das preocupações de uma comunicação pública”, afirmou.
No entanto, nos canais governamentais, “o jornalismo que pretendemos fazer também é um jornalismo sério”, disse ele, citando a Agência Brasília, remodelada quando ele foi secretário-chefe da Casa Civil do governo do Distrito Federal, em 2015.
“Uma agência de informações do governo não é uma agência de propaganda. É uma agência jornalistica, que presta informações dentro dos cânones do jornalismo para serem acessíveis por qualquer pessoa e por jornais, revistas, televisões, rádios, blogs, portais, etc. Então ela tem que ser verdadeira. Não é propaganda, é jornalismo”, sublinhou, exemplificando com a necessidade de checagem jornalística de um anúncio de governo.
“Por exemplo: um ministro quer divulgar um programa que segundo o ministério vai beneficiar X milhões de pessoas, com tantos recursos. Se queremos fazer jornalismo, temos que checar essas informações, mesmo partindo de um órgão do governo. ‘É isso mesmo? Esse programa vai realmente beneficiar tantos milhões de pessoas? O orçamento desse programa é esse que está sendo anunciado ou isso é uma projeção para daqui a cinco anos?’ O jornalista não pode simplesmente repassar uma informação, mesmo em se tratando de um canal governamental. Ele tem que checar a informação”, afirmou.
Essa separação entre o jornalismo público e o jornalismo governamental também se dará na nova estrutura da empresa, que deve entrar em vigor entre o fim de março e o começo de abril, segundo ele.
“Na nova estrutura, a Diretoria de Jornalismo deixa de existir. Vamos ter uma Diretoria de Comunicação Pública e uma Diretoria de Serviços de Comunicação. Flávia [Filipini, atual chefe de assessoria na EBC] será a diretora de Serviços de Comunicação, que será o ramo governamental da EBC, e a Diretoria de Comunicação Pública terá um gerente-executivo de jornalismo. Então o jornalismo será dividido em dois: vai ter um jornalismo na comunicação pública e vai ter um jornalismo na comunicação governamental”, explicou.
Uma das questões mais graves no jornalismo produzido pela EBC sob o governo Bolsonaro foram as centenas de denúncias de censura por parte dos jornalistas da empresa. O 4º Dossiê de Censura e Governismo na EBC contabilizou 292 casos de censura e governismo – a imposição da perspectiva do governo – nos meios da empresa entre agosto de 2021 e julho de 2022.
“O passado passou, e há um presidente novo [no Brasil] e uma diretoria nova na EBC”, disse Doyle ao ser questionado sobre essa situação. “É óbvio que não tem censura nem tema proibido. Cada caso é avaliado editorialmente pela própria redação” de cada meio, afirmou.
“Aos poucos nós vamos definindo uma linha editorial, como todo veículo tem sua linha editorial. A edição é um processo de seleção, é impossível noticiar tudo o que acontece. O que vamos estabelecer são critérios claros nessa linha editorial, no processo de edição. Jamais ter censura ou temas proibidos. É óbvio que vamos estar dentro dos princípios básicos da cidadania, mas em relação a algumas nuvens que se colocam às vezes, alguns sombreamentos, vamos definindo ao longo do tempo”, disse ele.