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Violência de gênero nas redações: Estudo revela impunidade e falta de protocolos na América Latina

Na Colômbia, a negligência de um grande meio de comunicação perante um caso de agressão sexual de um editor contra uma jornalista levou a Corte Constitucional a estabelecer que empresas públicas e privadas são responsáveis por prevenir e sancionar a violencia de gênero nos espaços de trabalho.

Na Argentina, um coletivo de jornalistas apresentou no Senado um relatório reunindo denúncias de assédio sexual de 19 mulheres contra um renomado jornalista. Ele inicialmente negou as acusações, mas dias depois publicou um vídeo se responsabilizando e pedindo desculpas às mulheres por suas “atitudes inapropriadas”.

Os dois casos tiveram repercussão dentro e fora desses dois países e levaram para o debate público uma questão conhecida por mulheres jornalistas na região: a prevalência da violência de gênero em redações, coberturas e outros ambientes de trabalho.

Um estudo recente levantou dados para evidenciar esse cenário. Pesquisadoras do estudo #MediosSinViolencias, realizado pela organização argentina Comunicación para la Igualdad com apoio da Unesco e publicado integralmente em agosto, ouviram 108 jornalistas e gestores – mulheres e homens – de 95 meios de comunicação em 14 países latino-americanos.

Três quartos (75%) disseram conhecer pelo menos um caso de violência de gênero contra mulheres jornalistas, tanto online quanto offline. Quase metade (48%) disse que esses casos de violência aconteceram no principal local de trabalho das jornalistas (redação ou estúdio de TV ou rádio).

Os principais agressores nos ambientes offline foram pessoas em postos de chefia (49%) nos meios em que as vítimas trabalhavam e colegas do mesmo nível hierárquico (27%). As formas predominantes de violência de gênero contra jornalistas, segundo as pessoas ouvidas no estudo, foram as violências psicológica e verbal (65,6%) e assédio sexual (28%).

Em mais da metade dos casos citados pelos respondentes (54,5%), os agressores não foram sancionados. Menos de um terço (28%) dos casos gerou uma denúncia, seja ela dentro do próprio meio de comunicação ou na Justiça. Em 41,5% dos casos denunciados, houve represália contras as pessoas que denunciaram, como pressões no trabalho, ameaças e demissões.

Esses três últimos dados formam “um triângulo que evidencia a impunidade do poder dentro dos meios de comunicação”, disse Sandra Chaher, coordenadora e editora do estudo, à LatAm Journalism Review (LJR).

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Sandra Chaher, coordenadora do estudo #MediosSinViolencias e presidenta da associação Comunicación para la Igualdad. (Arquivo pessoal)

“Você tem aí uma pirâmide de poder que diz respeito a empresas onde há impunidade, ou seja, os agressores não são punidos e, em vez disso, as vítimas são atacadas. Por isso, as vítimas se retraem”, disse ela. “Se você viu o caso de uma colega que foi denunciar e ou a demitiram, ou a transferiram, ou a ameaçaram, isso não serve de incentivo para que você denuncie. Isso foi o que mais nos surpreendeu, porque revela o quanto está enraizada a violência associada ao poder nos meios de comunicação da região.”

Protocolos para lidar com a violência

Além das entrevistas com jornalistas, o estudo também fez uma análise de 27 protocolos de atenção à violência de gênero no trabalho. Desses, 22 estão em vigor em meios de comunicação e cinco foram elaborados por sindicatos de jornalistas da região.

Segundo o estudo, um protocolo é “uma ferramenta que padroniza procedimentos de atuação diante de uma situação específica, em um âmbito determinado”. Em casos de discriminação, assédio e violência nos espaços de trabalho, o protocolo “permite lidar com a situação apresentada e abordá-la de forma adequada em todos os aspectos, por meio de uma intervenção integral”, explica o estudo.

Dentre os protocolos analisados, apenas dois foram elaborados antes de 2015. Esse foi o ano em que surgiu o movimento feminista Ni Una Menos na Argentina, que pautou a violência de gênero no debate público na América Latina.

“Para nós, isso é um reflexo do impacto que o movimento Ni Una Menos gerou na América Latina: o fato de começar a falar sobre violência e desenvolver algum nível de sensibilidade e preocupação com esse tema. Assim, as empresas de jornalismo começaram a perceber que precisavam fazer algo a respeito”, disse Chaher.

A partir dessa análise e com a colaboração de pelo menos 30 meios de comunicação latino-americanos, as responsáveis pelo estudo elaboraram um Protocolo Marco de Prevenção e Ação contra a Discriminação, o Assédio e a Violência no Trabalho Jornalístico.

“Entendemos a existência e a aplicação de protocolos de atendimento à violência como uma das estratégias que as organizações de notícias poderiam desenvolver para promover melhores ambientes de trabalho”, afirma o estudo. Também enfatiza que os protocolos devem ser implementados no contexto de um plano integral de prevenção da violência que desenvolva outras ações, e que é fundamental o compromisso de gestores e proprietários de meios com tais políticas.

“Sem um papel ativo das lideranças em desativar a violência e criar espaços de trabalho inclusivos, a existência do protocolo por si só não será suficiente”, afirma o estudo.

A pesquisa #MediosSinViolencias também constatou que mais da metade (57%) dos 95 meios de comunicação representados na amostra não têm um protocolo de atenção à violência de gênero. Cerca de um terço (32%) contam com um protocolo, e em 12% dos casos as pessoas entrevistadas disseram não saber responder.

Chaher destacou que, nos meios onde há uma área especializada no tratamento desse tipo de denúncia, 41% das pessoas disseram avaliar de maneira positiva seu funcionamento. Para ela, esse é um incentivo para que organizações e empresas adotem protocolos e áreas especializadas para tratar de violência de gênero no trabalho.

“Melhora muito o clima laboral, ou seja, as pessoas ficam mais satisfeitas porque sentem que esses temas estão sendo abordados”, disse ela. “Se você tem que trabalhar todos os dias em um ambiente violento e não tem muita vontade de ir trabalhar, é provável que a qualidade do seu trabalho seja menor.”

Responsabilidade de Estados e empresas

O estudo faz referência ao marco legal regional e internacional sobre esse tema, e cita a Convenção 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata de violência e assédio no mundo do trabalho.

Segundo a Convenção, estabelecida em 2019, “violência e assédio com base no gênero” são “violência e assédio dirigido às pessoas em virtude do seu sexo ou gênero, ou afetam de forma desproporcionada as pessoas de um determinado sexo ou gênero, e inclui o assédio sexual”.

A Convenção 190 determina que os países que a ratifiquem devem adotar as medidas necessárias para erradicar a violência e o assédio nos espaços de trabalho. Até o momento, 11 países de América Latina e Caribe ratificaram a convenção: Antigua e Barbuda, Argentina, Bahamas, Barbados, Chile, Equador, El Salvador, México, Panamá, Peru e Uruguai.

Para Chaher, a Convenção 190 “é um grande avanço, justamente porque havia um vazio legal em relação a esse tema”.

Embora a Colômbia ainda não tenha ratificado a Convenção 190, a norma foi uma das que informou a sentença T140/21 da Corte Constitucional do país.

A Corte estabeleceu que o Estado colombiano e as empresas têm “a obrigação de prevenir, investigar, julgar e sancionar os responsáveis por atos de violência e/ou discriminação contra mulheres jornalistas e aquelas que trabalham na mídia e, nesse sentido, devem agir de maneira proativa, não neutra e intolerante em relação à violência e/ou discriminação por motivos de gênero contra mulheres jornalistas”.

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Laura Martínez trabalhou no desenvolvimento do protocolo de atenção à violência de gênero do meio colombiano Cuestión Pública. (Arquivo pessoal)

Laura Martínez, advogada e líder de acesso à informação do meio colombiano Cuestión Pública, disse à LJR que a partir dessa sentença, emitida em maio de 2021, os meios de comunicação do país passaram a olhar para esse tema com mais atenção.

Neste ano, Cuestión Pública também desenvolveu, em parceria com a Fundação para a Liberdade de Imprensa (Flip), seu próprio protocolo de atenção à violência de gênero contra jornalistas, disse Martínez.

“Cuestión Pública é um meio de comunicação feminista. Então, há muito tempo, estávamos pensando que, se somos um meio de comunicação feminista a partir de dentro, tínhamos que ter nossas próprias ferramentas para também proteger nossas jornalistas”, disse Martínez. “Queríamos deixar muito claro que existe uma violência direcionada às jornalistas simplesmente por serem mulheres.”

Por isso, Cuestión Pública foi convidado a colaborar na elaboração do Protocolo Marco do projeto #MediosSinViolencias, contou ela.

“Participamos de algumas reuniões e discutimos sobre o tema. Foi um espaço de muito crescimento para nós também, porque já tínhamos um conhecimento prévio sobre como era o protocolo e como ele funcionava, mas discutir com outras colegas e conhecer seus pontos de vista foi maravilhoso”, disse Martínez.

Ela destacou que um dos pontos do Protocolo Marco que lhe pareceu mais relevante é a abordagem integral ao problema da violência de gênero contra jornalistas. Além de apontar soluções para casos que venham a acontecer, o protocolo também prevê que as organizações avaliem os riscos, detectem potenciais situações de violência e adotem medidas preventivas. Também devem se dedicar a transformar a cultura da organização para garantir ambientes laborais livres de discriminação, violência e assédio.

Martínez também ressaltou que o importante é “começar de uma forma muito básica”.

“Quando você está em uma situação de risco, você não precisa de um monte de palavras técnicas. Realmente, é importante ter um protocolo que seja muito rápido”, disse ela. “Isso foi o que tentamos fazer em Cuestión Pública. Acho fundamental que, mais do que algo burocrático, seja uma questão de rapidez e agilidade.”

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