Quase 150 milhões de brasileiros estão aptos a votar nas eleições em novembro deste ano, quando vão eleger prefeitos e vereadores em mais de 5.500 municípios do país. Para melhorar a cobertura jornalística e qualidade do debate público nesse momento crucial para qualquer democracia, o Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor) e o Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) lançaram no início de agosto o projeto Manual GPI Eleições 2020.
A plataforma oferece um material amplo, ao mesmo tempo técnico e didático, com os principais conceitos, ferramentas e dicas sobre como cobrir a próxima eleição e políticas públicas municipais. Há mais de dez seções no site: Municípios, Políticas, Transparência, Dados, TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Ética, Checagem, Impacto, Perguntas, Vídeos e Mais.
"A gente brinca que se um repórter descer de Marte e souber falar português, ele lê o manual e se vira nas eleições. Fizemos um projeto pensando em todos os cidadãos, mas sobretudo nos jornalistas locais, porque eles que têm condições de perguntar aos candidatos", disse Angela Pimenta, editora do projeto e diretora de operações do Projor, à LatAm Journalism Review.
Em cada seção no site, há uma introdução teórica concisa e dicas práticas, que incluem como fazer títulos sem reforçar a desinformação, como usar dezenas de ferramentas gratuitas para jornalismo de dados, checagem e verificação de fotos e vídeos e até mensuração do impacto das reportagens.
A seção TSE, por exemplo, explica as regras das eleições: quem pode se candidatar, como funciona o calendário eleitoral, as mudanças mais recentes na legislação e o perfil do eleitorado. Há uma seção inteira com listas de perguntas, técnicas, para serem feitas aos candidatos, segmentadas por área (educação, saúde, meio ambiente etc). O item Municípios, por outro lado, ensina o papel do prefeito e dos vereadores, e como funcionam impostos e receitas municipais.
Pimenta afirma que a cobertura jornalística sobre os candidatos acaba, muitas vezes, sendo personalista, e o manual ajuda a embasar um debate mais técnico. "A gente quer suprir uma lacuna com informação confiável, disponível, robusta e amigável para o jornalista local, porque ali tem tudo, inclusive as referências, os links, é uma caixa de ferramentas mesmo. O repórter está cansado, atrasado, às vezes nem conhece o assunto, porque foi deslocado para cobrir, então ele pode abrir as perguntas [do Manual, antes de ir para a pauta]. A ideia era dar essa força para quem está precisando", explica ela.
Uma das partes principais, a seção Políticas, mostra as siglas, metas e desafios mais importantes em educação, habitação, meio ambiente, mobilidade, saúde e segurança pública. Também indica, para cada uma dessas áreas, quais são as competências dos poderes municipais, estaduais e federais, além de questões críticas e as melhores fontes. Já seções como Impacto, Ética, Dados e Checagem vão muito além das eleições e podem servir como guias práticos de jornalismo para qualquer momento.
O Manual teve a sua primeira edição nas eleições de 2016 e integra o projeto Grande Pequena Imprensa (GPI), idealizado pelo jornalista e fundador do Projor Alberto Dines (1932-2018). A segunda edição foi feita em parceria com o Insper para tornar o site mais abrangente. Além de Pimenta, o projeto é editado pelos jornalistas Francisco Belda e Pedro Burgos e pelo economista André Marques.
O material completo levou mais de um ano para ser elaborado e teve a participação de quase 30 profissionais, principalmente jornalistas, acadêmicos e especialistas. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e o Instituto Pólis são apoiadores institucionais, e financiamento é do Google News Initiative e do Facebook Journalism Project.
Além do conteúdo para consulta, o site oferece uma ferramenta chamada Raio-X dos Municípios, desenvolvida pelo Insper. A plataforma é uma compilação de diferentes bases de dados públicos, em que é possível buscar informações sobre cada município e comparar com outros.
Assim, ao escolher uma cidade, o usuário visualiza uma série de números, como tempo médio de deslocamento dos habitantes da casa ao trabalho, oferta de leitos hospitalares, porcentagem da população vacinada, acesso a energia elétrica e saneamento básico etc. Todos esses índices são apresentados dentro de um contexto, com gráficos, o que permite a comparação com a média nacional, com municípios da mesma região e com até cinco outras cidades que tenham população, Índice de Desenvolvimento Humano e economia parecidos.
Segundo Pedro Burgos, editor do projeto e coordenador do Programa Avançado em Comunicação e Jornalismo do Insper, a ferramenta facilita o trabalho do repórter, porque une informações que estão dispersas em muitas bases.
"Não é todo mundo que tem tempo de fazer um curso de jornalismo de dados ou a habilidade de extrair um CSV (arquivo bruto de planilha) de milhões de linhas, o que é necessário para trabalhar com esses dados dos municípios. Algumas vezes, quando você baixa a planilha [de uma base pública], os nomes das colunas vêm confusos, e precisa ter um dicionário de dados, é um processo laborioso. O objetivo era tornar isso mais acessível", disse ele à LJR.
Burgos afirma que o Raio-X dos Municípios vai continuar sendo atualizado, mesmo após as eleições. Ele espera que o projeto sirva como material didático e de consulta não só para repórteres, mas também para estudantes de jornalismo. Isso seria importante porque, segundo ele, as faculdades não costumam capacitar jornalistas para cobrir políticas públicas.
"Há uma deficiência na formação nesse ponto, então nós não conseguimos julgar o que é uma política pública efetiva. Achamos que colocar mais dinheiro em um problema significa ajudar a resolver, mas isso não é necessariamente verdade. Se você olhar as manchetes nos jornais brasileiros, uma reportagem comum é 'o governo só gastou 20% do orçamento para tal coisa'. E isso [o gasto menor] é considerado um fracasso", afirma.
Ele dá o exemplo de municípios diferentes que receberam recursos do governo federal para combater a COVID-19. "Quando você vai olhar os dados, um município gastou mais porque comprou 30 mil cápsulas de hidroxicloroquina, que não tem efeito [contra a doença]. Então para o jornalista ter essa visão um pouco mais sofisticada, de não olhar só o gasto, e mensurar o impacto, precisa ter uma formação melhor em políticas públicas", diz.
Burgos acredita que essa é uma tendência mundial, de ter uma cobertura no nível municipal mais fraca. No caso do Brasil, além da formação dos jornalistas, há outros motivos, como a falta de engajamento e interesse da população em políticas locais, o que se reflete em uma menor audiência para essas reportagens.
"Uma matéria sobre política tem muito mais audiência e interesse se falar sobre Brasília, sobre o governo [de Jair] Bolsonaro, porque tem sempre essa novela, todo dia tem um capítulo novo. Então é normal que os jornalistas procurem essas histórias, porque nós, como leitores, gostamos de emoção, e tem mais isso no plano nacional. O Congresso é muito mais dramático e dinâmico do que uma câmara de vereadores, por exemplo." Com isso, afirma Burgos, não há incentivo das redações, nem dos leitores, para cobrir em profundidade as políticas locais.
Isso é algo que o projeto busca reverter, até porque, de acordo com Angela Pimenta, o poder local é o mais próximo e visível na vida das pessoas. "As decisões das prefeituras afetam diretamente o cotidiano da população: se tem buraco na rua, se não tem iluminação, se a fila no posto de saúde está enorme... E, no entanto, em termos de noticiário, isso tem menos espaço. Sabemos mais sobre o Palácio do Planalto do que da nossa prefeitura."