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Diversificação de receitas: a diferença entre sobreviver ou não após a suspensão do apoio dos EUA aos veículos independentes

Quando o presidente dos EUA, Donald Trump, assinou uma ordem executiva para congelar a ajuda ao exterior, as organizações de notícias da América Latina sentiram os efeitos quase imediatamente.

“Os efeitos são fortes para quase todos os meios de comunicação nos ecossistemas latino-americanos que trabalham com modelos que não são necessariamente baseados em publicidade ou em venda de assinaturas”, disse José Jasán Nieves, diretor do veículo digital cubano El Toque, à Latam Journalism Review (LJR). “Vamos ver muitos meios de comunicação fechando e sendo incapazes de continuar as operações, mesmo que o financiamento dos Estados Unidos retorne.”

Screenshot of U.S. President Donald Trump's executive order suspending foreign aid. (Photo: Screenshot of The White House's site)

Ordem executiva de Trump congela programas de ajuda internacional que dependem de financiamento dos EUA por 90 dias. (Foto: Captura de tela do site da Casa Branca)

A ordem, assinada em 20 de janeiro, estabelece o congelamento por 90 dias dos programas de ajuda internacional que dependem de financiamento dos EUA. Isso inclui mais de US$ 268 milhões que haviam sido destinados pelo Congresso do país para apoiar a mídia independente e programas em prol do livre fluxo de informação em todo o mundo durante 2025, de acordo com dados da Repórteres Sem Fronteiras (RSF).

Diante da alta probabilidade de terem que reduzir suas equipes, cancelar projetos ou até mesmo desaparecer, os veículos independentes da América Latina estão vendo mais claramente do que nunca a importância da diversificação de suas fontes de receita.

Alguns deles já começaram a colocar em prática estratégias para mitigar o impacto da suspensão, como a reorganização de prioridades, a antecipação de projetos e o lançamento de campanhas de crowdfunding.

“A diversificação de financiamento não foi tratada com seriedade”

Nieves disse que modelos de negócios como programas de associação, suporte ao público ou serviços de terceiros têm sido secundários para a maioria dos veículos de comunicação que fazem jornalismo investigativo ou cívico. O modelo predominante neste tipo de veículos, disse ele, tem sido o financiamento através de subvenções de organizações ou da cooperação internacional.

El Toque vinha trabalhando nos últimos anos para reduzir sua dependência desse tipo de financiamento mediante uma estratégia de diversificação de suas receitas, acrescentou Nieves.

Graças a isso, o veículo prevê que o impacto da suspensão de apoios de entidades americanas será de 50% em seu orçamento anual. Diferentemente de outros veículos independentes de Cuba, que dependem 100% destes financiamentos, disse ele.

“No ecossistema de mídia cubano, a diversificação de financiamento não era um tema tratado com seriedade", disse Nieves. “A cooperação americana parecia tão sólida e tão intocável, e os financiamentos anuais se mantiveram bastante estáveis durante muito tempo, que acredito que muita gente não pensou realmente que precisava diversificar.”

Patricia Mercado, fundadora e diretora da Conexión Migrante, um dos veículos nativos digitais mexicanos afetados pela suspensão do financiamento, disse que uma vantagem que sua redação tem é que suas fontes de receita estão mais ou menos diversificadas.

Como além do financiamento internacional, eles também têm receitas de doações e serviços a terceiros, como campanhas de comunicação, o impacto da ordem de Trump afetará a organização em 20% de sua receita, disse Mercado.

No entanto, a suspensão gerou em sua redação a reflexão sobre o quão perigoso é para os meios independentes dependerem da ajuda internacional. Porque, disse ela, o mesmo que está acontecendo com o financiamento dos Estados Unidos poderia acontecer com os apoios de qualquer outro país ou organização.

“Essa discussão sobre o quanto se deve depender de subsídios, eu já escuto há muito tempo. E este é o primeiro exemplo que temos do que pode acontecer [por essa dependência]”, disse Mercado à LJR. “É muito legal quando te dizem 'ano que vem vou te dar US$200 mil’. Você acaba ficando acomodado e diz 'já tenho isso resolvido'. E não necessariamente.”

Tempestade perfeita e mudança de paradigma

O congelamento da ajuda dos Estados Unidos está causando caos em nível global e afeta seriamente o jornalismo, disse Clayton Weimers, diretor do escritório da RSF na América do Norte, em nota à imprensa em 4 de fevereiro.

Somente em 2023, o apoio da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês) beneficiou 6.200 repórteres, 707 meios independentes e 279 organizações dedicadas a fortalecer o jornalismo independente em todo o mundo, disse a RSF.

Team members of Latin American journalism organization Factual/Distintas Latitudes. (Photo: Courtesy Factual/Distintas Latitudes)

A equipe do Factual/Distintas Latitudes. Seu diretor, Jordy Meléndez, (à direita) disse que o congelamento do financiamento afeta diretamente um de seus principais programas. (Foto: Cortesia Factual/Distintas Latitudes)

Mesmo os meios de comunicação mais bem preparados para o impacto da suspensão antecipam fortes efeitos em suas operações. Para El Toque, a perda desses fundos pode significar a redução de seu quadro de funcionários de 30 para menos de 10, disse Nieves.

A Conexión Migrante terá que suspender parcialmente pelo menos duas iniciativas para atingir seu público, incluindo um projeto de vídeo com conteúdo útil para migrantes que fazia parte do plano do veículo para enfrentar os desafios que as políticas migratórias de Trump trarão para a cobertura. 

A plataforma regional de jornalismo Factual-Distintas Latitudes deixará de receber financiamento que representa 30% de seu orçamento anual, disse à LJR seu codiretor Jordy Meléndez.

Embora a organização conte com outras fontes de receita, a suspensão impacta diretamente um de seus programas principais: a Rede LATAM de Jovens Jornalistas. Em 10 anos de existência, a Rede identificou, formou e impulsionou o talento de quase 450 jornalistas de toda a região.

Meléndez disse que, embora espere que a atual geração da Rede se desenvolva sem problemas, não tem certeza absoluta de que haverá uma décima geração do programa.

“Fundos de uma agência de cooperação dos Estados Unidos financiavam esse projeto específico, que é realmente o coração de tudo o que a Factual faz”, disse Meléndez. “Todos os outros projetos que temos hoje em dia de alguma maneira estão vinculados ou dependem da Rede LATAM.”

A ordem de Trump estabelece a suspensão da ajuda internacional por 90 dias para realizar uma revisão do alinhamento desses programas "com a política externa dos Estados Unidos". O documento indica que os programas poderão ser reativados após essa revisão.

Existe a possibilidade de que a suspensão seja contestada nos tribunais americanos, já que esses fundos são destinados pelo Congresso do país, e muitos deles são direcionados a programas dos quais dependem vidas humanas, afirmou Laura Dib, diretora do programa Venezuela no Escritório de Washington para Assuntos Latino-Americanos (WOLA, na sigla em inglês).

"Trata-se de dinheiro que foi apropriado pelo Congresso e, portanto, cabe ao Congresso decidir como esse dinheiro será utilizado", disse Dib à LJR. "Embora não seja apenas para questões humanitárias. Há recursos destinados a programas relacionados à democracia, aos direitos humanos, ao acesso à informação e ao apoio ao jornalismo independente."

No entanto, os jornalistas estão pessimistas quanto ao restabelecimento dos programas após o período de 90 dias, por isso muitos deles já estão buscando financiamento em outros países e organizações. Dib disse que, embora existam programas de apoio ao jornalismo independente em alguns países europeus, eles também estão passando por mudanças.

"A Europa terá que preencher certos vazios, o que também é preocupante porque há países na Europa que também estão se voltando vertiginosamente para a direita e fechando seus programas relacionados a direitos humanos e democracia", disse Dib. "Isso coloca as organizações em uma situação muito difícil, na qual terão que competir entre si por recursos."

Organizações privadas que se destacavam por seu apoio ao jornalismo global, como Open Society Foundations, Knight Foundation ou Ford Foundation, também estão mudando suas prioridades e reduzindo ou encerrando seus programas de financiamento, disse Nieves.

Soma-se a isso o recente encerramento de iniciativas de apoio ao jornalismo por parte de gigantes da tecnologia, como o programa do Facebook para pagar veículos de comunicação por conteúdo, ou o encerramento de seu programa de fact-checking, que embora no momento não se aplique à América Latina, causa preocupação entre os jornalistas da região.

Os jornalistas concordam que o panorama é bastante desolador.

"Com a soma desses fatores, é preciso entender que não é uma situação temporária e que estamos diante de um evento de extinção em massa de veículos de comunicação", disse Nieves. "Acredito que, se [o financiamento americano] voltar, será sob outras condições e, até lá, o dano já pode ser muito profundo."

Screenshot of a post of the crowdfunding campaign by Mexican digital media outlet Conexión Migrante. (Photo: Screenshot)

Conexión Migrante buscará reforçar a campanha de doações lançada em dezembro, chamada “Dona una Dona” (“Doe um Donut”). (Foto: Captura de tela)

A RSF destacou que muitas organizações de países com regimes autoritários têm evitado tornar público o impacto que o congelamento do financiamento está causando por medo de colocar em risco seu financiamento a longo prazo ou de se tornarem alvo de represálias.

Uma jornalista que pediu anonimato e que dirige um grupo de veículos que trabalham em aliança em seu país disse à LJR que pelo menos metade desses veículos poderá fechar em um período entre três e seis meses.

Mercado, por sua vez, prevê que as redações que não desaparecerem serão forçadas a reduzir seu tamanho e suas capacidades.

"O que está acontecendo é uma mudança na dinâmica de muitas organizações. Muitas vão desaparecer, outras vão conseguir resistir", disse. "Talvez nos tornemos menores, mas há organizações que nem isso conseguirão fazer."

Em 7 de fevereiro, a Rede Global de Jornalismo Investigativo (GIJN, na sigla em inglês) pediu às autoridades dos Estados Unidos que recuassem na suspensão dos apoios ao exterior.

Em um pronunciamento de seu Conselho de Diretores, a organização disse que o corte desses fundos significa que veículos de jornalismo investigativo em todas as regiões do mundo serão prejudicados ou ficarão completamente impossibilitados de continuar suas reportagens.

A resposta à emergência

Desde que a ordem de Trump foi anunciada, El Toque, Conexión Migrante, Distintas Latitudes e outros veículos independentes de países com regimes autoritários que pediram anonimato começaram a buscar outras portas para possíveis fontes de financiamento por meio de subvenções e fundos.

No entanto, todos eles sabem que conseguir novos apoios levará tempo e que será quase impossível preencher o vazio deixado pela cooperação internacional americana. Por isso, para resistir da melhor forma possível ao impacto, esses veículos já começaram a aplicar outros tipos de medidas focadas em reorganizar prioridades e capacidades, e tentar gerar novas estratégias de autofinanciamento.

Alguns decidiram adiantar projetos que tinham agendado para este ano ou acelerar outros já iniciados, para levá-los a um ponto em que possam ser monetizados. El Toque, por exemplo, buscará acelerar sua consolidação como veículo no exílio e desenvolver produtos de notícia piloto que atendam à diáspora cubana nos Estados Unidos.

"Essas comunidades têm necessidades de informação concretas e específicas, e costumam ter uma situação econômica melhor do que as pessoas do país que deixaram", disse Nieves. "São linhas de trabalho estratégicas que tínhamos para este ano e agora o que fizemos foi pisar no acelerador, correr contra o relógio e lançar produtos que planejávamos fazer com mais calma."

Assim que a redação do Conexión Migrante foi notificada da suspensão dos apoios, Mercado pediu ajuda a seu público e reforçou a campanha de doações que lançaram em dezembro. A jornalista disse que, com alguns ajustes em seu orçamento, as doações que recebeu e as receitas de outras fontes que não as subvenções, o veículo poderá manter sua equipe completa pelo menos até março.

Mercado espera que ao menos sua equipe possa construir as bases para o projeto do canal de vídeo com conteúdo para migrantes, para poder retomá-lo quando a situação melhorar.

"O truque é aguentar este primeiro trimestre porque sabemos que em abril e maio as campanhas de comunicação e muitas das coisas que estamos fazendo vão cair", disse. "Em vez de dar um passo muito grande, que era o que íamos fazer, daremos passos pequenos para ir construindo o que tínhamos planejado para 2025."

Por sua vez, Meléndez disse que Factual/Distintas Latitudes está atualmente em um processo de reorganização interna para estabelecer uma estratégia de resposta rápida aos cortes. Isso inclui adiantar o desenvolvimento de duas publicações que planejavam lançar mais adiante no ano, uma de ensaios sobre o presente e o futuro do jornalismo escritos por jornalistas jovens, e outra de uma antologia de poesia latino-americana.

Nayib Bukele

O presidente salvadorenho Nayib Bukele acusou a mídia financiada pela USAID de fazer parte de uma rede de lavagem de dinheiro. (Foto: Cortesia El Faro)

O veículo lançará em breve uma campanha de financiamento coletivo com a qual espera arrecadar pelo menos US$10 mil. Os produtos editoriais mencionados farão parte das recompensas para os doadores, disse Meléndez.

A organização também começou a buscar patrocínios e alianças para a 14ª edição do Festival LATAM de Mídia Digital e Jornalismo – outro de seus principais projetos e do qual recebe 30% de seu orçamento –, que será realizado em novembro na Cidade do México.

"Não só temos que diversificar, mas também temos que continuar pensando em como nossos produtos jornalísticos têm um valor tal que sejam atrativos para as pessoas", disse Meléndez. "Temos que ser capazes de criar projetos valiosos ou de treinamento que tenham um alto valor em si mesmos e que as pessoas estejam dispostas a apostar neles."

Nieves e Mercado concordam que os veículos em países com governos autoritários, onde é mais difícil encontrar outras fontes de receita, podem começar diversificando a origem das doações que recebem e evitando, na medida do possível, depender de uma única organização financiadora.

"Podemos ver projetos que dependiam de 100% ou 90% de seus orçamentos de um único doador", disse Nieves. "Nós [no El Toque] temos tentado nos afastar disso, e é por isso que nosso impacto não é de 90 e tantos por cento do orçamento, mas de 50%."

Financiamento demonizado por autoritários

O presidente venezuelano Nicolás Maduro e o salvadorenho Nayib Bukele são alguns líderes da América Latina que recentemente expressaram apoio à suspensão do financiamento de agências dos Estados Unidos para veículos independentes. Eles e outros líderes da região têm alegado repetidamente que o trabalho jornalístico resultante desse apoio responde aos interesses americanos e busca desestabilizar.

Maduro acusou em fevereiro alguns meios digitais que recebem financiamento da cooperação internacional de criar "realidades paralelas" e manipulação na Venezuela.

Bukele disse dias depois que a maioria dos veículos independentes financiados por organizações vinculadas à USAID promovem uma "agenda globalista" e fazem parte de uma rede mundial de lavagem de dinheiro.

Presidentes e ex-presidentes de Cuba, Nicarágua, México e Equador lançaram críticas similares.

Traduzido por Marta Szpacenkopf
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