Esta é a primeira parte de um artigo que aborda o racismo e a cobertura da violência racial nas redações da América Latina. Clique aqui para ler a parte dois.
Nos últimos meses, as manchetes da mídia de Cuba ao Brasil destacaram os assassinatos de homens e jovens negros e indígenas, situando-os no contexto de um caso notório de repercussão global. As semelhanças e diferenças entre suas mortes e as de George Floyd pela polícia nos Estados Unidos geraram debates sobre a falta de diversidade nas redações na América Latina e como cobrir crimes contra negros e indígenas.
Segundo alguns profissionais da mídia, a cobertura na América Latina não aborda o racismo como um problema estrutural e institucional, mas como um problema individual. Eles até explicaram que a ideologia promovida pelo estado de que todos são "mestiços" contribui para a forma como os jornalistas cobrem sua região e comunidades racializadas. A LatAm Journalism Review entrevistou três jornalistas para falar sobre como as redações e repórteres estavam abordando o tema.
Como a ideologia da miscigenação impacta o jornalismo e as redações
Na América Latina, detalha Marco Avilés, jornalista e estudante de doutorado da Universidade da Pensilvânia, houve grande cobertura da mídia não apenas do assassinato de Floyd, mas também dos protestos que surgiram então. Durante uma entrevista ao LJR em junho, Avilés disse que alguns meios de comunicação se voltaram para especialistas e antropólogos para falar sobre como o racismo se manifesta em seus próprios países.
Avilés, autor dos livros “Não sou seu cholo” e “De onde viemos os cholos”, é um daqueles especialistas que foi entrevistado várias vezes pela mídia latino-americana para falar sobre o tema. Ele compartilhou que os apresentadores e repórteres do programa ficaram "chocados com essa evidência" de que um policial branco matou um cidadão negro nos Estados Unidos. No entanto, destacou que, apesar de o discurso racista ser forte na política da região, na América Latina os meios de comunicação de massa não falam da violência do Estado contra as comunidades racializadas em decorrência do sistema racista.
“A questão que começa a surgir é: se nossa mídia pode ficar horrorizada e reagir a essa violência racista nos Estados Unidos, o que acontece na América Latina quando estados, governos locais também reagem contra as populações indígenas? O que nos impede de encontrar o horror local?”, ele se perguntou.
Uma ideia muito forte que nos impede de ver o horror local, o reflexo da diversidade e a falta de representação nas redações, explicou Avilés, é o mito promovido pelas repúblicas de que todos são mestiços, uma mistura entre europeus, indígenas e africanos. Esse mito leva à conclusão de que todos são iguais e que o que acontece não é racismo, mas classismo. E, embora nos Estados Unidos haja campanhas para diversificar as redações, na América Latina a ideologia da miscigenação significa que "não há necessidade de diversificar algo que já é diversificado" e, assim, negar que haja racismo em determinado país, disse.
Falar sobre diversidade na mídia ainda é um assunto tabu, acrescentou. Quando o jornalista se considera mestiço, explicou, isso leva à invisibilidade das comunidades indígenas e afrodescendentes que são consideradas "como uma esfera de realidade alheia".
“Se quisermos incorporar as vozes indígenas, nós jornalistas devemos ousar nos desconstruir e ver nossas vozes não necessariamente como mestiças. Vai ser um processo muito longo, mas necessário e inevitável”, disse Avilés.
Como a mídia tradicionalmente não inclui vozes negras e indígenas nas redações e como fontes, disse Avilés, esses veículos tiveram que buscar talentos e colunistas para falar sobre o assunto. Mas, ele esclareceu, o trabalho deve ser mais proativo do que incluir vozes de comunidades racializadas. Deve ser contratado e investido na prosperidade do trabalho dos funcionários.
“É necessário incluir essas comunidades, não de forma a dar cor às redações, mas incluí-las para que possam prosperar dentro de nossas redações'', disse Aviles. “Essas vozes devem ser fortalecidas. Não precisamos apenas contratar redatores afro e indígenas. Precisamos de editores, chefes de redação, produtores indígenas e afrodescendentes. Precisamos capacitar essas pessoas."
Brasil: Diversidade nas redações
O caso Floyd foi um grande passo para a mídia no Brasil, disse à LJR a jornalista Yasmin Santos em julho, porque abriu espaço para pesquisadores e cientistas falarem sobre o problema estrutural do racismo. Porém, erros óbvios também foram cometidos, como foi o caso da GloboNews no Brasil por ter um painel inteiro de homens brancos falando sobre questões de racismo. Após críticas nas redes sociais, a GloboNews reconheceu seu erro, algo que não é comum ver na mídia, disse Santos.
O veículo fez mais um especial, desta vez com um painel inteiro de repórteres negros. “O programa começou a falar sobre suas histórias [dos jornalistas], suas histórias pessoais, o problema estrutural e político se perdeu porque ainda é difícil para a gente falar sobre isso. E não acho que seja um problema para nossos jornalistas negros. Acho que a intenção do programa foi falar sobre suas histórias pessoais”, disse Santos.
Ao falar sobre diversidade nas redações, Santos disse que é preciso lembrar que os negros no Brasil são uma minoria social em termos de representação na mídia, mas não uma minoria na população, pois constituem mais de 50% disso. No entanto, isso não se reflete na mídia, que ela nota ter dado "pequenos passos" para falar sobre o racismo, mas falar sobre ele como uma questão individual, não como um sistema estrutural.
Em 2019, Santos publicou um artigo na revista piauí sobre sua investigação sobre a representação nas redações e as experiências de jornalistas afro-brasileiros na mídia. Ela também escreveu sobre sua própria experiência ao saber, pouco depois de começar a trabalhar no piauí, em 2015, que foi a primeira mulher negra na redação a ser contratada.
“Não era exatamente o que um negro esperaria do emprego dos sonhos. Isso me frustrou e ainda me frustra”, escreveu Santos no artigo.
Santos disse que jornalistas entrevistados para sua investigação falavam de racismo, discriminação, hipersexualização da mulher e solidão por ser a única repórter negra da equipe. Os danos são muitos, disse Santos, e também há um impacto psicológico. Ele acrescenta que os jornalistas também falaram sobre coisas positivas que aconteceram em suas carreiras, como ser perfeccionista no trabalho. No entanto, Santos explicou que este último surge por ter que ser duas vezes melhor que seus colegas brancos ou porque são punidos mais duramente que seus colegas quando erram.
Quando os executivos de mídia falam sobre diversidade, eles a usam mais como uma palavra que se popularizou, como uma ferramenta de marketing sem qualquer compromisso profundo com a mudança das estruturas dentro da empresa, disse Santos.
“Dizem, eu apoio a diversidade, mas eu digo que não é assim, porque para isso temos que mudar, temos que abrir as redações para jornalistas diferentes, e as redações estão começando a fazer isso, mas começam com estagiários, por exemplo, mas eles não estão preparados para falar de liderança nesses tipos de posições de poder, posições em que podemos fazer alguma mudança real na mídia, na mídia específica”, enfatizou.
A mídia tem que se perguntar se realmente valoriza seus colegas afro-brasileiros, disse ela, principalmente quando pode ser chocante para um estagiário entrar e ver que um jornalista negro que trabalhou por 20 anos na redação não foi promovido. Esta é uma mudança estrutural que também requer investimento e tempo. Não é um problema que se resolve em poucos meses ou um ano, disse, mas parece que a mídia quer encontrar uma solução imediata.
“Precisamos de mais semanas, meses para ver como estamos mudando [a mídia]. Se isso é algo retórico, se é algo que eles fazem pela aparência ou se é algo que eles realmente querem mudar e vão lutar para mudar, precisamos de mais tempo para avaliar isso”, disse.
Cuba: como a imprensa oficial e independente aborda a questão do racismo
Depois do assassinato de Floyd, a imprensa cubana escreveu artigos sobre o ocorrido, mas a manifestação destes foi diferente entre a imprensa oficial e a independente. A imprensa oficial, disse o jornalista independente cubano Jorge Enrique Rodríguez à LJR, falou sobre o tema como um problema específico dos Estados Unidos, sem abordar os sistemas de racismo, estruturas de poder e criminalização da população majoritariamente racializada na ilha. Enquanto isso, acrescentou, a imprensa independente aborda a questão do racismo, mas não com a “profundidade e não com a pontualidade que é necessária”.
“Essa é uma das coisas que sofrem tanto a imprensa independente como a oficial, neste caso deve-se dizer que já então é algo que se rasteja, algo que está implícito no sistema educativo. Entendo que não é fácil se livrar de 60 anos de doutrina do sistema educacional”, disse Rodríguez.
Após o assassinato do jovem afro-cubano Hansel Hernández pela polícia do município de Guanabacoa, Cuba, em 24 de junho, alguns meios de comunicação chamaram o caso de “George Floyd cubano”. No entanto, Rodríguez disse que evitou fazer isso devido às características diferentes dos países onde os dois foram mortos. Em Cuba, disse o jornalista, é preciso levar em conta que o racismo é uma política institucional e de Estado, que os jornalistas são criminalizados e que há uma diferença entre a narrativa da imprensa oficial e a independente sobre a forma como cobrem esses temas.
Após o assassinato de Hernández, foi convocada uma mobilização para o final de junho e Rodríguez estava entre os jornalistas que criticaram as autoridades nas redes sociais. Em 28 de junho, Rodríguez foi preso após registrar um incidente de excesso de força policial quando eles separaram dois jovens que estavam lutando. Entre as acusações, estava o incitamento à violência contra a polícia, desacato, agressão e resistência à prisão. Tudo isso, disse Rodríguez, foi uma invenção e uma mentira.
Segundo o jornalista, embora não domine as capas dos meios de comunicação independentes, tem havido constantes discussões e coberturas sobre o racismo e a estrutura de poder do regime, na sua maioria brancos, por jornalistas independentes, setores da sociedade civis e ativistas por mais de 25 anos. Isso, é claro, está em contraste com a cobertura oficial, disse ele.
“O jornalismo independente em Cuba, por padrão, deve cobrir o que o governo oficial não cobre em 60 anos. Quase como se fosse uma 'obrigação legal'”, disse ele.