Em falas enfáticas, representantes do Judiciário e do Executivo brasileiros disseram a jornalistas de várias partes do mundo que a desinformação gera problemas urgentes para as democracias e defenderam a necessidade de regulamentação das plataformas digitais.
Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes e o advogado-geral da União, Jorge Messias, argumentaram que o modelo de negócios das redes sociais incentiva o conflito e a mentira em nome do lucro, e que a autorregulação do setor fracassou.
Os três discursaram no painel de abertura, sobre os impactos da desinformação nas democracias, da 12ª edição do GlobalFact, realizado no Rio de Janeiro na manhã da última quarta-feira (25 de junho). Foi a primeira vez que o maior encontro internacional de checadores de fatos, promovido pela Rede Internacional de Verificação de Fatos (IFCN, na sigla em inglês) e pela Poynter, foi sediado no Brasil.
Mesmo sem direcionarem suas falas especificamente ao público de checadores de fatos ou jornalistas, os palestrantes ofereceram à plateia internacional um vislumbre da lógica jurídica e moral que vem guiando as decisões do STF sobre o tema. O tribunal tem sido, entre os três Poderes da República no Brasil, o mais atuante no combate à desinformação, posição que lhe rendeu apoio e críticas internas e internacionais, principalmente às ações do ministro Moraes.
No dia seguinte ao painel, o STF aprovou por maioria (8-3) uma decisão com forte impacto sobre o setor: redes sociais passam a ser obrigadas a remover conteúdos ilegais, incluindo a defesa de atos antidemocráticos, sem a necessidade de ordem judicial prévia. A norma contraria um artigo central do Marco Civil da Internet, de 2014, que determinava que as plataformas digitais só precisavam agir após ordem judicial. O artigo foi considerado inconstitucional.
A ministra do STF Cármen Lúcia, que atualmente também é presidente do Tribunal Superior Eleitoral, abriu o painel com uma reflexão abrangente e filosófica sobre os riscos da desinformação. Esperava-se que os três palestrantes fossem comparecer presencialmente, mas ela e Moraes participaram por meio de videochamadas, frustrando quem foi à Fundação Getúlio Vargas para vê-los.
Lúcia afirmou que a disseminação maciça de informações falsas corresponde a uma ruptura profunda com o modelo de mundo sobre o qual se estruturaram os regimes democráticos nas últimas décadas. “O modelo de mundo acabou. Estamos vivendo outro momento”, disse Lúcia.
Segundo a ministra, a desinformação contemporânea não pode ser comparada às “fofocas maledicentes” do passado. A diferença está na escala, na velocidade e no poder de manipulação, afirmou.
"[Hoje] há espaços, ambientes e aplicações capazes de matar pessoas sem precisar de se valer de armas físicas, visíveis, palpáveis, por meio de atuações que deixam na anonimato criminosos de toda a natureza, inclusive aqueles que tentam matar as democracias", disse.
A ministra acrescentou que a mentira é potencializada por plataformas digitais e algoritmos que operam sem transparência, orientados por interesses econômicos. Isso, afirmou, faz com que indivíduos sejam conduzidos a decisões e comportamentos baseados em dados falsos, sem perceber que sua liberdade foi corroído.
Lúcia referiu-se a um “servilismo digital” para descrever esse novo estado de sujeição. Ela descreveu um cativeiro subjetivo, no qual a autonomia individual é minada por fluxos manipulados de informação.
“Aprisionam pela mentira”, afirmou Lúcia. “A própria pessoa não se vê escravizada, mas não é capaz de pensar com criticidade”.
Para ilustrar o caráter sistêmico do problema, a ministra estruturou sua análise em torno de “cinco V’s” da desinformação: volume, velocidade, variedade, viralidade e verossimilhança.
Lúcia afirmou que o volume massivo de conteúdo torna impossível um julgamento crítico constante; a velocidade impede a verificação antes da tomada de decisão; a variedade fragmenta o senso de realidade; a viralidade remete ao contágio de uma doença; e a verossimilhança torna as mentiras mais eficazes que os fatos.
A fala concluiu com uma defesa firme da atuação do Poder Judiciário e, em especial, do Tribunal Superior Eleitoral diante da desinformação durante as eleições brasileiras de 2022 e 2024. Segundo a ministra, o Judiciário não apenas tem legitimidade, mas o dever constitucional de proteger o processo democrático de influências ilícitas.
Ela comparou as redes sociais a um espaço público que também precisa de normas claras.
“O dever de cuidado também é das empresas. O que não é permitido no mundo real, não pode ser permitido no mundo virtual”, disse Lúcia
Ela argumentou que o combate à disseminação de informações falsas ou enganosas não se trata de censura, fazendo referência ao período do regime militar no Brasil, de 1964 a 1985:
“A minha geração sabe o que é a mordaça. Somos contra qualquer forma de censura. Mas liberdade não é ausência de responsabilidade”, afirmou.
Nome mais aguardado do painel, o controverso ministro Alexandre de Moraes foi o palestrante seguinte, e apresentou um duro diagnóstico sobre o papel das redes sociais na erosão da democracia e na disseminação de discurso de ódio.
Enquanto discursava, exibia uma sequência de slides com tuítes racistas — ilegais no Brasil — e imagens da destruição causada nos ataques aos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023, para ilustrar o que chamou de falência completa da autorregulação das plataformas.
Moraes começou com uma pergunta provocativa: “Quais redes sociais queremos para a nossa sociedade?”. Acrescentou que, se estivéssemos satisfeitos com a situação atual, eventos como o GlobalFact não seriam necessários.
As redes, afirmou o ministro, têm sido instrumentalizadas para finalidades ilícitas, subordinando-se a uma lógica de lucro e poder político que favorece a viralização de conteúdos violentos, misóginos, racistas e antidemocráticos. “O que dá like é o que dá dinheiro. E o que dá dinheiro dá poder econômico e político”, disse Moraes.
O juiz, que também é professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo, dedicou boa parte de sua apresentação a abordar os limites da liberdade de expressão segundo as leis brasileiras. Este é um dos pontos mais polêmicos internacionalmente das atitudes de Moraes. A liberdade de expressão no Brasil é muito mais restrita do que nos Estados Unidos, e uma série de comportamentos, como discursos racistas e antissemitas são crimes no Brasil.
“A liberdade de expressão, e eu repito isso sempre, não é liberdade de agressão, inclusive à democracia”, disse Moraes.
Assim como sua Lúcia, Moraes afirmou que as mesmas leis que regem discursos no mundo real devem valer para o espaço online.
“Se você não pode atacar os pilares da democracia no mundo real, porque isso é crime, você não pode covardemente se esconder atrás de perfis falsos e atacar a democracia no mundo virtual”, acrescentou.
O ministro sublinhou que o modelo de negócios das big techs beneficia-se do conflito e da polarização, e não da checagem dos fatos, o que as distancia do jornalismo tradicional. Redes sociais, disse ele, não são neutras, mas têm interesses econômicos e ideologia, acarretando em riscos de manipulação algorítmica na formação da opinião pública, especialmente em contextos eleitorais.
O ministro citou o caso de 2022, quando, afirmou ele, as big techs agiram para sabotar a tentativa do Congresso de votar a urgência de um projeto de regulação das plataformas.
Disse que empresas divulgaram “notícias fraudulentas” contra deputados e que essa pressão digital fez com que parlamentares recuassem por medo de retaliação nas redes durante o ano eleitoral.
Moraes encerrou sua fala reafirmando a necessidade urgente de regulação estatal. Ele disse que outros meios de comunicação de massa, como o rádio e a TV, são regidos por leis, e o mesmo deve valer para as plataformas digitais.
“Não há na história da humanidade uma atividade econômica que gere impacto ou tenha gerado impacto em milhares, ou em nosso caso, bilhões de pessoas, que não tenha sido regulamentada. Todas as atividades, absolutamente todas, o foram”, disse Moraes. “Há regras na televisão, a televisão não é uma terra sem lei, e isso não fere a liberdade de expressão. Isso vale para a rádio, vale para a televisão, e deve valer também para as redes sociais e as big techs”.
O advogado-geral da União – responsável por liderar a instituição que representa a União, judicial e extrajudicialmente, em defesa dos seus interesses e na garantia da legalidade dos seus atos –, Jorge Messias, encerrou o painel argumentando que, embora não seja algo novo, a desinformação tornou-se mais grave diante da atual lógica econômica das plataformas.
“O problema não é a tecnologia em si, mas o negócio que está por trás dela”, disse Messias. “Essas empresas seguem uma cartilha e uma doutrina econômica e tecnológica que está pautada apenas pelo viés lucrativo”.
Sem especificar quais tecnologias alternativas deveriam ser desenvolvidas, Messias afirmou que, enquanto o Brasil não desenvolver suas próprias tecnologias de comunicação, estará vulnerável. “Estamos utilizando todos os dias tecnologias importadas, que estão a serviço de outros interesses, que não os nossos interesses nacionais”, disse.
Para Messias, o debate público no Brasil sofre com um modelo comunicacional viciado, que privilegia o conflito, a radicalização e a desinformação. Ele citou dados do Comitê Gestor da Internet e da OCDE para ilustrar a vulnerabilidade da população brasileira: “85% dos brasileiros afirmam se informar pelas redes, mas também somos o país com menor capacidade de distinguir fake news”, afirmou.
Concluindo sua fala – que foi a mais longa do trio, com mais de 40 minutos de duração, o que fez com que a sessão de perguntas e respostas fosse cancelada –, o advogado-geral defendeu que a sociedade brasileira precisa se apropriar da tecnologia, o que implica regulá-la em benefício da democracia.
“Se nós não sabemos qual é o algoritmo que está por trás daquela ação, nós não sabemos qual é, de fato, o nível de interesse e o grau de manipulação que ele pode gerar”, disse. “Por isso, precisamos discutir, sim, a necessidade de essas empresas oferecerem transparência nos seus processos”.