Todos os anos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), com suas decisões, resoluções e relatórios, desenvolvem padrões de direitos humanos que devem ser adotados pelos Estados do hemisfério para garantir o pleno exercício desses direitos.
Em 2009, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (RELE) da CIDH, sob o mandato de Catalina Botero, publicou o documento "Marco Jurídico Interamericano sobre o Direito à Liberdade de Expressão", que sistematizou todos os padrões desenvolvidos pela Corte, pela CIDH e pela própria RELE.
O documento, que tem servido como um "guia para navegar" por essas normas, "tem sido considerado e utilizado como instrumento de referência por diversos atores estatais e judiciais para a tomada de decisões ou atualização de leis internas e decisões judiciais, que buscaram proteger o direito à liberdade de expressão", disse à LatAm Journalism Review (LJR) o atual Relator Especial, Pedro Vaca.
Pedro Vaca, Relator Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). (Foto: CIDH)
No contexto da celebração dos 25 anos da RELE, Vaca e sua equipe perceberam a necessidade de atualizar o documento para incorporar os padrões estabelecidos ao longo desses 15 anos e continuar orientando na "tomada de decisões internas, incluindo o poder judiciário, a formulação de políticas públicas, iniciativas legislativas, pesquisas acadêmicas e atividades de defesa dos direitos humanos, para citar alguns exemplos".
Vaca conversou com a LJR sobre a atualização que foi divulgada em 1º de julho. A entrevista foi editada para maior clareza e brevidade.
LJR: O documento incorpora novos padrões desenvolvidos nos últimos 15 anos. Que lacunas vocês começaram a identificar que levaram à necessidade de atualizá-lo?
Pedro Vaca: Nos últimos anos, o sistema interamericano avançou em decisões relacionadas à proteção de jornalistas, incluindo a perspectiva interseccional de gênero; a proteção e garantias para pessoas denunciantes de atos de corrupção – os whistleblowers; e o dever de estabelecer políticas afirmativas para rádios comunitárias.
Também foi destacada a necessidade de proteger especificamente discursos como a denúncia da violência de gênero e a livre expressão da identidade de gênero e orientação sexual. Da mesma forma, foram anos em que a jurisprudência interamericana se desenvolveu consideravelmente no que diz respeito à proteção do direito de protesto e à rejeição do uso do direito criminal para proteger a honra de funcionários públicos.
O avanço da internet e dos ambientes digitais, bem como a proteção nesses ambientes, também gerou decisões no âmbito do sistema interamericano. Cresceu, por exemplo, a necessidade de refletir sobre moderação de conteúdo e governança da internet.
Todas essas decisões cotidianas devem ser integradas pelos Estados em seus sistemas internos, de modo que a proteção da liberdade de expressão e de imprensa esteja alinhada com o decidido pelo sistema interamericano. A atualização deste documento permitirá que os tomadores de decisão, seja no legislativo ou no judiciário, possam estar em sintonia com o que foi determinado pelo sistema interamericano e, assim, responder adequadamente a esses desafios contemporâneos.
LJR: Dos padrões incluídos, quais você considera os menos internalizados?
PV: Parece-me que uma boa maneira de entender quais padrões são menos internalizados – seja pela ausência de marco regulatório ou por sua aplicação deficiente, quando existe – é levar em consideração os padrões de violação que existem na região. O Relatório Anual 2024 da Relatoria identifica esses padrões regionais no capítulo III, que convido a ler.
Dadas as nossas limitações de espaço, permita-me navegar por dois temas: jornalismo e internet.
A violência contra a imprensa e o assassinato de jornalistas permanecem uma constante na região, circunstâncias que também geraram deslocamentos forçados e exílio. O ambiente de cobertura de protestos sociais se mostra arriscado para a imprensa, com denúncias de agressões e prisões contra profissionais que estão realizando seu trabalho. A própria denúncia de assuntos de interesse público também é afetada pela judicialização na forma de ações judiciais estratégicas contra a participação pública. Da mesma forma, persistem declarações estigmatizantes contra a imprensa por parte de funcionários públicos de alto escalão. Em muitos países, a distribuição de publicidade oficial continua pouco clara, facilitando que seja utilizada como mecanismo de castigo ou recompensa a certas linhas editoriais.
Sobre a internet, as deficiências na internalização são os padrões relacionados aos deveres de alfabetização digital para o desenvolvimento de habilidades cívicas. Vemos Estados muito focados em resolver, de maneira urgente, temas como a moderação de conteúdo em redes, o esquema de atribuição de responsabilidades a redes sociais e outras plataformas, o controle da inteligência artificial, a utilização de tecnologias digitais de forma ampla (e às vezes pouco crítica) em estruturas de prestação de serviços públicos e a ampliação da infraestrutura de rede como forma de reduzir a exclusão digital. Todos são temas importantes, mas parece que a alfabetização digital, que é um trabalho de base e que contribui para combater discursos de ódio, desinformação e muitas outras problemáticas, ocupa um lugar secundário na lista de prioridades. É verdade que os resultados da alfabetização digital não são imediatos, mas se torna cada vez mais uma necessidade urgente. O Marco Jurídico relembra alguns padrões, que podem ser complementados com a leitura de relatórios sobre internet da RELE, especialmente o relatório de Inclusão Digital e Governança de Conteúdo de 2024.
LJR: No caso do jornalismo e em linha com a pergunta anterior, qual seria (ou seriam) o mais significativo em nível regional?
PV: Gostaria de mencionar três padrões.
O primeiro é sobre o uso do direito criminal e sua relação com a liberdade de expressão. Há uma relação direta entre o jornalismo e o desenvolvimento de padrões interamericanos nessa área, pois os primeiros casos e muitos dos que se seguiram tratavam da atividade jornalística. Acredito que todo o desenvolvimento jurisprudencial sobre a incompatibilidade do uso do direito criminal para proteger a honra de funcionários públicos, particularmente quando se denuncia um assunto de interesse público, seja o padrão mais significativo. Por um lado, porque se trata do tema mais desenvolvido nos casos do SIDH [Sistema Interamericano de Direitos Humanos] e da Corte IDH hoje, e é o tema central em vários dos relatórios e sentenças. Por outro lado, porque o fenômeno da judicialização é um dos mais persistentes no hemisfério, então este é um padrão de elevada importância para a defesa do trabalho jornalístico na região que, em sua essência, tem este papel de guardião que informa os cidadãos sobre assuntos de interesse geral.
Falando sobre judicialização, também cresce a importância dos casos que não têm relação com a aplicação do direito criminal, mas sim com a aplicação de sanções civis desproporcionais. Foi em um desses casos recentes – Moyá Chacón vs. Costa Rica – que a Corte destacou um padrão que deve estar sempre presente para quem exerce função pública no momento de adotar políticas e decisões: para que o jornalismo exista, deve existir uma certa margem para o erro. Isso se aplica até mesmo ao jornalismo mais diligente. A maneira de proteger essa margem é dando prevalência ao direito de retificação e resposta como primeira via de solução de controvérsias e, se necessário, atribuir responsabilidades posteriores de forma muito proporcional.
A edição atualizada do “Marco Jurídico Interamericano sobre o Direito à Liberdade de Expressão” está disponível em espanhol. A versão em inglês será disponibilizada oportunamente, de acordo com a Relatoria Especial. (Captura de tela)
Por fim, algo que muitas vezes é esquecido nos debates sobre o direito à liberdade de expressão e a Convenção Americana é o lugar que ocupam as proibições às restrições indiretas. Geralmente, quando se pensa em restrições à liberdade de expressão, uma fórmula clássica vem à mente: um Estado impõe uma ordem restritiva justificando que a pessoa cometeu um abuso. No entanto, de maneira arbitrária, os Estados podem usar outros mecanismos legais e outros poderes, em princípio com o objetivo de proteger fins legítimos, para na verdade sancionar e sustentar represálias contra o jornalismo. Negar acesso às ondas de rádio, controlar papel e insumos – como o acesso à energia elétrica –, mudar regras para que uma pessoa possa ser proprietária de um meio de comunicação, utilizar arbitrariamente as prerrogativas tributárias, são exemplos de mecanismos indiretos. Em um mundo onde as formas de restrição do direito à liberdade de expressão se sofisticam, é importante que se preste atenção redobrada aos padrões de proibição da censura indireta.
LJR: Especificamente sobre o abuso do sistema de justiça, o documento fala de "ações judiciais estratégicas contra a participação pública (SLAPP, na sigla em inglês) como categorias de análise nos padrões interamericanos". O que estabelecem os padrões sobre esse tema, considerando que é uma das principais preocupações atualmente na região?
PV: Os Relatórios Anuais da Relatoria e diversos casos conhecidos pela Relatoria Especial estão relacionados com este tipo de ação judicial, que busca silenciar e calar aqueles que criticam, questionam ou publicam informações de interesse público, que podem ser incômodas para quem está no poder.
De maneira geral, no nível atual de desenvolvimento do Sistema Interamericano, os padrões identificam que essa prática consiste em um uso abusivo de mecanismos judiciais e, portanto, deve ser regulamentada e controlada pelo Estado. Trata-se de um dever, portanto, de adotar medidas anti-SLAPP. No entanto, as SLAPPs são um exemplo bastante interessante porque também demonstram como a evolução do direito internacional dos direitos humanos vai ocorrendo. Hoje, o Sistema Interamericano não conta com diretrizes tão específicas sobre o que seriam essas medidas, mas o Sistema está em constante evolução. Por exemplo, na recente opinião consultiva 32/25, publicada na semana passada, a Corte identificou obrigações do Estado sobre o dever de prevenir e mitigar o "assédio judicial" contra defensores de direitos humanos, e me parece que isso pode ser útil para a proteção de outras atividades sujeitas à SLAPP, como o jornalismo. Da mesma forma, esperamos que em próximos casos a Corte Interamericana possa continuar avançando no tema.
Em 2024, a CIDH apresentou um caso sobre uma ação contra um jornalista no Paraguai e temos o objetivo de que este caso possa ser um marco sobre a jurisprudência anti-SLAPP na Corte Interamericana.