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Como a Abin espionou jornalistas durante governo Bolsonaro, segundo a PF

Em 2019, Leandro Demori, então editor executivo do The Intercept Brasil, descobriu que alguém havia comprado um chip de celular usando o seu CPF. Não lhe passava na cabeça na época, mas há indícios fortes de envolvimento de membros da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) no golpe.

No último dia 17 de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) retirou o sigilo da íntegra de um relatório de mais de mil páginas da Polícia Federal sobre como a estrutura de inteligência do Estado foi supostamente usada para disseminar informações falsas e monitorar ilegalmente políticos, juízes, jornalistas e cidadãos comuns durante o governo de Jair Bolsonaro.

A investigação da Polícia Federal revelou a existência de uma estrutura criminosa dentro da Abin, que atuava em coordenação com aliados de Bolsonaro para perseguir pessoas consideradas inconvenientes politicamente ao então presidente. Segundo o relatório, o esquema, que operava como uma organização paralela dentro da agência, utilizava o sistema israelense de espionagem First Mile, adquirido por R$ 5,7 milhões em 2018, para monitoramento ilegal. 

Segundo a PF, entre 2019 e 2021, foram realizadas 60.734 consultas ilegais no First Mile, que permite rastrear a localização de aparelhos celulares em tempo real, monitorar movimentações e analisar rotinas.

A investigação aponta que ao menos 12 jornalistas foram alvos, que alcançou desde alguns dos mais renomados profissionais da imprensa no Brasil, como os colunistas Monica Bergamo e Reinaldo Azevedo, até outros de perfil muito mais baixo, como analistas políticos de pequenas páginas de esquerda.

O relatório não detalha quais foram todas as informações a que a Abin teve acesso segundo a investigação, nem a integralidade das ações que a agência tomou, mas lança luz sobre como, segundo a PF, a principal agência de espionagem do Estado brasileiro foi aparelhada para favorecer politicamente Bolsonaro, e os riscos que jornalistas correram em seu governo.

Demori, que se notabilizou por exercer um jornalismo engajado durante o governo Bolsonaro e cuja família andou acompanhada por seguranças entre 2019 e 2022, diz que sentiu grande preocupação ao saber que foi monitorado.

“Tínhamos notícias de um plano de golpe, que previa assassinato de autoridades públicas”, afirmou Demori à LatAm Journalism Review (LJR), fazendo referência ao chamado Plano Punhal Verde e Amarelo. “Caso o golpe de Estado desse certo, poderiam ir atrás de quem monitoraram”.

Por escrito, a Abin respondeu à LJR que não iria se manifestar sobre as alegações da PF.

Um adversário político

No dia 9 de junho de 2019, o The Intercept Brasil começou a publicar as denúncias do chamado caso Vaza Jato, o provável maior furo do jornalismo brasileiro neste século até agora. As denúncias expunham supostas práticas ilícitas do ex-juiz e atual senador Sérgio Moro na condução da investigação Lava Jato, incluindo a combinação de provas com a acusação. O caso é considerado crucial para a anulação da condenação e reabilitação política do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Menos de um mês depois, em 6 de julho 2019, Demori foi alvo de um dossiê forjado publicado no Twitter intitulado "Pavão Misterioso", que apresentava conversas falsas acusando ele e o então também jornalista do Intercept Glenn Greenwald e os deputados David Miranda, Jean Wyllys e Marcelo Freixo de articularem um complô para contratar um hacker russo para espionar em celulares de autoridades. 

Hoje, há evidências de que o falso dossiê foi forjado com participação de profissionais da Abin. A Polícia Federal encontrou uma pasta chamada “Pavão” em computadores da agência, confome adiantaram há cerca de um ano os jornalistas Juliana Dal Piva e Igor Mello, no site ICL Notícias.

A investigação da PF mostra que agentes ligados à chamada Abin Paralela fizeram consultas ilegais ao sistema de espionagem First Mile, em 7 de junho de 2019, usando três números de telefone posteriormente associados às falsas conversas entre Demori e os ex-deputados Wyllys e Miranda. 

O material apreendido pela PF, mostra o relatório, inclui documentos internos da Abin e arquivos com os números utilizados, armazenados sob responsabilidade do setor de inteligência da agência, então chefiado por Fabrício Cardoso de Paiva — mais tarde nomeado para o Ministério da Infraestrutura, sob comando de Tarcísio de Freitas. Paiva foi substituído por Luiz Gustavo Mota, um dos gestores do sistema.

Segundo a Polícia Federal, essa não foi a única vez que Demori foi alvo de envolvidos no esquema da Abin Paralela. Em junho de 2024, o jornalista voltou a ser alvo de ações de desinformação articuladas por pessoas vinculadas à Abin paralela, segundo a PF. 

A investigação da PF aponta que os empresários Richards Pozzer e Daniel Ribeiro Lemos, responsáveis por disseminar informações falsas em grupos de direita, discutiram a produção de um novo dossiê sobre Demori, à época vinculado à Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e sócio do Instituto Conhecimento Liberta (ICL). 

“Fiquei muito surpreso e indignado, porque achei que a estrutura tivesse sido desmantelada”, afirmou. “Estavam fazendo outro dossiê com história absolutamente falsa, como se houvesse lavagem de dinheiro nas empresas onde trabalho”.

Uma história ainda incompleta

Outros jornalistas espionados não têm claro por que o foram. A repórter da Agência Pública em Brasília Alice Maciel rotineiramente cobriu temas ligados ao governo Bolsonaro com viés crítico. 

Ela só foi informada da espionagem quando o relatório da PF foi divulgado pelo Supremo em junho, e um colega lhe enviou uma foto com o seu nome

“Falei, ‘Pô, brincadeira, né?’”, afirmou Maciel à LJR. "Nunca imaginei que pudesse estar sendo monitorada.

A PF traz apenas uma página sobre a jornalista, com uma conversa entre dois supostos agentes da Abin conversando sobre Maciel em maio de 2022. Um pede ao outro que a investigue: "Ver o lado que uma jornalista joga. Afinidade política", diz o agente. O objetivo é descobrir se ela tem “alguma ligação com políticos, que possam comprar matérias”.

Assim como nos outros casos, a PF não detalha a quais informações sobre Maciel os espiões tiveram acesso. Essa é uma das principais demandas atuais das vítimas do monitoramento ilegal: saberem o que se levantou sobre elas, e como. Maciel não sabe se foi alvo do First Mile, ou então se o levantamento de informações se deu a partir de dados públicos

"Eu gostaria de saber se essa conversa continua, se tem mais, tanto antes ou depois, porque a PF pinça uma parte”, disse ela.

A falta de informações leva inclusive jornalistas a não saberem se foram monitorados por suas atividades profissionais ou de outros tipos. 

Pedro César Batista apresenta um programa sobre livros na TV Comunitária de Brasília. Ele sabe desde março de 2024 que foi espionado, quando um jornalista do Metrópoles entrou em contato querendo lhe entrevistar. Ele só soube do relatório da Polícia Federal na entrevista com a LJR.

Batista também é escritor de livros sobre política e ativista pró-Palestina. Segundo o relatório da PF, houve 43 consultas a respeito de seu nome no First Mile entre 21 e 27 de abril de 2020. O relatório não detalha a que se deveram essas consultas.

“Acredito que foi por causa dos meus livros, dos meus artigos e do meu trabalho organizativo”, afirmou.

Posteriormente, em 03 de junho daquele ano, ele voltou a ser monitorado por causa da organização de um ato contra Bolsonaro, segundo o relatório. "O Pedro tem muito material. Vai ficar bonito”, disse então um agente, segundo a PF.

No ano passado, Batista, acompanhado de um advogado, formalizou um pedido sobre as informações levantadas a seu respeito à Controladoria-Geral da União (CGU), que respondeu informando que os dados estavam sob responsabilidade da Presidência da República. Um novo pedido foi protocolado junto à Presidência, mas não houve resposta. Batista recorreu à Justiça Federal, onde o processo segue sem definição, ele disse.

Mãe espionada

Entre os casos mais chocantes da Abin Paralela descritos pela PF está o de Luiza Alves Bandeira, ex-repórter da Folha de S.Paulo e hoje consultora sobre desinformação.

Segundo a investigação da PF, Bandeira foi alvo de espionagem clandestina após desmascarar uma rede de desinformação no Facebook, ligando perfis falsos a assessores do Palácio do Planalto durante o governo Bolsonaro. 

A ordem para espioná-la, segundo a investigação da PF, partiu do então diretor adjunto da Abin, Frank Márcio de Oliveira, que acionou o Departamento de Operações de Inteligência (DOINT) da organização para “caçar podres” da jornalista com o objetivo de desqualificar seus estudos.

“Precisamos futucar um nome até a unha”, afirnou Marcelo Araújo Bormevet, policial federal cedido à Abin que teve papel importante na produção e difusão de desinformação, segundo o relatório da PF. “Essa mulher está denunciando perfis de direita”.

A PF informa que a ação foi iniciada em 9 de julho de 2020, às vésperas das eleições municipais, e utilizou o sistema espião First Mile para rastrear dados de Bandeira — e também de sua mãe, uma professora de história, que, segundo a PF, sofreu três consultas pelo First Mile entre 9 de julho e 20 de agosto de 2020. A informação coletada não foi disponibilizada ao público.

‘Achar podres’

Pedidos para “achar podres” estão entre as ordens mais comuns do relatório da PF no serviço de Bolsonaro. Os pedidos não envolvem apenas jornalistas, mas caminhoneiros grevistas, arcebispos, juristas internacionais, ministros do Supremo Tribunal Federal, candidatos a presidentes de times de futebol.

Segundo a PF, a ordem na Abin relacionada ao colunista Reinaldo Azevedo – há décadas identificado como conservador, mas que se moveu para o centro democrático conforme a extrema direita crescia no Brasil – envolvia “futucar, explodir, focar ou aplicar ferro”.

Azevedo adotou um tom zombeteiro ao comentar a ordem.

“Ainda bem que não me explodiram nem aplicaram ferro. Já o ‘futucar’, sei lá, parece ter algo de erótico (rssss)”, disse, por escrito, à LJR. “Deus me livre!!! São uns tarados ideológicos”. 

O colunista levanta uma indagação sobre, afinal, qual era o propósito do First Mile na espionagem em massa. Numa investigação de campo, como quando se está no encalço de inimigos, sua aplicação é evidente, disse. No entanto, é bastante incerto saber a que se destina o uso do aplicativo em relação a pessoas que nada faziam exceto criticar o governo.

“Para que saber o local em que estavam adversários e até aliados políticos? Para quê? Coisa de fascistoides incompetentes”, disse Azevedo. “No que me diz respeito, devem ter morrido de tédio. Meu estúdio e meu escritório ficam em casa. Mal saio daqui”.

O mistério continuará enquanto os dossiês levantados pela Abin seguirem privados – e, considerando que neles há informações pessoais de inocentes, não é desejável que venham inteiramente a público. Segundo a coordenadora jurídica da Abraji, Letícia Kleim, a organização deseja mais transparência e que as vítimas tenham acesso às informações que foram levadas sobre si.

"O relatório não traz todas as respostas sobre extensão do monitoramento e espionagem, quais dados foram coletados, todas as pessoas que foram alvo", disse Kleim à LJR.

O caso está no STF, e Kleim mencionou que a Abraji está orientando jornalistas a fazerem denúncias ao Observatório de Monitoramento da Violência contra Jornalistas do Ministério da Justiça.

Enquanto mais informações não surgem, o caso da Abin paralela é percebido como um emblema do desrespeito do governo Bolsonaro pelas instituições e direitos democráticos.

Reinaldo Azevedo observa que o perigo permanece. Em ato no dia 29 de junho passado contra o STF, Bolsonaro manifestou o propósito de construir um governo paralelo a partir de 2027, com o controle de todas as instituições do Estado.

 “Convenha que, de todos os absurdos, o caso da Abin paralela nem foi o mais relevante”, afirmou Azevedo. “ Eis o entendimento que Jair Bolsonaro tem do poder”.

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