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Nova lei de anistia no Peru pode absolver militares e policiais acusados ​​de crimes contra jornalistas

Melissa Alfaro Méndez tinha 23 anos e trabalhava como chefe de redação da revista peruana Cambio. Era 1991, Alberto Fujimori estava no poder há pouco mais de um ano e já mostrava indícios do que seria sua política antiterrorista extrema.

A revista Cambio era considerada de oposição, denunciando frequentemente violações de direitos humanos por parte do governo, o que fez com que fosse até mesmo apontada como aliada do Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA).

Em 10 de outubro de 1991, um envelope chegou à redação da Cambio endereçado a Carlos Arroyo, seu diretor. Como parte de suas funções, Alfaro abriu o envelope que, infelizmente, estava carregado com ANFO gelatina, um explosivo de manuseio complexo que era usado apenas pelo Exército peruano. Ela morreu no local.

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Peruvian journalist Melissa Alfaro. (Photo: Melissa's family courtesy)

Sua família luta por justiça há 33 anos. Quando eles pensaram que o julgamento finalmente começaria em 2019, a pandemia da COVID acabou com suas esperanças. Finalmente, em 21 de março de 2023, o julgamento foi formalmente iniciado contra três "autores indiretos": Vladimiro Montesinos, ex-assessor de Fujimori e chefe de facto do Serviço de Inteligência Nacional (SIN); Julio Salazar Monroe, ex-chefe do SIN; e Pedro Villanueva Valdivia, ex-comandante geral do Exército, como supostos autores indiretos. Também contra Víctor José Penas Sandoval, ex-agente de inteligência e capitão reformado da Polícia Nacional, como suposto autor material do crime.

Seu caso está atualmente na fase de julgamento oral e pode levar pelo menos mais quatro meses, explicou Gloria Cano, chefe da equipe jurídica da Associação Pró Direitos Humanos (Aprodeh) e advogada que representa a família de Alfaro, à LatAm Journalism Review (LJR).

Apesar desse lento avanço, seu assassinato pode ficar na impunidade por conta da Lei de Anistia promulgada pela presidente Dina Boluarte no último dia 13 de agosto.

A lei concede anistia geral a membros das forças armadas, polícia e comitês de autodefesa (civis organizados pelos militares para lutar contra a subversão) acusados ou investigados por crimes cometidos durante o conflito armado interno do país (1980-2000). Também determina a libertação de pessoas condenadas por esses crimes que sejam maiores de 70 anos.

"Desde que se colocou como uma possibilidade [a Lei de Anistia] começamos a lutar contra ela", disse à LJR Norma Méndez, mãe de Melissa. "Nossas esperanças se veem frustradas depois de lutar tanto para que o julgamento avance, para que se inicie. Inclusive, tivemos que lutar muito e com essa lei de anistia não sabemos o que vai acontecer realmente".

A lei foi motivo de alarme desde que estava sendo discutida no Congresso e foi rejeitada por organizações nacionais e internacionais. Foi promovida pelo partido Força Popular, liderado por Keiko Fujimori, filha do falecido ex-presidente Fujimori condenado por crimes contra os direitos humanos e corrupção. Foi impulsionada por congressistas como o ex-ministro do Interior, Fernando Rospigliosi, e o almirante reformado Jorge Montoya.

Quem apoia a lei argumenta que ela impulsiona o país a sair de uma época de conflito sangrento, é uma homenagem a quem lutou contra o terrorismo e uma solução para casos que demoraram décadas para serem resolvidos.

Porém, críticos se preocupam com o impacto na justiça para as famílias das vítimas de abusos contra os direitos humanos.

"Para nós é uma lei que viola não somente o direito das vítimas de ter acesso à justiça, mas também desobedece à jurisprudência da Corte Interamericana [de Direitos Humanos], onde se estabelece que o Estado não pode criar obstáculos para dar uma saída judicial às vítimas", disse Cano. "O que a Lei de Anistia faz é desobedecer seu mandato de investigar, processar e punir violadores de direitos humanos."

Quando a lei ainda estava sendo discutida pelo Congresso, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pediu que o Peru “se abstivesse de aprovar anistias para graves violações de direitos humanos.”

Em uma decisão de 3 de setembro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) ratificou a suspensão imediata da Lei de Anistia. Essa decisão recente confirma a decisão de 24 de julho que ordenou ao Peru que "suspendesse imediatamente a tramitação do Projeto de Lei [...] e, caso não seja suspensa, as autoridades competentes se absterão de aplicar esta lei, de modo que ela não terá efeito legal".

A presidente Boluarte disse que o tribunal internacional tenta interferir na soberania do Peru.

Mais de 50 assassinatos de jornalistas durante o conflito

O caso de Alfaro não é o único em perigo, segundo especialistas jurídicos e defensores da imprensa.

Quando Daniel Urresti, ex-ministro do Interior e general aposentado do Exército, foi condenado a 12 anos de prisão em 13 de abril de 2023, como coautor do assassinato do jornalista Hugo Bustíos, a sentença foi considerada histórica. Não apenas pela condenação de um alto funcionário, mas também porque o caso de Bustíos se tornou o primeiro, e até agora o único, a obter justiça plena: toda a rede criminosa foi condenada.

Algo “histórico” também aconteceu quando Alberto Rivero Valdeavellano, ex-oficial militar de alta patente, foi condenado em 30 de setembro de 2024, no caso do desaparecimento forçado do jornalista Jaime Ayala Sulca em 1984. Outro ex-oficial militar implicado no caso, Augusto Gabilondo García del Barco, ex-chefe de uma base de contrainsurgência, está na Espanha e sua extradição está pendente, disse Juan José Quispe, advogado da família Ayala Sulca, à LJR.

Essas sentenças importantes, no entanto, podem ser afetadas pela Lei de Anistia.

No caso do assassinato de Bustíos, a sentença de Urresti é definitiva após ser ratificada pela Suprema Corte. No entanto, como o ex-militar está se aproximando dos 70 anos, ele poderá ser libertado, disse Qusipe. Por enquanto, a defesa de Urresti já solicitou a anulação de sua sentença com base em outra lei controversa, a chamada "lei da impunidade", que não processa crimes contra a humanidade cometidos antes de 1º de julho de 2002.

Foto en blanco y negro de un joven periodista sentado frente a su escritorio escribiendo en su máquina de escribir mientras sonríe.

El periodista peruano Jaime Ayala desapareció en 1984 en el marco del conflicto armado interno del país. (Foto: Tomada página de Facebook Justicia para Jaime Ayala Sulca)

No caso do desaparecimento de Ayala, devido à idade de García del Barco, seu processo de extradição também pode ser prejudicado, acrescentou o advogado.

Mas há outros casos de violência contra jornalistas ocorridos durante o conflito armado interno. Os jornalistas Pedro Yauri e Hilario Ayuque, junto com Ayala Sulca, são os três jornalistas desaparecidos durante esse período. As investigações sobre os casos deles também teriam sido afetadas, disse Zuliana Laínez, presidente da Associação Nacional de Jornalistas do Peru (ANP), à LJR.

"Na ANP, temos sido absolutamente firmes na rejeição desta lei, não só pelo que ela representa para o país — lembre-se que este país tem mais de 25 mil pessoas desaparecidas, segundo o número oficial — mas também porque afeta diretamente vários casos de jornalistas assassinados e desaparecidos", disse Laínez.

Laínez enfatizou que, além dos jornalistas desaparecidos, mais de 50 jornalistas foram assassinados entre 1980 e 2000.

Ignorar a lei é a única saída

Os advogados Cano e Quispe concordam que a única solução por enquanto é os juízes peruanos ignorarem a lei.

"Todos os juízes da República são obrigados a aplicar o que é conhecido como controle difuso ou controle constitucional. Ou seja, os juízes devem determinar se a lei viola a Constituição Política do Estado", disse Quispe.

Da mesma forma, afirmou Quispe, existe também uma "obrigação internacional" de aplicar o controle convencional. Ou seja, como o Estado peruano ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos e aceitou a competência da Corte IDH, está obrigado a cumprir suas decisões.

"Se uma lei de um Estado-parte na jurisdição administrativa for contrária às decisões da Corte Interamericana, eles vão preferir as decisões da Corte Interamericana à lei de um Estado-parte. Isso é controle convencional", disse Quispe.

De fato, em um caso não relacionado ao jornalismo, o juiz Richard Concepción Carhuancho já não aplicou a controversa "lei de impunidade". Por essa decisão, enfrenta uma denúncia por suposta prevaricação perante a Junta Nacional de Justiça apresentada pelo congressista Rospigliosi.

A Ordem dos Advogados de Puno, no Peru, exigiu a revogação da Lei de Anistia por suas violações de obrigações internacionais e solicitou aos juízes que não a apliquem. Em uma análise, a Fundação para o Devido Processo Legal estabeleceu que a lei "carece de efeito jurídico" por não passar no teste de convencionalidade, e que a resposta dos juízes seria não aplicá-la.

Por enquanto, a família de Melissa Alfaro seguirá participando dos protestos de quinta-feira em frente ao Palácio de Justiça.

"Eu espero que os juízes não apliquem a lei. Estamos com essa esperança", disse a mãe de Alfaro. "Não sabemos como o governo vai proceder, neste momento, está completamente contra nós, os familiares [...] não conseguimos entender uma mulher tão desumana que não consegue pensar melhor no seu povo."

Traduzido por Marta Szpacenkopf
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