Os processos eleitorais que pedem a retirada de algum conteúdo publicado na internet cresceram 33% nas eleições municipais de 2016, que terminaram neste domingo (30/10), em relação ao pleito de 2012. Foram 559 ações na Justiça, contra 419, em 2012, segundo a plataforma Ctrl+X, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).
O projeto, que mapeia processos judiciais contra divulgação de informações no Brasil, também contabilizou outro dado alarmante: os pedidos de censura prévia dispararam nas últimas eleições. Os processos que incluem essa restrição quadruplicaram em relação às eleições de 2012, passando de 23 para 93 casos.
Entre 2002 e 2016, segundo levantamento do Ctrl+X, cerca de 10% das ações eleitorais incluíram pedidos de censura prévia. Dentre esses casos, quase 20% foi deferido pelo juiz, isto é, o veículo, empresa ou jornalista ficou proibido de publicar, no futuro, qualquer informação sobre um determinado assunto ou pessoa.
"São processos que, além de demandar a retirada de um conteúdo do ar, pedem que a empresa deixe de publicar alguma informação. Algo que, segundo eles, possa ferir a honra e a dignidade de um candidato, por exemplo. Então o jornalista tem que adivinhar se o candidato vai ficar ofendido ou não. É um tipo de censura, para evitar que uma informação, antes mesmo de ser publicada, chegue ao conhecimento da população", disse o jornalista Tiago Mali, coordenador do Ctrl+X, ao Centro Knight.
Segundo ele, a forma como o judiciário funciona pode oferecer uma compreensão sobre esse alto índice de deferimento de pedidos de censura prévia.
"No período das eleições, esses juízes, que na maioria dos casos não são eleitorais, são arregimentados pelos tribunais para ajudar a julgar esse tipo de caso. Então muitas vezes eles não têm experiência nessa área", afirmou Mali.
Além disso, os juízes são pressionados para decidirem rapidamente, para evitar que um candidato seja prejudicado na campanha e isso interfira no resultado do pleito.
"Alguns juízes ficam muito sensíveis ao argumento de que, se não tirar a informação do ar logo, é possível que o candidato perca a eleição. Por isso, o juiz acaba agindo por precaução, mas pode, em alguns casos, passar por cima do mérito da notícia, se ela é legítima ou não, sem pensar em questões como liberdade de informação e expressão", disse Mali.
De acordo com o levantamento do projeto, mais de 100 veículos de comunicação foram processados só durante as eleições em 2016. A Abraji se preocupa, especialmente, com casos de jornais regionais, municipais ou de bairro, blogueiros e pequenas empresas de mídia, que não possuem estrutura para se defender na Justiça.
Segundo Mali, as empresas tradicionais de comunicação costumam ser mais processadas, em termos de número de ações, mas possuem departamentos jurídicos que podem proteger os jornalistas.
"Há um número muito grande de pequenos meios de comunicação sendo alvo desses processos. Quando isso acontece com iniciativas de jornalismo independente, de forma sistemática, eles não conseguem ter recursos ou tempo para se defender. Porque a pessoa precisa ir até lá pessoalmente no tribunal. E, se você está tocando um projeto de jornalismo sozinho, isso vai te impedir de fazer outras reportagens", explicou Mali.
Para ele, essas ações acabam intimidando os jornalistas, que evitam escrever ou falar sobre determinado tema ou político, para não sofrer represálias.
Outra conclusão do levantamento é que os políticos estão cada vez mais preocupados com a influências das mídias sociais nos eleitores. Dos 1.604 processos eleitorais cadastrados pelo Ctrl+X desde 2002, 941 têm como réu ou o Facebook ou o Twitter, ou seja, quase 60% do total.
"Os partidos e políticos perceberam que o eleitor se informa muito pelas redes sociais, então eles tentam de todas as maneiras controlar essas postagens. Com medo da viralização dessas críticas, eles processam para o Facebook tirar do ar. Mais de 50% dos processos incluem o Facebook", contou Mali.
De acordo com o jornalista, ainda que um candidato entre na Justiça contra uma pessoa por um post específico nas mídias sociais, o Facebook ou o Twitter também entram como réus. Por isso, apesar de não serem produtores de conteúdo, são os alvos mais recorrentes de ações judiciais como plataformas de publicação.
Além do Facebook e do Twitter, o Google e o UOL também estão no topo do ranking de processos.
"O Google é muito pelos vídeos, para retirar conteúdo do YouTube. E o UOL porque é provedor de muitas páginas, então acabam processando a empresa por isso", afirmou o coordenador do projeto.
Histórico do projeto
A plataforma Ctrl+X surgiu nas eleições de 2014 como uma forma de mapear os processos judiciais com pedidos de retirada de conteúdo da internet. Até então, segundo Mali, não havia um levantamento disponível sobre o assunto no país.
Quando entrou em funcionamento, o Ctrl+X passou a monitorar as ações, além de realizar uma pesquisa retroativa até 2002, para criação de um banco de dados mais completo.
"A gente estava preocupado com o uso desse tipo de instrumento jurídico como meio de censura e intimidação contra jornalistas. Mas era preciso quantificar, porque ninguém sabia o quão grande esse problema era, para só depois monitorar os processos", contou.
O objetivo do projeto era também, de alguma forma, expor os atores que mais processam produtores de conteúdo e, com isso, tentar conter o uso desse recurso jurídico.
Além de jornalistas, o projeto registra e acompanha todos os processos contra produtores de conteúdo em geral, desde rádios, televisões, jornais e blogs, até posts de cidadãos comuns em mídias sociais. No entanto, o Ctrl+X é focado em ações que incluem pedidos de retirada de conteúdo na internet. Processos que demandam exclusivamente direito de resposta, danos morais, indenizações e multas, por exemplo, não são contabilizados.
No início, o Ctrl+X monitorava apenas políticos e partidos. Em 2015, no entanto, ampliaram o escopo, passando a incluir ações movidas por empresas e pessoas não ligadas à política.
Em setembro, o Ctrl+X fechou uma parceria com uma startup americana de tecnologia, o Parsehub. Com a ajuda da empresa, a Abraji montou robôs que fazem uma coleta de dados automatizada nos bancos de dados dos tribunais eleitorais.
Antes, o projeto dependia dos setores jurídicos das empresas de comunicação, que enviavam os processos para o Ctrl+X. Já os robôs são capazes de vasculhar mais de 20 mil ações judiciais por semana e separar em uma planilha - de acordo com palavras-chave selecionadas pela equipe do projeto - os processos considerados relevantes.
A planilha é então revisada pelos funcionários do Ctrl+X e, caso as ações sejam de fato de retirada de conteúdo da internet, são catalogadas e cadastradas na plataforma. A mudança no sistema é considerado por Mali como "um grande salto para o projeto".
"No início, nós tínhamos que sensibilizar os grandes meios de comunicação, blogueiros e jornalistas a nos encaminhar todos os processos contra eles. Mas isso é menos eficiente, porque muitas vezes o departamento jurídico tem outras coisas para fazer e não consegue enviar o material. E com os robôs nós temos uma capilaridade muito maior, conseguimos chegar a processos contra veículos pequenos em cidades do interior", contou.
O serviço da Parsehub geralmente é pago, mas a Abraji conseguiu a tecnologia de forma gratuita para o projeto. Atualmente, os robôs são usados para vasculhar somente os tribunais eleitorais, mas a expectativa é que eles sejam direcionados também para buscas de ações judiciais em geral.
"Os sites dos tribunais eleitorais compartilham de uma estrutura de navegação semelhante. Os Tribunais Regionais Eleitorais estão todos ligados e hospedados no Tribunal Superior Eleitoral, então fica mais fácil aplicar o mesmo formato para todas as unidades da federação. Mas nós queremos expandir para todos os tribunais de justiça", disse.
Caso emblemático
Para Mali, um caso emblemático de restrição à liberdade de informação por meio de processos judiciais é o de Jonas Hames. O jornalista trabalha na Rádio Super 99 FM, na cidade de São João Batista, no estado de Santa Catarina.
Ele cobria política quando um candidato à Prefeitura da cidade, Laudir Krammer, renunciou horas antes das eleições em favor de seu vice, Daniel Cândido.
A população não soube da troca de candidatos, e Cândido foi eleito. "É um caso rocambolesco. O Cândido assumiu e isso foi contestado na Justiça, só que demorou tanto que ele governou durante todo o mandato", contou Mali.
Em agosto de 2016, o Tribunal Superior Eleitoral julgou o caso e cassou o mandato do prefeito. De acordo com o TSE, Krammer sequer poderia ter sido candidato, porque já tinha condenação judicial.
"Só que, nessa época, o Cândido já era candidato à reeleição e acabou ganhando. Claro que isso já foi contestado novamente na Justiça, mas, apesar de estar agora afastado da Prefeitura, ele volta no começo do ano que vem para o segundo mandato", afirmou Mali.
Quando o TSE cassou o mandato de Cândido, Jonas Hames fez uma matéria sobre a decisão. Segundo Mali, o prefeito processou o jornalista, e um juiz determinou que a matéria fosse retirada do ar.
"É uma cidade muito pequena, só há dois veículos de comunicação: o do Hames, e outro, que é do coordenador de campanha do prefeito. Então muita gente da cidade não soube da decisão do TSE", disse Mali. Segundo ele, o caso mostra como a retirada de informação do ar pode causar um prejuízo enorme aos cidadãos.
"Não dá para saber, mas, se a população soubesse da condenação do Cândido, talvez ele não tivesse sido reeleito", afirmou Mali.
Nota do editor: Essa história foi publicada originalmente no blog de jornalismo nas Américas do Centro Knight, o predecessor do LatAm Journalism Review.