O Clarín, da Argentina, é o jornal em língua espanhola com maior número de assinantes digitais no mundo. Segundo informações da própria publicação, até maio de 2023, o jornal contava com 658.333 assinantes digitais, o equivalente a 1,4% da população argentina.
Essa história de sucesso é narrada no livro “Clarín, actualizado. El relato de la transformación digital del diario Clarín”, do jornalista e consultor espanhol Ismael Nafría, publicado em novembro do ano passado pela editora Galaxia Gutenberg.
Na obra, Nafría descreve ao longo de 536 páginas como o Clarín, tendo lançado o seu plano digital de assinaturas apenas em abril de 2017, conseguiu em cerca de seis anos alcançar uma base de leitores tão significativa, acompanhada por mais de 5 milhões de usuários registrados em seu site. A explicação é minuciosa e compreende incontáveis aspectos do funcionamento da organização de notícias, desde o seu uso de big data até orientações editoriais.
Para a sua pesquisa, o autor teve acesso a documentos internos da publicação e conduziu entrevistas aprofundadas com os principais arquitetos da estratégia digital da publicação, em busca de, nas suas palavras, “pistas válidas e experiências práticas a todos os meios de comunicação e profissionais do mundo jornalístico interessados em encontrar fórmulas que permitam superar com sucesso a profunda transformação que o setor vem enfrentando desde a chegada da internet”.
“O livro interessa a qualquer pessoa envolvida no negócio dos meios de comunicação, pois ajuda a entender para onde estão indo. Há poucos livros que explicam esse tipo de assunto, que tentam explicar como se trabalha nos meios de comunicação. Ele é útil para professores, consultores de comunicação, empresas e qualquer pessoa que tenha relação com os meios de comunicação para compreender os desafios do setor”, disse Nafría à LatAm Journalism Review (LJR).
Este é o quinto livro de Nafría, e o seu segundo mergulho profundo seguido para observar as engrenagens de um grande jornal. Em 2017, quando estava em uma residência para jornalistas no Centro Knight para o Jornalismo nas Américas, ele publicou “La reinvención de The New York Times”. O objetivo era explicar o processo de reinvenção pelo qual passou o jornal mais influente do mundo nas duas últimas décadas, para se adaptar à nova era digital e móvel.
Foi justamente o sucesso daquela obra que o incentivou a querer escrever sobre o Clarín, ele disse.
"Quando escrevi o livro sobre o The New York Times, este teve um impacto que considero bastante relevante em toda a região da América Latina e na Espanha. Percebi que, embora não fosse um plano muito premeditado, também poderia ser interessante abordar a ideia de escrever um livro sobre um meio de comunicação em espanhol", afirmou. "Surgiu a oportunidade de escrever o livro sobre o caso do Clarín, e começamos a discuti-lo de forma informal. Posteriormente, a ideia se concretizou, já que tanto eu quanto eles achamos interessante".
Há semelhanças e diferenças entre os casos dos dois jornais. Entre os pontos em comum, ambos os jornais adotaram uma estratégia de buscar primeiro usuários registrados e aplicaram o big data para conhecer melhor seus leitores. Além disso, também priorizam estratégias editoriais para promover a criação de conteúdo que leve à obtenção de assinantes.
Já entre as diferenças, o New York Times direciona toda a sua produção para assinaturas, enquanto o Clarín tem uma parte da atividade editorial voltada para gerar receita publicitária por meio de grandes audiências.
Além disso, o New York Times é uma referência informativa em outros países de língua inglesa, enquanto o Clarín e outros jornais em espanhol são mais influentes em seus países de origem. Por fim, o New York Times possui uma presença internacional significativa, com equipes de redação em outros países, enquanto o Clarín não tem equipes de grande porte fora da Argentina.
A LatAm Journalism Review leu o novo livro de Nafría e conversou com o autor em busca de dicas valiosas para outros veículos latino-americanos. Dada a grande extensão da obra, as lições abaixo são só uma pequena amostra em comparação a uma pesquisa que vai muito mais fundo.
Em um dos documentos aos quais o autor espanhol teve acesso, está escrito que “sem dúvida existe um fator de adesão à marca”, mas mesmo assim a assinatura não acontece “sem choque”, sem que o usuário deseje acessar certo conteúdo e fique impedido de fazê-lo por causa do paywall.
As “matérias decisivas” são justamente as publicações com maior chance de despertar essa vontade. Cada editoria tem a obrigação de publicar duas delas por dia, totalizando de 10 a 12 para todo o jornal. Ao contrário de outras informações, estão necessariamente fechadas por paywall.
Em termos editoriais, segundo documento interno do Clarín, "o caráter único e diferenciado do conteúdo é o fator mais determinante no processo de atrair assinantes". Em vistas disso, estas publicações devem ter "qualidade e profundidade", pois "a conversão melhora com trabalhos muito bem elaborados, rigorosos e completos".
"A ideia principal é que essas matérias sejam exclusivas do Clarín e não estejam disponíveis na concorrência ou em outros lugares", disse Nafría. "Embora seja possível que, sem esse conceito, a redação ainda produziria peças semelhantes, sua existência facilita que mais pessoas na redação compreendam que tipo de produto informativo estão criando. Isso é valioso para explicar tanto à redação quanto às equipes envolvidas o tipo de produto que estão buscando. O Clarín busca com essas matérias que sejam exclusivas e ofereçam qualidade, profundidade e uma narrativa digital atraente".
Enquanto parte da redação do Clarín está voltada para gerar conteúdo de alto valor, outra parte tem por objetivo atrair grandes audiências, incluindo leitores que não são necessariamente assinantes. O objetivo dos públicos massivos é, além dos números de grandes públicos, conseguir também recursos via publicidade digital.
"É uma estratégia dupla que encontrei em muito poucos jornais ao redor do mundo com uma definição tão clara. Eles não estão focados apenas em atrair uma audiência que queira se inscrever, mas também em alcançar o público máximo possível", disse Nafría.
Dedicadas a atrair grandes audiências, estão algumas seções unicamente digitais, como a "Último Momento" (dedicada à cobertura de notícias de última hora), a "Internacional" (sobre variedades internacionais e diferente da seção "Mundo", que trata de assuntos de política internacional) e "Viste" (de temas virais). Segundo o livro, os meios do Grupo Clarín têm uma participação de cerca de 20% dos investimentos em publicidade na Argentina.
No livro, Pablo Vaca, que chefia a parte de grandes audiências, diz que são publicadas cerca de 250 notícias por dia no jornal
Nafría defende esse conteúdo, dizendo que ele se diferencia do clickbait.
“Para mim, o clickbait é quando você publica manchetes enganosas que não correspondem ao conteúdo que será apresentado, ou quando você cria uma frase que não diz nada, mas de alguma forma te obriga a clicar. Se entendermos clickbait como a criação de peças informativas que possam interessar ao máximo número de pessoas, talvez abordando temas de celebridades ou curiosidades, então o Clarín também publica essas matérias”, afirmou.
Um dos itens mais surpreendentes tratados no livro é como o Clarín conscientemente buscou e se articulou com o seu maior competidor histórico, o jornal La Nación, antes de lançar o seu registro de usuários e se o seu paywall, para que as iniciativas dos dois jornais fossem lançadas conjuntamente.
“Eles entenderam que o adversário não era o jornal concorrente, mas sim outras empresas que estavam capturando a atenção dos usuários”, disse Nafría, em referência a companhias como Google e Facebook.
“A colaboração, que ocorre não apenas na Argentina, mas também na Espanha e em todo o mundo, é às vezes difícil entre meios de comunicação que foram concorrentes por muito tempo. No entanto, entenderam que é muito melhor unir forças e estratégias porque o inimigo, por assim dizer, são outras empresas e atividades”, acrescentou.
A colaboração se deu principalmente para o início do registro de usuários, que os dois jornais lançaram no mesmo dia em fevereiro de 2015. Para o lançamento das assinaturas, o Clarín também conversou com o La Nación, mas acabou se adiantando e lançando o seu em abril de 2017, quatro meses antes do outro jornal.
Quando adotaram o registro de usuários, dois anos antes de lançar o serviço de assinaturas, os leitores do site do Clarín passaram a poder ler no máximo 20 notícias por mês antes de efetuar um cadastro – essa quantidade seria progressivamente reduzida com o passar dos anos. Em um mês, 190 mil leitores fizeram seus cadastros. Sete meses depois, em setembro de 2015, seriam meio milhão.
Atualmente, são mais de cinco milhões de leitores cadastrados. Cada um deles fornece dados preciosos para a companhia, como seus hábitos de leitura e preferências. Segundo Nafría, a partir dos registros, os dados se tornaram um elemento central na gestão do negócio do Clarín.
“Ter mais usuários registrados fornece a base perfeita para analisar melhor seu comportamento e utilizar a ciência de dados por trás dod big data para oferecer ofertas aos perfis mais adequados no momento certo. A gestão eficaz do registro feito anteriomente faz parte do sucesso no crescimento das assinaturas”, disse Nafría.
O jornal tem uma equipe com cerca de 30 profissionais dedicada aos dados, que o pesquisador considera um investimento crucial.
“Provavelmente é a equipe de Big Data mais importante de todos os meios de comunicação de língua espanhola. Isso lhes deu uma vantagem competitiva. Foi uma aposta estratégica para realmente compreender os usuários, o que exigiu profissionais que soubessem como coletar, analisar e aplicar essas informações”, disse o autor.
O Clarín fez uma aposta por newsletters no final de 2018, com a publicação de 16 boletins. Desde então, algumas desapareceram e outras foram criadas. Atualmente, há 21 disponíveis, com temas abrangentes, indo desde as principais notícias do dia para serem lidas em sete minutos, até análises sobre o agronegócio, até astrologia, até “o que comer no fim de semana”.
Segundo o autor, o Clarín procurou aproveitar seus profissionais diferenciados nas newsletters, conectando-se com a audiência.
“Algumas newsletters podem ser genéricas e oferecidas por qualquer meio, mas outras têm mais personalidade e isso é valioso. Por exemplo, a newsletter sobre temas rurais, que conta com um jornalista especializado no campo agrícola, é uma maneira de atingir um público muito específico”, afirmou.
Há um profissional dedicado às newsletters, o que o pesquisador considera “muito importante, pois esse produto possui suas próprias características e a diferença nos resultados entre fazer bem e fazer mal é significativa”.
Segundo o livro, com suas newsletters, o Clarín busca fidelizar seus usuários, adquirir novos assinantes digitais, reduzir a taxa de abandono e atrair novos usuários. Havia mais de 641 mil usuários cadastrados para as newsletters em janeiro de 2023, quando essa parte da pesquisa se encerrou.
Antes da transição para o digital, o Clarín fez uma outra mudança significativa bem-sucedida: de um jornal que era vendido primordialmente em bancas, ele passou a ser comercializado principalmente por meio de assinaturas no início da década de 2010.
O principal motivo para isso foi o clube de vantagens lançado em outubro de 2010, chamado de Club 365 (inicialmente, Clarín 365). Ele oferecia descontos de até 50% em mais de 300 marcas e mais de 1000 pontos comerciais, de supermercados a telefonia e salões de beleza. Para consegui-lo, era necessário assinar o Clarín no mínimo aos domingos e em outro dia da semana.
Desde então, tornou-se o mais bem-sucedido programa de fidelidade da Argentina, disse Nafría, chegando a quase 400 mil lares ainda em 2016, antes do lançamento das assinaturas digitais. Em 2019, já alcançou mais de meio milhão de usuários.
“Essa mudança introduziu a cultura da assinatura, que não existia anteriormente, e representou uma mudança cultural interna significativa”, disse Nafría.
“Além disso, o Club 365 marcou a primeira vez que o Clarín, em vez de ser uma empresa orientada principalmente para empresas (B2B) com um número limitado de anunciantes, começou a ter relacionamentos comerciais com milhares e milhares de empresas. Isso representou uma mudança significativa para uma empresa que anteriormente emitia centenas de faturas e agora precisava lidar com milhares delas. Essa mudança foi o ponto de partida para o surgimento do Big Data e da cultura de tomada de decisões informadas com base em dados, o que teve um impacto muito positivo e foi aplicado em todas as áreas da empresa”, acrescentou.
Segundo o livro, o número de empregados na produção de conteúdos do Grupo Clarín – que inclui, além do próprio jornal, como o diário esportivo Olé, rádios e canais de televisão – está caindo. Enquanto eram 7.851 em 2011 e 6.908 em 2016, em 2020 esse número caiu para 5.296.
O livro não discute em detalhes os cortes de pessoal, mas um documento interno de 2009 ao qual Nafría teve acesso já previa que, dos quase 2 mil funcionários no ramo editorial do jornal em 2009, a previsão era uma redução para 1.300 pessoas até 2015. O livro inclui uma carta comunicando a demissão coletiva de 56 profissionais em 2019.
“É verdade que, ao contrário do que aconteceu com o jornal The New York Times, que aumentou sua equipe desde o lançamento das assinaturas digitais, no caso do Clarín não houve um aumento significativo no número de profissionais. Na verdade, no Clarín, houve vários cortes em diferentes momentos na redação”, disse Nafría.
Uma das razões para isso, segundo o autor, é o ambiente econômico global e do mercado argentino, que não tem sido favorável ao longo de muitos anos.
“Isso tem dificultado que o negócio alcance seu potencial máximo. O Clarín adotou uma estratégia de controlar os gastos, além de impulsionar as receitas com assinaturas digitais e publicidade”.