A jornalista brasileira Elvira Lobato ainda se lembra da surpresa que lhe causou a repercussão de uma reportagem sua publicada na Folha de S.Paulo em dezembro de 2007. Desde os anos 90, Lobato cobria o setor de telecomunicações. Isso a levou a escrever sobre os negócios da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), uma das maiores igrejas evangélicas do Brasil, que então detinha a propriedade de 23 canais de TV, dezenas de emissoras de rádio e jornais.
No texto “Universal chega aos 30 anos com império empresarial”, publicado pela Folha em de 15 de dezembro de 2007, Lobato informou que uma das empresas da Igreja estava registrada no paraíso fiscal da ilha de Jersey, no canal da Mancha.
“O elo aparece nos registros da empresa na Junta Comercial de São Paulo. Uma hipótese é que os dízimos dos fiéis sejam esquentados em paraísos fiscais”, escreveu a repórter.
Em janeiro, veio a resposta da Iurd. Em 111 comarcas espalhadas pelo Brasil, do interior do Acre ao Rio Grande do Sul, uma profusão de ações movidas por fiéis e pastores da igreja miravam a jornalista.
“As ações se dividiam em grupos. Eram quatro ou cinco modelos com textos absolutamente iguais. Sempre havia pedidos de indenização, com as pessoas se dizendo ofendidas em sua fé. Não questionavam uma linha do texto, mas alegavam terem se tornado objeto de chacota. Diziam que eram ações individuais, mas isso era impossível. Repetiam as mesmas frases, e isso mostrava que eram feitas em pacote e orquestradas”, disse Lobato à LatAm Journalism Review (LJR) na última segunda-feira.
Até então desconhecida, a tática de utilização coletiva e coordenada do sistema de justiça para perseguir jornalistas atormentou Lobato pelos dois anos seguintes.
“Às vezes, eu precisava me apresentar em tribunais no Amazonas, em Goiás e Santa Catarina no mesmo dia”, lembra-se ela.
Lobato saiu vitoriosa de todas as causas, às vezes ganhando indenizações de quem a processou.
Este tipo de expediente acaba de ser uma forma de assédio judicial contra jornalistas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). No dia 22 de maio, o tribunal estabeleceu uma tese válida para todos os tribunais brasileiros de que “o assédio judicial ocorre quando são iniciadas várias ações judiciais contra o mesmo jornalista ou empresa de comunicação, em diferentes cidades e Estados, baseadas no mesmo fato, com propósito silenciador ou intimidador”.
Segundo o tribunal, essas situações, além de prejudicarem a defesa da pessoa, podem fazer com que ela deixe de publicar sobre assuntos polêmicos por medo de ser responsabilizada – isto é, incentiva a autocensura. Segundo foi dito nos debates do STF, num caso como o de Lobato, daqui por diante, as ações devem ser reunidas e julgadas no lugar onde o acusado mora ou a empresa tem sede. A tese tem aplicação imediata em todos os tribunais do país.
Além disso, o STF também reiterou uma jurisprudência já prevalecente no tribunal, que agora também deve ser seguida por todos os tribunais do Brasil, de que “a responsabilidade civil de jornalistas ou órgãos de imprensa somente estará configurada em caso inequívoco de dolo ou culpa grave (evidente negligência profissional na apuração dos fatos)”.
Ambas as decisões estabelecem precedentes importantes para inibir a perseguição judicial no Brasil, segundo Letícia Kleim, coordenadora jurídica da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), órganização que propôs uma das duas ações julgadas em conjunto pelo STF – a outra veio por parte da Associação Brasileira de Imprensa.
Ainda assim, elas não bastam para acabar com o abuso dos tribunais com o propósito de inibir a imprensa, acrescentou a assessora da Abraji.
“Consideramos as decisões como avanços muito importantes, mas não vão inibir totalmente o assédio judicial. Existem outras formas de se atacar jornalistas. É um primeiro passo”, disse Kleim à LJR.
Segundo um levantamento do Monitor de Assédio Judicial contra Jornalistas da Abraji, ferramenta que coleta e análise informações sobre processos judiciais abusivos contra o exercício do jornalismo no Brasil, houve 25 casos de litígio coordenado, cada um deles com múltiplas ações, entre 2009 e março de 2024, em um universo de 654 casos de diferentes tipos de assédio judicial.
Além do de Lobato, o caso mais notório de assédio judicial coordenado é o do escritor João Paulo Cuenca, que enfrentou 145 ações espalhadas pelo Brasil vindas também da Igreja Universal devido a um texto de opinião publicado em 2020. Até março de 2023, o escritor já vencera 126 processos, todos que já tinham sido julgados até então. Segundo o escritório de advogados que o representa, ainda há ações por julgar.
Entre outros casos de ações coordenadas, segundo a Abraji, há o candidato a deputado federal Guilherme Oliveira contra jornalistas independentes da cidade de Codó, no Maranhão (47 processos); da Associação Nacional Movimento Pró Armas (17 processos); e de membros do Ministério Público do Paraná contra profissionais do jornal Gazeta do Povo que em 2016 publicaram reportagens sobre “supersalários” de membros da carreira.
Em termos de número de ações, a maioria destes casos acontece em Juizados Especiais Cíveis (JEC), órgãos da Justiça Federal que julgam causas mais simples conhecidas como pequenas causas. Criados para facilitar o acesso à Justiça e levá-la a áreas remotas, os tribunais julgam ações que não podem ser unificadas e exigem a presença do réu.
“Eu ia até áreas longe de grandes centros e os fieis e pastores não tinham nem conhecimento das matérias. Às vezes, chegava na audiência e o juiz apenas declarava que o caso estava aberto, mas não acontecia mais nada”, recorda-se Lobato.
Segundo o comunicado do STF, “caracterizado o assédio judicial, a parte demandada poderá requerer a reunião de todas as ações no foro de seu domicílio”. Não se sabe, no entanto, os detalhes de como isso deve acontecer, porque isso depende da publicação do acórdão da decisão, que pode demorar vários meses ou até anos.
De acordo com o advogado André Matheus, especialista em liberdade de expressão e que, por meio do núcleo jurídico Clínica UERJ Direitos, atuou como amigus curiae (amigo da corte) no julgamento do STF, a decisão melhora significativamente as condições de defesa.
“O jornalista ou comunicador não vai mais precisar viajar para uma comarca fazer uma audiência de conciliação, tendo um grande gasto econômico e físico”, disse Matheus.
Guilherme Barbosa, representante da Repórter Sem Fronteiras no Brasil, concorda.
“A decisão traz procedimentos e mecanismos para que os jornalistas, frente ao assédio judicial, tenham minimamente a possibilidade de defesas que não sejam tão onerosas e comprometam de forma significativa a sua atividade laboral”, afirmou Barbosa à LJR.
Embora todos os especialistas em liberdade de imprensa contactados concordem que a decisão sobre processos coordenados é importante, eles acrescentam que ela é insuficiente para extinguir o recurso abusivo aos tribunais contra jornalistas.
A Abraji considera haver quatro situações de assédio judicial contra jornalistas.
Além do emprego de várias ações de autores diferentes contra o mesmo alvo, também há processos de um autor contra diversos alvos, hipótese que a Abraji classifica como “litigante contumaz”.
Em um terceiro caso, há processos que pedem indenização excessiva, como, segundo Letícia Kleim, o caso do jornalista Rubens Valente, processado pelo ministro do STF Gilmar Mendes.
Por fim, há o caso do uso de ações criminais em vez de cíveis, como o caso da jornalista Schirlei Alves.
“Em todos os casos, é preciso mobilizar disparidades e ter um efeito intimidatório. É necessário utilizar desigualdades que impeçam a defesa em pé de igualdade”, disse Kleim.
A decisão do STF contempla a primeira das quatro situações consideradas pela Abraji, mas não diz respeito às outras três.
Como a LJR cobre há anos, os casos de assédio judicial contra a imprensa têm se intensificado no Brasil.
O STF tomou outra decisão no julgamento para combater a prática. Segundo ela, no caso de divulgação de notícias que envolvam pessoas públicas ou assuntos de interesses social, a responsabilidade civil do jornalista depende de o profissional ter agido com dolo má fé – a chamada “tese da malícia real”.
A corte já tinha tido essa compreensão em outros julgamentos, e agora a firmou como uma tese vinculante, aplicável em todos os tribunais do país.
“Já lutávamos há algum tempo por isso. Significa que o mero erro não pode ser considerado ilícito. Isso faz parte da vida da sociedade e faz parte do trabalho jornalístico. É necessário ser constatado o dolo de querer divulgar uma informação inverídica ou a culpa grave do jornalista. Isso é muito importante, porque pode nos ajudar a encerrar muitos casos antes que cheguem à análise [por uma corte]”, afirmou André Matheus.
Guilherme Barbosa, da RSF, entende que a decisão acontece num contexto de crescimento da disseminação de informações falsas, que exige parâmetros mais claros sobre o que é ou não desinformação.
“Nos últimos anos, o cenário nacional e mundial demandam discussões mais aprofundadas sobre a integridade da informação; sobre como garantir que as informações publicadas e difundidas não só pela imprensa, mas também nas redes sociais e no ambiente informacional como um todo, sejam confiáveis, verdadeiras e íntegras”, afirmou.
Mesmo assim, ele observa, há limites de interpretação nesta decisão. Tribunais Brasil afora podem vir a divergir do entendimento do STF sobre o que é dolo, disse Barbosa.
“Pode haver interpretações divergentes nos juízos, principalmente nos tribunais de primeira e segunda Instância, que podem gerar violações à liberdade de imprensa”, afirmou.
De acordo com Letícia Kleim, as decisões podem ter efeitos benéficos também em outros países da região.
“O Brasil sempre foi um exemplo extremo e muito preocupante em termos de assédio judicial. Espera-se que essas decisões contribuam para um impacto regional positivo”.