Quase metade (48,7%) dos municípios brasileiros não contam com um meio jornalístico servindo sua população. São 26,7 milhões de pessoas que têm mais acesso a informações sobre as cidades de São Paulo ou Rio de Janeiro – onde estão sediados os meios de comunicação ditos “nacionais” – do que sobre a própria cidade onde vivem.
Os dados são da edição de 2023 do Atlas da Notícia, que mapeia o jornalismo local e os desertos de notícias no Brasil desde 2017.
Já a Agência Mural de Jornalismo das Periferias cobre o impacto da falta de cobertura local nas periferias de São Paulo pelo menos desde 2018. No começo de 2024, a Mural decidiu contar a história de um desses desertos pela perspectiva da população que vive sem informação confiável sobre seu entorno.
O especial “Sem Notícias”, publicado no dia 4 de junho, conta como é a vida em Pirapora do Bom Jesus, uma cidade no estado de São Paulo com 18.370 habitantes e sem jornalismo local. Uma equipe de cinco profissionais da Mural – repórter, fotógrafo, produtor, cinegrafista e editora – passou cinco dias, entre abril e maio, em Pirapora, um dos 39 municípios da região metropolitana de São Paulo. A equipe conversou com moradores para entender como se informam e de que maneiras a ausência de jornalismo local se faz sentir na cidade.
“A maioria das pessoas nunca tinha ouvido o termo ‘deserto de notícias’, mas entendeu muito rápido do que se tratava e se viu nesse contexto”, disse Sarah Fernandes, editora e coordenadora do projeto da Mural, à LatAm Journalism Review (LJR). “Mesmo estando em um município sem imprensa, sem uma cobertura diária, em geral elas percebiam a importância de ter isso e muitas vezes se lamentavam pelo fato de não ter. Chegamos lá, talvez, com um questionamento novo, que não fizesse parte do cotidiano dessas pessoas, mas no qual elas já haviam pensado em algum momento.”
O especial multimídia foi publicado em texto, foto, áudio, vídeo e quadrinhos, reunindo todos os formatos no qual a Mural veicula seu jornalismo, disse Fernandes.
“Quando estávamos lá, não tínhamos muito certo quais seriam os formatos. Queríamos fazer vídeo, foto e texto, mas conforme fomos conhecendo algumas histórias e pessoas, percebemos que algumas coisas conseguiríamos comunicar melhor por ilustração”, explicou ela. “Talvez, nesses 13 anos da Mural, este seja o primeiro trabalho que consegue congregar todas as linguagens que fazemos. Então para nós, como organização, também é um passo importante.”
Mais de 15 pessoas foram entrevistadas, segundo a reportagem, incluindo estudantes, trabalhadores, líderes comunitários e políticos. Um dos encontros com moradores da cidade foi realizado em uma escola pública, com uma turma do programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA). “Nós somos o jornal um do outro”, disse uma das estudantes.
Segundo a reportagem, Pirapora é uma cidade-dormitório para grande parte da população, que trabalha em outros municípios ao redor. É também uma “cidade dividida”, disse Fernandes, entre o centro e a periferia, onde mora a maior parte da população.
Mesmo em uma cidade pequena sem jornalismo local, a periferia é o lugar mais afetado pela falta de informações. Quem mora mais perto dos centros de poder, como a sede da prefeitura e a Câmara Municipal, acaba conseguindo ter mais acesso a informações e, consequentemente, a direitos. Essa foi uma das conclusões dos estudantes na roda de conversa com a equipe da Mural.
“Foi uma conversa muito rica, que nos permitiu entender como as pessoas são impactadas no seu dia a dia pela falta de informação”, disse Fernandes. “E às vezes a informação não é nem uma denúncia sobre o poder público, mas sim divulgar que um programa do governo federal chegou a Pirapora e está com inscrições abertas, por exemplo. Ouvimos dessas pessoas o quanto elas perdem oportunidades de estudo, de trabalho, de desenvolvimento pela falta dessa informação institucionalizada circulando, e o quanto a ausência do jornalismo local acirra a desigualdade socioeconômica.”
Jacqueline Maria da Silva, repórter da Mural que esteve em Pirapora, disse à LJR que as conversas na cidade foram mostrando aos moradores e aos próprios jornalistas os efeitos da falta de cobertura local e a importância do jornalismo de qualidade.
“Isso é muito importante para nós, jornalistas, porque muita gente fala de fake news como se fosse algo muito banal, mas no deserto de notícias não tem como a fake news ser desmentida”, disse Silva.
“Escutamos tanta coisa [negativa] sobre jornalismo, é tão difícil, as pessoas desvalorizam tanto… E essa reportagem chega a dar um quentinho no coração de ver as pessoas entenderem que o jornalismo é importante, ainda que existam muitas coisas que vão contra e muita desvalorização.”
Segundo a reportagem, Dubes Sônego, pesquisador do Atlas da Notícia, disse à Mural que um dos aspectos mais marcantes dos desertos de notícias é a perpetuação dos mesmos grupos políticos no poder municipal. O especial também destacou que a situação em Pirapora é de um “caldo político em uma cidade pequena, com economia pouco aquecida, baixos indicadores socioeconômicos e sem iniciativas de jornalismo local e independentes sediadas nela para fazer contrapontos, denúncias e investigações”.
Esse ponto se manifestou inclusive no fato de que muitas pessoas se recusaram a conversar com a equipe da Mural, alegando medo de represálias de pessoas com algum poder na cidade.
“É uma cidade com um cenário político bastante acirrado, então as pessoas têm muito medo de falar algo que possa comprometê-las com um ou outro grupo político. Foi uma apuração difícil mesmo, porque as pessoas tinham medo e muitas vezes atribuíam esse medo também à falta da imprensa. Algo como ‘dependendo do que eu falar, posso me prejudicar, porque aqui não tem como circular informação ou fazer uma denúncia’”, explicou Fernandes.
Além disso, Silva disse que a equipe sentiu os olhares desconfiados dos moradores enquanto se deslocava pela cidade.
“[Nossa presença] despertou um movimento das pessoas ali. Estávamos andando com câmeras no meio da semana. (...) Gravamos na frente da Câmara [Municipal]. Quando entramos na Câmara, também sentimos que despertamos certo incômodo”, disse ela.
A reportagem identificou que dois grupos políticos se revezam no poder municipal em Pirapora há pelo menos 20 anos. Nas eleições de 2012, a diferença entre o vencedor do pleito para a prefeitura e o segundo mais votado foi de apenas 28 votos. A falta de jornalismo local contribui para a falta de letramento político na cidade e para a disseminação de desinformação com fins políticos, e esse é um ponto de atenção em 2024, ano de eleições municipais, observou Fernandes.
“Também limita um pouco as pessoas saberem exatamente quais as propostas de cada candidato e analisar o que cada candidato está propondo, e saber o que realmente cabe a um vereador ou a um prefeito fazer”, disse ela.
A reportagem também ressalta que o jornalismo não é a solução para os problemas de Pirapora. Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), é uma das fontes do especial e lembra que “o jornalismo é uma etapa para a resolução de problemas”.
“O papel do jornalismo é fomentar o debate público, levar informações, conectar as pessoas com o que está acontecendo”, disse Fernandes. “Por isso ele tem um papel muito importante na democracia, de denúncia, fiscalização e acompanhamento. E percebemos o quanto isso faz falta no dia a dia das pessoas.”
A equipe da Mural poderá ouvir das próprias pessoas de Pirapora o que elas acharam da reportagem, pois o projeto, patrocinado pelo Pulitzer Center e pela Meedan, prevê que a equipe volte à cidade para apresentar o material final. A intenção é fazer um evento aberto à comunidade no fim de junho, na mesma escola pública que recebeu a equipe em sua primeira passagem pela cidade.