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Sete dicas para fazer reportagens em quadrinhos

O desenho é capaz de transmitir a atmosfera de um momento, recriar uma cena no passado, exprimir sensações e pensamentos dentro da cabeça de uma pessoa.

Tudo isso pode torná-lo uma ferramenta a serviço do jornalismo: as imagens desenhadas ou pintadas podem às vezes resumir de formas claras e expressivas aspectos da realidade que o texto sozinho, a fotografia, o vídeo, os infográficos e o som podem ter dificuldades para traduzir.

Ainda assim, embora histórias em quadrinhos há muito sejam consideradas uma forma madura de arte, a produção de conteúdo jornalístico segue minoritária em relação a outros formatos.

Um livro recém-lançado no Brasil busca contribuir para mudar esse cenário, ao explicar passo a passo como produzir uma reportagem em quadrinhos, desde a definição da pauta, até o processo específico de apuração para essa linguagem, até a roteirização e edição.

The cover of the book Pequeno Manual da Reportagem em Quadrinhos features a colorful montage of journalism and drawing tools, such as pencils, notebooks, a camera, and a microphone, all depicted in soft pastel tones. The composition blends these elements to highlight the combination of journalism and comics in an artistic, inviting manner

A capa do 'Pequeno Manual da Reportagem em Quadrinhos', escrito por Augusto Paim e publicado pela Arquipélago Editorial (Reprodução)

Disponível desde o final do ano passado, lançado no Congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) em julho e prestes a ganhar uma edição na Alemanha, o "Pequeno manual da reportagem em quadrinhos" (Arquipélago Editorial), do jornalista e pesquisador porto-alegrense Augusto Paim , compartilha recomendações e melhores práticas para quem quer produzir uma reportagem em quadrinhos, sejam jornalistas, desenhistas ou aspirantes a ambos.

"Quadrinhos são uma linguagem artística que pode ser usada para qualquer coisa”, disse Paim, ele próprio um produtor de HQs jornalísticas, à LatAm Journalism Review (LJR). “Inclusive, para histórias de super-herois e obras infantis. Mas também existe muita coisa que vai além disso"

 O manual é um resultado indireto de seu doutorado na Universidade Bauhaus, na Alemanha, e deve ganhar uma versão no país europeu no futuro próximo.

Para Paim, o jornalismo em quadrinhos não deve ser visto apenas como uma forma de simplificar informações, mas como uma área de atuação, tal como o jornalismo de veículos impressos ou o televisivo. 

Esta área de atuação inclui diferentes modalidades, incluindo a produção de reportagens, notícias, entrevistas ou resenhas. O autor foca-se especificamente no primeiro tipo, embora algumas de suas dicas também valham para outras formas.

Entre os jornalistas brasileiros trabalhando no formato, Paim destaca Pablito Aguiar, conhecido por abraçar o formato de entrevistas em quadrinhos, e Carol Ito, que fez uma reportagem importante sobre mulheres na Cracolândia para a revista Piauí, além de citar Gabriela Güllich e Cecilia Marins como outras figuras importantes na área.

Em busca de dicas e reflexões práticas para quem quer fazer jornalismo em quadrinhos, a LJR conversou com Paim, e extraiu sete recomendações. 

1. Há pautas mais e menos propícias às reportagens em quadrinhos

No livro, Paim propõe uma máxima: "deveria ser nossa meta: fazer HQ-reportagens que simplesmente não funcionariam em outros formatos. Que precisam ser feitas em quadrinhos!”

Isto, diz o autor, significa que há pautas mais ou menos favoráveis ao formato das HQs. Algumas coisas funcionam em quadrinhos, e não funcionaria em outras linguagens. 

"A linguagem dos quadrinhos permite uma profundidade artística e narrativa que pode ser difícil em outros formatos”, disse Paim. “Isso pode ter a ver com deixar um tema mais acessível, mas também com a possibilidade de aprofundar temas artisticamente e de criar uma atmosfera para um trabalho que, de outra forma, seria mais difícil".

Segundo Paim, o jornalismo em quadrinhos permite uma abordagem mais subjetiva e pessoal da reportagem. Os quadrinhos podem ser especialmente úteis para tratar temas sensíveis ou situações onde a privacidade das fontes precisa ser protegida. 

“Às vezes, a pessoa que está falando está correndo risco de vida, ou então é vítima de violência doméstica. Nesses casos, você pode desenhar as pessoas protegendo a sua identidade”, disse ele.

2) O estilo do traço impacta a narrativa

Paim mencionou que o estilo do desenho interfere diretamente na narrativa jornalística. A sofisticação do traço, portanto, mantém uma relação íntima com o conteúdo jornalístico. 

Um traço simplificado, por exemplo, pode ser útil para notícias, disse ele.

"Um desenho com poucos traços é mais fácil de finalizar e poderia ser utilizado, por exemplo, para fazer notícias em quadrinhos. As redações têm ilustradores que fazem ilustrações para fechar um conteúdo no mesmo dia, então por que não fazer notícias em quadrinhos?”, afirmou Paim. “A notícia tem a ver com comunicar de maneira simples”. 

Em contraste, uma reportagem pode demandar outras técnicas, como aquarela, gravura ou lápis de cor.

3) Jornalistas e desenhistas devem colaborar na apuração

Paim afirma que a presença do desenhista durante a apuração é fundamental. Ela permite ao ilustrador entender em primeira mão como é o ambiente a ser retratado e como são os personagens.

Uma página em preto e branco da reportagem em quadrinhos Juventude: Em Tempo de Crescer, publicada em 2010 pela revista Continuum, com desenhos de Ana Luiza Koehler e texto de Augusto Paim. A página tem quatro quadrinhos, aproximando-se progressivamente de um estádio de futebol, como um zoom. O último quadro mostra dois meninos sentados na arquibancada conversando sobre o time Juventude.

Uma página de 'Juventude: Em Tempo de Crescer' (2010), com texto de Augusto Paim e ilustrações de Ana Luiza Koehler (Imagem: Reprodução)

“Do contrário, a pessoa irá receber uma reportagem pronta e apenas vai ilustrar. E daí é uma reportagem ilustrada, e não é uma reportagem quadrinhos”, afirmou.

Segundo o autor, o desenhista assume uma função parecida com a de um fotógrafo que coleta imagens e percebe aspectos visuais enquanto o repórter cuida principalmente das entrevistas.

“O gênero vive desse encontro com a realidade, de ir para a rua, de falar com as pessoas”, afirmou. “Se você tem duas pessoas envolvidas no trabalho, por que só uma delas deveria fazer isso? 

No livro, ele descreve como o uso de um bloco de desenho pode abrir portas: muitas vezes, ao notarem que alguém ali está desenhando, fontes potenciais se aproximam e estabelecem contatos que seriam dificultosos para um repórter convencional.

Paim acrescenta mais um ponto: se não for possível estar presente no local dos acontecimentos, ao menos deve haver uma pesquisa visual para garantir que o desenho esteja de acordo com a realidade.

4) Há desvantagens no formato

Paim lista algumas desvantagens das reportagens em quadrinhos. A primeira delas é o tempo de produção, que demora mais do que uma reportagem em texto com fotografias.

“Se você quiser fazer um trabalho elaborado de reportagem em quadrinhos, precisa de mais tempo, e com isso alguns temas podem ficar desatualizados”, disse Paim. 

Ele disse que esta demora leva autores consagrados, como o desenhista e cartunista maltês-americano Joe Sacco, a por conta disso abordarem “conflitos que já perderam a atenção da mídia há muito tempo”. 

Outra desvantagem está no fato de quadrinhos dependerem muito de cenas. Para narrar uma cena sem muitos textos, no entanto, são necessárias muitas páginas, o que envolve mais tempo de desenho e produção. 

“Isso pode dificultar a criação de uma reportagem em quadrinhos bem feita em um formato curto”, disse Paim.

Segundo ele, uma alternativa seria um formato híbrido. Isto é, nem todo o trabalho precisa ser quadrinizado, é possível inserir passagens em prosa no meio, antes ou depois do trabalho.

Outra desvantagem, finalmente, é o fato de os quadrinhos ainda serem muitas vezes associados a uma linguagem de facilitação, como uma leitura fácil. Muitos associam quadrinhos a algo infantil, o que desconsidera que, em várias culturas, como na França e na Bélgica, os quadrinhos são consumidos por adultos como literatura ou jornalismo. 

“No Brasil, embora haja uma imensa produção de quadrinhos sobre diversos temas, ainda persiste essa visão limitada, o que atrapalha a função do jornalismo em quadrinhos, que é visto apenas como uma maneira de simplificar temas", disse Paim.

5) A colaboração não está livre de conflitos

No livro, entre as experiências pessoais que Paim compartilha, há casos em que a falta de harmonia entre o repórter e o desenhista prejudicou a fluidez do trabalho.

Paim disse que os conflitos com desenhistas durante o processo de produção de reportagens em quadrinhos geralmente surgem devido às diferenças nas rotinas de trabalho e nas formas de pensar. 

"Às vezes, há um conflito porque os desenhistas geralmente trabalham de maneira mais solitária, e o repórter está acostumado a sair para o campo”, disse Paim.

Ele também mencionou que esses conflitos, embora desafiadores, podem ser saudáveis e contribuir para o processo criativo. 

"É normal que aconteçam impasses, especialmente quando há ideias diferentes para o trabalho”, afirmou .

Segundo o autor, o processo de criação de uma reportagem em quadrinhos pode constituir um aprendizado para desenhistas sobre práticas jornalísticas. 

“O processo da apuração acaba virando quase um curso de jornalismo para quem está desenhando", disse.

6) As obrigações éticas são as mesmas do jornalismo tradicional

As obrigações éticas e deontológicas do jornalismo em quadrinhos são as mesmas do jornalismo tradicional, afirmou Paim.

Ele disse que, embora o desenho ofereça maior flexibilidade para representar situações complexas, o trabalho precisa ser ancorado na apuração e na realidade, evitando qualquer tipo de fantasia exagerada que comprometa a veracidade dos fatos. 

Paim acrescentou que o desenho pode, em alguns casos, facilitar decisões éticas, pois permite mais reflexão antes de representar uma situação visualmente, diferentemente da fotografia, que captura o momento instantaneamente.

A versatilidade da linguagem também possibilita a representação de diferentes perspectivas, o que favorece traduzir situações complexas de modo nuançado.

Ele deu o exemplo de como, em coberturas de protestos, a fotografia pode capturar momentos isolados que podem gerar interpretações enviesadas, enquanto o desenho permite registrar a cena de forma mais contextualizada e equilibrada. 

“Uma fotografia pode ser decisiva para caracterizar uma pessoa como agressor ou agredido. Você vê um policial com o cassetete levantado batendo em um estudante, e na próxima imagem o estudante revida”, afirmou. “Dependendo da foto, você pode caracterizar um como agressor e outro como vítima. No desenho, você tem a possibilidade de registrar essas contradições em uma única cena”.

7) Erros comuns: redundância e uso limitado das possibilidades narrativas

Uma página dos quadrinhos Na Frente das Grades, com texto de Augusto Paim e ilustrações de Bea Davies. A página é dividida em três fileiras de quadrinhos. As duas primeiras fileiras, em tons azuis, mostram uma revista de segurança em uma unidade prisional. A última fileira, em tons amarelos, mostra uma apresentação de uma companhia de teatro dentro da prisão.

Uma página de 'Na Frente das Grades', reportagem em quadrinhos publicada em 2019 pelo veículo alemão was wäre wenn com texto de Augusto Paim e ilustrações de Bea Davies (Imagem: Reprodução)

Alguns erros comuns no jornalismo em quadrinhos incluem uma redundância entre texto e imagem, a presença excessiva de textos e o uso limitado das possibilidades narrativas dos quadrinhos. 

Jornalistas em quadrinhos devem entender que se trata de um formato híbrido, no qual a imagem e o texto dialogam entre si, cada um com uma contribuição própria, disse Paim.

“O texto falar uma coisa que a imagem já mostra ou a imagem repetir um texto é um uso muito pobre das possibilidades de uma de uma história em quadrinho", afirmou.

O jornalismo em quadrinhos oferece a possibilidade de criar narrativas paralelas entre texto e imagem, e isso pode dar margem a sentidos diferentes, que não se reduzem nem a um, nem a outro. 

"Quando o texto mostra uma coisa, e a imagem mostra outra, a partir dessa discrepância, você gera outros sentidos”, disse Paim.

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