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Anabel Hernández conta como bolsa em universidade americana a ajudou a investigar o desaparecimento de estudantes mexicanos

Se existe um caso mexicano que chamou a atenção da mídia do país e do mundo, foi o desaparecimento de 43 estudantes da Escola Normal de Ayotzinapa em Iguala, no estado de Guerreiro, no dia 26 de setembro de 2014.

No entanto, quando a jornalista Anabel Hernández ouviu a notícia, ela sentiu que também deveria investigar o caso. Os 23 anos de experiência jornalística já haviam mostrado a ela que em casos envolvendo desaparecimentos e massacres, a versão do governo mexicano diversas vezes era muito diferente da realidade, segundo contou ao Centro Knight para o Jornalismo nas Américas.

Naquela época, Hernández estava na Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos, completando uma bolsa de jornalismo investigativo. A bolsa chegou no mesmo momento em que ela se viu "obrigada" a deixar o México, pelo menos temporariamente, após ataques contra ela se intensificarem.

"[A bolsa veio] depois de quatro anos de ataques, de invasões de pessoas armadas à minha casa, de animais decapitados, ameaças a minhas fontes de informação", disse Hernández. "O governo nunca fez nada para evitar esses ataques. A impunidade encorajava os que queriam me machucar a continuar tentando."

A investigação que ela queria fazer com o Programa de Jornalismo Investigativo da UC Berkeley envolvia retornar ao país que Hernández tinha deixado, uma perspectiva que preocupava não apenas a própria, como também os organizadores da bolsa. Mas a seriedade do ocorrido a "chocou enquanto jornalista", disse ela.

Depois de convencer os organizadores, ela passaria os próximos dois anos investigando o caso como parte de sua bolsa. Para isso, ela viajava para o México a cada mês com medidas extremas de segurança, até que, em dezembro de 2016, publicou um livro em espanhol que resultou desta pesquisa: "A verdadeira noite de Iguala".

"Eu fiz as viagens com muita, muita discrição", disse Hernández sobre a estratégia usada para investigar uma questão tão sensível. "Eu não contei a ninguém, não havia datas, horários, não havia nada. Eu tinha uma agenda muito específica. Eu marcava meus encontros com as pessoas de um telefone muito seguro na Califórnia e não falava mais com elas, chegava direto ao ponto. Entrava e saía de Iguala constantemente, no mesmo dia ou no máximo em dois dias."

Durante as viagens, ela foi acompanhada por um estudante recém-formado da UC Berkeley, que foi encarregado de produzir a parte audiovisual das investigações.

Sem entrar em detalhes, Hernández contou que, após anos cobrindo esses temas, ela "cultivou fontes" que lhe falam com confiança, e que sabia como extrair informações "de uma forma menos arriscada para todos".

Este foi o primeiro passo para obter acesso ao expediente aberto pela Procuradoria-Geral de Guerrero e pela Procuradoria Geral da República (PGR). De acordo com o que a jornalista contou, ela tinha fontes que lhe ajudaram a conseguir os relatórios.

"Convencer a todos de que a informação vai ser usada de forma cuidadosa, sem manipulações, foi realmente o desafio", disse Hernández. "Que eles soubessem que havia um compromisso sério de não manipular, que minha investigação era encontrar a verdade, fosse qual fosse. Não importava se era cômoda ou não, para os alunos ou para os acusados. A idéia era esclarecer o caso."

Os dois anos de investigação permitiram comprovar as suspeitas que a jornalista teve desde o início e que mostraram a participação de membros do governo não apenas no desaparecimento, como também na "manipulação da investigação oficial", segundo um comunicado da publicação do livro.

De acordo com este anúncio, as autoridades usaram provas falsas para tentar acabar com o caso e tirar a responsabilidade do governo. Hernández também descobriu que alguns detidos, incluindo cidadãos e policiais, foram torturados durante a investigação para responsabilizá-los pelo ataque aos estudantes e pelo desaparecimento.

Mas, como já aconteceu no passado e como ainda ocorre com muitos repórteres mexicanos, as investigações, cujas conclusões foram sendo publicadas em meios de comunicação mexicanos, não foram totalmente bem recebidas.

Ela denunciou que recebeu ameaças e até mesmo algumas fontes foram sequestradas em "levantones". Em Novembro de 2015, por exemplo, quatro pessoas invadiram a casa da jornalista no México, usada durante as investigações. Um ocorrido que Hernández acredita estar relacionado a seu trabalho no caso de Iguala, pois na mesma época ela estava em um "ponto muito sensível" da investigação, relacionado à participação de militares no desaparecimento dos estudantes.

"Nada foi roubado, nem jóias, nem televisões. Eles queriam documentos ", disse Hernández, acrescentando que a invasão teve toques de intimidação, uma vez que foi feita em plena luz do dia e em frente às câmeras de segurança dadas como parte do Mecanismo de Proteção de Jornalistas e Defensores de Direitos Humanos do México.

No dia 1 ° de dezembro, quando se apresentou na Feira Internacional do Livro de Guadalajara, no México, ela teve que ser removida às pressas do local. A segurança contratada para o evento lhe informou que um "grupo de oito pessoas organizadas" a estava seguindo desde sua chegada.

Desde que voltou ao México em agosto de 2016, a jornalista entendeu que deveria se acostumar com a idéia de estar cercada por escolta 24 horas por dia. O Mecanismo de Proteção foi concedida à jornalista, que qualificou o nível de risco para ela como "extraordinário", o mais alto.

"Eu tenho que viver com seguranças, nas mãos de um governo que eu sei que não quer proteger os jornalistas. Então é um pouco uma contradição", disse ela. "Tenho que me resignar a viver no meio dessa contradição, porque por outro lado, se eu não aceitar o mecanismo de proteção dos jornalistas e algo acontecer comigo ou com minha família, o governo mexicano vai lavar as mãos e vai dizer, 'Anabel Hernández não quis participar do programa de proteção e por isso a mataram'".

Nesse assunto, ela lembrou do caso de Rubén Espinosa, morto na Cidade do México após fugir do estado de Veracruz por causa de ameaças.

Por isso, ela sentiu que seu trabalho valeu a pena quando a PGR teve que incluir seu livro como parte do dossiê do caso dos 43 estudantes. Um pedido feito não apenas pelo Centro de Direitos Humanos Miguel Agustín, que representa a família dos desaparecidos no país, como também pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que pediu a abertura das investigações contra militares após as descobertas de Hernández.

Ela credita organizações internacionais, especialmente as universidades que há anos concedem bolsas de estudo a jornalistas latino-americanos, a "crucial" ajuda para incentivar o jornalismo investigativo em países tão complicados quanto o México.

"Incentivar o jornalismo investigativo, grandes investigações, apoiar jornalistas mexicanos e de outras partes da América Latina que estão em perigo", disse Hernández. "Estou convencida de que foi a cobertura dada a mim pela Universidade da Califórnia em Berkeley, este guarda-chuva, porque esta é uma investigação patrocinada e promovida pela universidade, que deu à minha investigação não apenas muito mais poder, mas tambem me deu muito mais segurança na época. Não é a mesma coisa matar e desaparecer com Anabel Hernández durante uma investigação, do que matar e desaparecer com Anabel Hernández, recipiente de uma bolsa da Universidade da Califórnia em Berkeley.

Mas ela também tem a certeza de que são os jornalistas que precisam entender a importância de seu trabalho, apesar de estarem num país classificado como o lugar mais perigoso do continente para excercer a profissão, devido ao alto número de assassinatos de jornalistas. Em 2016, pelo menos 10 jornalistas foram mortos em circunstâncias sem motivo claro.

"Devemos ter um profundo compromisso com o jornalismo no México. Estarmos cientes de que nosso trabalho, mesmo em um momento tão difícil, é uma prioridade, é importante", assegurou. "E que devemos continuar com nosso trabalho, mesmo sabendo que não há ninguém para nos proteger, mesmo sabendo que nossa condenação e nosso destino é certamente morrermos assassinados, como o resto de nossos companheiros".

Nota do editor: Essa história foi publicada originalmente no blog de jornalismo nas Américas do Centro Knight, o predecessor do LatAm Journalism Review.

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