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Apoio do Google a meios jornalísticos na América Latina pode levar à dependência, conclui estudo

Em três edições na América Latina, o Desafio de Inovação da Google News Initiative (GNI) financiou 81 projetos que usavam tecnologia para abordar desafios como aumentar o engajamento do público e diversificar fontes de receita de organizações jornalísticas. Segundo o Google, o programa foi “projetado para estimular a inovação em torno da criação de um ecossistema de notícias mais sustentável e diversificado na região”.

No entanto, um estudo publicado recentemente apresenta uma perspectiva crítica sobre a iniciativa da Google para o jornalismo na América Latina, na África e no Oriente Médio. Os pesquisadores ouviram 36 beneficiários da GNI nas três regiões e argumenta que a iniciativa “fomenta a dependência” das organizações jornalísticas em relação às plataformas de tecnologia.

Também sustenta que a GNI é “uma ferramenta estratégica para a empresa lidar com as preocupações sobre seu impacto no setor de mídia” e uma maneira de a empresa “desviar críticas e amenizar possíveis escrutínios regulatórios” em países onde existe uma tentativa de regulamentar a atuação da plataforma, como no Brasil.

O estudo intitulado “The philanthrocapitalism of Google News Initiative in Africa, Latin America, and the Middle East – Empirical reflections” (“O filantrocapitalismo da Google News Initiative em África, América Latina e Oriente Médio – Reflexões empíricas”) foi realizado entre 2020 e 2023 pelos pesquisadores Mathias Felipe de Lima Santos, Allen Munoriyarwa, Lucia Mesquita e Adeola Abdulateef Elega e publicado neste mês no International Journal of Cultural Studies.

Santos disse à LatAm Journalism Review (LJR) que a pesquisa partiu de um interesse sobre como as organizações jornalísticas estavam aplicando tecnologia em suas operações. Os pesquisadores perceberam que muitos desses projetos eram financiados por empresas de tecnologia, como a Google e a Meta, proprietária de Facebook, Instagram e WhatsApp.

“Vimos que era a única forma que essas organizações de mídia conseguiam desenvolver esses projetos”, disse Santos. “E apesar de serem oportunidades de financiamento com foco em tecnologia, as organizações de mídia também usavam esse dinheiro para se sustentar durante esse ano de projeto.”

O Desafio de Inovação da GNI chamou a atenção dos pesquisadores pelas características dos projetos financiados, disse Santos.

“Tinha muito projeto legal sendo desenvolvido, assim como tinha outros projetos que víamos que não tinham futuro. As pessoas tentavam trazer isso para as organizações de mídia, mas muitos [projetos] morriam”, contou.

Os pesquisadores decidiram então mapear as organizações contempladas pelo Desafio de Inovação e entender como foi a experiência delas no desenvolvimento dos projetos.

Na América Latina, eles entrevistaram gestores de 20 meios de comunicação: Grupo Octubre, La Nación, Red/Acción (Argentina), El País (Bolívia), Alma Preta, Aos Fatos, AzMina, Congresso em Foco, Desenrola, Fiquem Sabendo, Jornal do Commercio, JOTA, Notícia Preta, Marco Zero, O Eco (Brasil), La Voz de Guanacaste (Costa Rica), GatoEncerrado (El Salvador), Verificado MX (México), la diaria (Uruguai) e CLIP.

Todos os respondentes consideram o Desafio de Inovação “uma oportunidade valiosa para organizações de mídia garantirem financiamento para seus projetos tecnológicos inovadores”, afirma o estudo. Ainda assim, muitos fizeram ressalvas sobre a qualidade do apoio e a incompatibilidade entre o financiamento oferecido e o escopo dos projetos, entre outros aspectos.

Alguns respondentes disseram perceber que o Google tem um objetivo duplo com a GNI, usando-a como “uma estratégia preventiva para lidar com regulamentações futuras e demonstrar aos reguladores que grandes empresas de tecnologia e organizações de mídia podem coexistir e cooperar com sucesso”, afirma o estudo.

Os autores sustentam que, diante das crises enfrentadas por organizações jornalísticas nas três regiões analisadas, “qualquer forma de financiamento é frequentemente adotada”. No entanto, segundo eles, é imperativo analisar criticamente o apoio oferecido pelo Google, “particularmente à luz de sua forte oposição e lobby vigoroso contra as regulamentações que exigem compensação” da empresa para organizações jornalísticas.

Em 2023, a empresa de tecnologia promoveu uma campanha contra o projeto de lei 2.630/2020, que busca regular a atuação das plataformas digitais no Brasil, inclusive exigindo que elas compensem organizações jornalísticas por seu conteúdo.

Um inquérito da Polícia Federal concluiu que Google e Telegram abusaram do seu poder econômico na campanha que fizeram contra o projeto de lei. O Google afirmou que gastou cerca de R$2 milhões com a contratação de serviços de publicidade para a campanha.

Em um artigo publicado no site do Google Brasil, a empresa afirma que o PL 2.630/2020 “pode prejudicar o jornalismo”, pois “põe em risco os atuais e desencoraja novos investimentos” das plataformas de tecnologia em organizações de notícias.

Entre 2018 e 2021, a iniciativa global da Google para o jornalismo apoiou sete mil organizações em 120 países com mais de 300 milhões de dólares. Apenas no Desafio de Inovação na América Latina, pelo menos 5 milhões de dólares foram investidos em 20192021 – o valor total da edição de 2022 não foi divulgado.

LJR entrou em contato com o Google no Brasil para repercutir as conclusões do estudo, mas não recebeu resposta até o fechamento desta reportagem.

Desafios e oportunidades

Respondentes ouvidos por Santos e seus colegas relataram dificuldades no desenvolvimento dos projetos financiados pelo Desafio de Inovação. Entre elas estão o desafio de contratar pessoal de tecnologia com os salários praticados no campo do jornalismo, já que esses profissionais tendem a conseguir salários maiores em outros setores. Também disseram que é difícil conseguir financiamento para manter os projetos operando após o fim dos recursos aportados pelo Google.

O tempo exigido pelo Desafio de Inovação para completar os projetos – um ano – foi considerado muito curto, o que levou muitos a diminuir o escopo da proposta ao se darem conta da complexidade do desenvolvimento dos projetos. Em muitos casos, foram desenvolvidas versões beta ou protótipos dos produtos inicialmente propostos. E muitos projetos deixaram de operar pouco depois do fim do financiamento.

Revista AzMina, meio nativo digital brasileiro fundado em 2015, foi contemplada nas edições de 2019 e 2021 do Desafio de Inovação. O primeiro projeto, Elas no Congresso, propunha monitorar projetos de lei sobre direitos das mulheres em tramitação no Congresso Nacional.

O segundo projeto, Amplifica, foi realizado em parceria com o Núcleo Jornalismo e buscava ser uma ferramenta para acompanhar os debates de leitores no então Twitter (hoje X) e promover conversas entre o público e os meios na rede social.

O Elas no Congresso continua em operação, enquanto o Amplifica foi encerrado em maio de 2023 “por falta de recursos e pela decisão do Twitter de encerrar o acesso à sua API gratuita”, segundo o Núcleo.

Carolina Oms, diretora institucional e de captação da Revista AzMina, disse à LJR que há uma “desproporcionalidade” entre o dinheiro oferecido e as contrapartidas solicitadas pelo programa.

Segundo ela, a exigência é “criar um projeto super inovador dentro de um ecossistema que está em crise, com funcionalidade, sustentabilidade, tecnologia e jornalismo para dar certo e virar em um ano”.

“Qual startup de tecnologia faz isso no mundo? Qualquer iniciativa de startup demora. Então é um negócio que realmente não tem muito sentido”, disse Oms.

Não houve, segundo ela, nenhum aceno do Google à possibilidade de continuar financiando o projeto após o ano no qual ele deveria ser desenvolvido.

“Acho legal incentivar a indústria a inovar e a pensar jornalismo com tecnologia. Mas acho que os prazos e os valores não estão de acordo com o tamanho da ambição que o edital [do Desafio de Inovação] exige”, disse Oms.

Ela destacou, porém, que participar do Desafio de Inovação abriu portas para financiamentos de outras organizações à revista AzMina, que viram o investimento do Google como uma chancela ao meio jornalístico.

Esse também foi o caso para a Marco Zero, contemplada em projetos colaborativos nas duas primeiras edições do Desafio de Inovação, em 2019 e 2021. Carolina Monteiro, cofundadora e presidente do conselho diretor da Marco Zero, disse à LJR que ter sido selecionada pelo programa deu grande visibilidade à organização e abriu portas para outras fontes de financiamento.

Outro ponto positivo do Desafio de Inovação para a Marco Zero foi o aprendizado do trabalho em rede.

“Tudo que a Marco Zero passou a fazer depois desse projeto trouxe essa perspectiva de rede, porque entendemos que é muito importante essa colaboração e essa lógica de trabalhar junto com outras organizações”, disse Monteiro.

No projeto contemplado em 2019, a Marco Zero foi uma das dez organizações que desenvolveram o canal Reload, que buscava tornar o jornalismo mais acessível para o público jovem. O Reload saiu do ar em dezembro de 2022 “pela dificuldade de gestão e continuidade por parte das organizações envolvidas”, disse Monteiro.

Já no projeto selecionado em 2021, “Acessibilidade Jornalística”, Marco Zero e outras oito organizações realizaram uma pesquisa sobre acessibilidade do jornalismo digital para pessoas cegas e com baixa visão, e produziram o Lume, um aplicativo curador de conteúdo jornalístico voltado para pessoas com deficiência visual.

Devido à falta de recursos, o Lume está fora do ar desde maio, disse Mariana Clarissa, responsável pelo projeto, à LJR. “Estamos planejando voltar com ele em outubro, para conseguir acompanhar a eleição”, afirmou.

‘Alertas importantes’

“Embora a inovação e os avanços tecnológicos sejam cruciais para os desafios da mídia, é necessária uma abordagem abrangente”, escreveram os autores nas conclusões do estudo.

Eles sugerem uma perspectiva holística com soluções diversas para lidar com os atuais desafios enfrentados por organizações jornalísticas, que aborde “questões sistêmicas no setor de mídia e enfatize soluções sustentáveis que vão além dos avanços tecnológicos”.

“A construção de confiança, o jornalismo ético, a diversidade, a inclusão e a sustentabilidade financeira são essenciais para a saúde da mídia a longo prazo, destacando a importância de fatores além da tecnologia”, afirmam.

Já para lidar com as questões específicas relacionadas ao Desafio de Inovação, os autores sugerem que o Google amplie seus critérios de financiamento e estenda o prazo para o desenvolvimento dos projetos.

“Ao oferecer maior flexibilidade e suporte, o Google pode promover projetos inovadores que atendam às necessidades multifacetadas do setor de mídia no Sul Global. Essa abordagem promoveria soluções sustentáveis e aumentaria a independência e a resiliência das organizações de notícias nessas regiões”, sugere o estudo.

Ainda que as duas participações no Desafio de Inovação tenham deixado um saldo positivo para o Marco Zero, Monteiro ressaltou que o estudo traz “alertas importantes” para todos os atores no ecossistema do jornalismo.

“São reflexões que precisamos fazer como campo, e acho que reforça ainda mais a necessidade de pensar fora das plataformas [de tecnologia]”, disse ela.

Organizações jornalísticas precisam estar cientes dos riscos da dependência de uma só fonte de financiamento, “seja ela qual for”, disse Monteiro, e diversificar suas fontes de receita. Financiadores também precisam estar cientes do impacto que têm sobre o ecossistema jornalístico e dos riscos que promovem, afirmou.

Atual presidente da Associação de Jornalismo Digital (Ajor), Monteiro disse que as considerações do estudo reforçam a proposta da Ajor da criação de políticas públicas de fomento ao jornalismo. Uma das propostas da associação, surgida nos debates sobre o projeto de lei 2.630/2020, é um fundo setorial para financiar o jornalismo no Brasil.

“Outros setores da sociedade precisam se envolver nessa pauta de fomentar o jornalismo, porque é uma questão de defesa da democracia”, disse Monteiro.

 

O Centro Knight para o Jornalismo nas Américas, que publica a LatAm Journalism Review, já recebeu financiamento da Google News Initiative.

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