texas-moody

‘Deve haver um fundo setorial para pagar o jornalismo’: A proposta da Associação de Jornalismo Digital para a regulamentação das plataformas de mídia social no Brasil

Há quase três anos, o Brasil discute um projeto de lei para regulamentar as plataformas de mídias sociais, conhecido como o PL das Fake News (PL 2630/2020). 

Tendo por principais objetivos, segundo seu texto, “o fortalecimento do processo democrático e o fomento à diversidade de informações no Brasil” e “a defesa da liberdade de expressão e o impedimento da censura no ambiente online”, o projeto inclui também um artigo relativo à remuneração pelas plataformas digitais a veículos jornalísticos.

Em sua forma atual, o Artigo 38 do projeto prevê que as plataformas paguem diretamente a organizações jornalísticas pela utilização de seu conteúdo. A proposta objetiva recompensar meios de comunicação pelas perdas causadas com o advento das grandes plataformas digitais.

O jeito como a lei atualmente está redigida motivou insatisfação. Em uma carta aberta publicada no dia 30 de março, o conselho da Associação de Jornalismo Digital (Ajor), sociedade civil que representa mais de 100 iniciativas brasileiras de jornalismo digital, propõe alterações no texto, afirmando que, em sua redação atual, somente grandes empresas de mídia serão beneficiadas.

“A negociação direta entre empresas de mídia e plataformas digitais, sem transparência sobre valores e critérios, concentra poder nas próprias big techs e termina por beneficiar grandes conglomerados de comunicação. Veículos médios e pequenos muitas vezes não conseguem sentar à mesa; quando conseguem, têm um poder de barganha muito menor e negociam no escuro”, diz a carta.

Natalia Viana, presidente da Ajor, conversou por videoconferência com a Latam Journalism Review (LJR) para esmiuçar o debate, explicar a perspectiva da associação que preside e descrever por que considera alterações necessárias. 

Natalia Viana

Natalia Viana, presidente da Ajor

 

 

No dia seguinte à publicação da carta da Ajor, o governo federal apresentou suas propostas de mudanças ao PL, sugerindo que a remuneração pelas plataformas contemple também iniciativas culturais fora do âmbito do jornalismo, complicando ainda mais o debate.

A conversa está aberta. Aos profissionais da imprensa e seus pesquisadores, fica o convite feito por Viana ao final da entrevista: “cabe aos jornalistas ajudarem a discutir e ajudarem a pensar em soluções para a sustentabilidade do jornalismo”.

Qual exatamente é a proposta da Ajor em relação  ao PL das Fake News?

Natalia Viana:  Dialogamos sobre o PL das Fake News desde o ano passado, e resolvemos que deveríamos fechar questão e atuar especificamente sobre o artigo 38, por ser o artigo de maior potencial para afetar o futuro e a sustentabilidade do jornalismo — justamente, nosso principal foco de ação.  Avaliando o PL, decidimos que o apoiamos e ele deve ser aprovado. E também que, dentro do PL, o artigo 38 não deve ser aprovado tal como ele está, mas sim com uma obrigatoriedade de pagamento ao jornalismo. 

Há, por um lado, questões econômicas relacionadas a anúncios, algo de que a mídia tradicional reclama. Quanto a isso, temos uma visão um pouco diferente: as organizações que fazem parte da Ajor não existiriam sem as redes sociais, elas são fundamentais para a nossa fundação, para manter e alcançar novos públicos. 

Mas a gente vê que as plataformas ajudaram a criar um ambiente de debate público poluído por desinformação. Como elas são um oligopólio e mediam a relação de todo o jornalismo com o público, precisam participar da solução para o problema que criaram. 

Então, se falamos de combater as fake news e de remediar a questão da desinformação, elas precisam ajudar a combater a desinformação, a melhorar o ambiente de informações que existe no Brasil.

Isso só pode ser feito de duas maneiras. Ou você combate as fake news e produz fact checking, ou você tem melhor e mais jornalismo. Acreditamos que a lei deve ser aprovada, mas com uma previsão de pagamento das plataformas para o jornalismo.

Quais são as discordâncias em relação ao texto?

Que esse pagamento seja feito diretamente das plataformas para empresas, como na Austrália. Assim, cria-se um mecanismo que privatiza um problema público. O problema da desinformação e o problema das carências financeiras, da falta de sustentabilidade do jornalismo, é um problema social, é um problema generacional que precisa ser resolvido. No mundo inteiro, vários países estão começando a elaborar políticas públicas, inclusive fundos, para apoiar iniciativas de jornalismo, e algo semelhante deveria acontecer no Brasil. 

Se você simplesmente estabelecer que deve haver pagamentos, sem estabelecer critérios nem mecanismos de transparência, você simplesmente favorece uma negociação empresa-empresa. 

Esse é um ponto. E o outro ponto é que, se falamos em fortalecer o jornalismo brasileiro, precisaremos enfrentar o problema histórico da concentração dos meios de comunicação. Se você tem um novo ecossistema de mídia digital, que é muito bem representado na Ajor,  com uma variedade de mídias muito diversas, você vai ter que apoiar esse ecossistema — e, além disso, ampliar a possibilidade de fundação de meios onde não existe nenhum. Temos desertos de notícias em metade das cidades brasileiras.

Então, acreditamos que esse mecanismo de transferência deve ser feito de maneira pública, com governança e transparência. Por isso defendemos que ele seja feito por um fundo público setorial. Você vai perguntar, “ah, mas como seria, como vai funcionar?”. E respondo: não temos essa resposta, e não queremos ter essa resposta. Não é hora de tê-la, porque estamos pautando, trazendo ao debate, a possibilidade desse problema, que é um problema público da sociedade, de ser enfrentado a partir de um fundo e de uma política pública. Queremos trazer para esse debate todos os atores. Até agora, quem pautava o pagamento às plataformas eram os jornais mais tradicionais. A Globo, por exemplo, está atuando muito, e defendem o modelo privatista, o modelo de pagamento direto. A gente não acredita que é esse o caminho. Acreditamos que deve haver um fundo setorial para fazer o pagamento do jornalismo, e o modelo do fundo deve ficar para regulamentação posterior.  O tema deve ser alvo de uma grande conversa pública, todos têm que se engajar no debate. Jornalistas tradicionais, mídias digitais, fotógrafos, todos os atores.

Você pode explicar como está o projeto em sua forma atual? Quem se beneficia com ele?

A linguagem do último projeto, do final do ano passado, diz que deve haver pagamento de redes sociais para empresas. Determina um pagamento direto, o que se chama internacionalmente de mecanismo de barganha. No Brasil, Google e Facebook, prevendo que ia haver uma regulamentação, já estabeleceram vários acordos comerciais, com várias mídias, através de projetos específicos, como o Google Destaques, em que pagam anualmente para essas mídias usarem o seu conteúdo em lugares específicos. Isso é uma forma de você já pré-estabelecer uma relação comercial com as empresas. Então, se a gente quiser saber como funcionaria se fosse um adotado mecanismo de barganha, esse é um ótimo exemplo: ninguém sabe como funciona. Todas as empresas que entram nesse acordo com o Facebook são obrigadas a assinar um NDA [Acordo de não divulgação, non-disclosure agreement], e não podem nem dizer quanto dinheiro  recebem. Ninguém sabe quanto dinheiro recebem, nem onde o dinheiro é empregado, nem se está ajudando a fortalecer e financiar jornalismo, ou se está indo para outras áreas. Tanto Google, quanto Facebook selecionaram empresas da cabeça deles sem nenhum critério público. Ninguém sabe o critério, e não tem nenhum mecanismo de transparência; nenhuma empresa é obrigada a dizer, “estou recebendo tanto do Google, isso está indo para esse lugar”.

E o que aconteceria, se esse mecanismo de barganha fosse institucionalizado e virasse lei?

Na situação atual, é como um mercado voluntário. É possível que, se uma lei obrigasse a barganha, esses acordos fossem simplesmente continuar acontecendo. Além disso, sabemos que há uma discrepância do pagamento entre grandes atores, que têm grande poder econômico, e mídia locais e regionais, que acabam ganhando muito menos. E para isso, de novo, o critério fica absolutamente a cargo das plataformas. Se você for deixar uma negociação de barganha, o critério vai ficar na mão das plataformas, e os únicos que vão ter uma possibilidade de negociar de igual para igual, com mais músculo, serão grandes grupos de comunicação, que tem um monte de advogados. Como uma organização menor, que tem, digamos, 10 pessoas, vai conseguir sentar na mesa com um monte de advogados dessas plataformas para negociar? Não vai. [A lei] vai simplesmente reforçar a concentração que já existe na mídia brasileira.

Em contraste a isso, a senhora considera que os recursos deveriam ir para quais atores? Algum perfil, em específico?

Não acho que os recursos deveriam ir para algum tipo de ator específico; não estou advogando para que os recursos vão para um ou outro tipo de jornalismo.  É preciso entender quais são as necessidades da sociedade. Então, se você olhar o fundo do Canadá, que criou o Canada Media Fund, eles têm, por exemplo, uma linha de financiamento para startups.Também têm uma linha de financiamento para quem fala línguas que não são as dominantes, então, por exemplo, mídias de línguas indígenas no Brasil poderiam ser favorecidas. Ou então, por exemplo, pode haver uma linha para mídias que trabalham com Direitos Humanos. Tudo isso tem que ser estudado. 

Há exemplos no próprio Brasil que poderiam servir como exemplo para a gestão deste fundo para a mídia?

Sim, no Brasil, já há fundos que funcionam muito bem e são bons exemplos. Um exemplo muito positivo é o fundo setorial do audiovisual. O fundo setorial do audiovisual apoiou e fomentou o nosso cinema nesse boom nos últimos 20 anos, com várias produções excelentes, inclusive várias que quase chegaram ao Oscar. Isso aconteceu por conta de uma política pública. Quando você tem um mercado que é desregulado, como é o caso do mercado de mídia no Brasil, que piora com as plataformas, e ele cria distorções, você precisa de uma política pública para reverter essas distorções. Então, se perguntar se a mídia tradicional tinha que entrar? É claro que sim, assim como é claro que as mídias locais também. Tinha que entrar todo mundo. 

E como se daria a governança?

De novo, podemos olhar para o fundo setorial do audiovisual. Deveria haver um conselho que estabelecesse critérios claros que valessem para o Brasil inteiro, atendendo a algumas questões regionais. Esse conselho deveria ser conformado por associações de meios de comunicação variados, televisões, rádios, mídias digitais, legacy media, mídia impressa. Profissionais também, e sindicatos e associações, por exemplo. Também deveria incluir sociedade civil e governo. Com todos, você conforma um mecanismo de governança; quanto mais setores representados, melhor. Quais são os setores que precisam estar ali representados, também precisa ser discutido; obviamente, o setor público, mas o Judiciário também pode estar presente. Você precisa ter um órgão que seja representativo do setor e da sociedade, que é quem se beneficia com o jornalismo.

Em seu último governo,  o Brasil viu um grande esvaziamento dos mecanismos de participação social, como na área ambiental. O fundo setorial do audiovisual também sofreu cortes de recursos com o governo Bolsonaro. Como fazer para proteger a gestão deste conselho de um aparelhamento que canalize os recursos para veículos amigos ou dóceis aos governos, que façam propaganda se passando por jornalismo?  Como gerar mecanismos de segurança para impedir um uso político?

A preocupação é absolutamente legítima, e sinceramente, também a tenho. Mas ela não é um bom argumento para privatizar o emprego dos fundos. É preciso criar mecanismos melhores. No fundo setorial audiovisual, não houve favorecimento de grupos amigos, só secaram os recursos, e agora o fundo vai ser retomado. Se elegermos novamente um presidente autoritário, como Bolsonaro, nós corremos esse risco, sim. Seria muito bom não elegermos outro presidente com essas características. Mas é preciso estabelecer mecanismos que consigam pelo menos frear essas tentativas. Penso que, apesar de os fundos terem secado, o fundo do setor audiovisual é resiliente, tanto que já está voltando, de maneira positiva e com supervisão da sociedade. E, de novo, em mecanismos de governança e transparência, quanto mais participação social, melhor. Tanto que a política de Bolsonaro foi justamente a de ir acabando com esses conselhos. Ele acabava com os conselhos para depois destruir as políticas públicas. Agora, acabar com os conselhos dá muito trabalho, né? Nem o fundo, nem nenhuma das soluções, está livre de problemas. Só penso, e acredito piamente nisso, que quanto mais transparência, maior governança e maior participação pública houver nos programas públicos, menor a chance de serem enviesados.

No último dia de março, o governo apresentou suas contribuições ao PL das fake news. A proposta prevê que as plataformas remunerem conteúdo protegido por direitos autorais, incluindo textos jornalísticos, produções musicais e cinematográficas. Como a senhora vê essas propostas no que diz respeito ao artigo 38 e à sustentabilidade do jornalismo?

A proposta do governo é completamente diferente de tudo que está sendo discutido. O artigo anterior dizia que poderia haver um pagamento por copyright, ou seja por direitos do autor. Então o governo, muito puxado pelo Ministério da Cultura, pôs outras produções culturais, inclusive música, fotografia e outras coisas que não são jornalismo. Isso traz uma confusão enorme ao debate. Isso é, o governo propôs não só manter pagamentos via copyright, mas a bens culturais que não são jornalismo. Isso nos traz muita preocupação, principalmente porque você tira a primazia do jornalismo desse debate. De novo, se o PL é sobre fake news, sobre regular a conversa que está acontecendo na sociedade para defender a democracia, o jornalismo precisa ser a peça central desse debate. Me preocupa que essa proposta do governo retire a centralidade do jornalismo. 

E como andam as articulações políticas de vocês?

A Ajor agora tem um representante em Brasília, e temos conversado tanto com representantes da imprensa tradicional, quanto com políticos, quanto outras organizações da sociedade civil como a Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), quanto outros atores da sociedade civil que falam sobre direitos digitais, como é o caso da CDR (Coalizão Direitos na Rede). Temos conversado com muitos atores, e posso dizer que há já um consenso, ou praticamente consenso, entre os atores mais relevantes nos debates de direitos digitais e de liberdade de expressão, sobre a importância de que o PL traga a obrigatoriedade do pagamento ao jornalismo. Como isso vai ser feito deve ser discutido depois e com mais tempo.

E como tem sido o trânsito com parlamentares e representantes do Executivo?

Temos tido trânsito, sim, principalmente com quem está envolvido no tema . Mas também temos encontrado, e fica aqui um alerta, muita gente que não está a par da discussão, principalmente a parte da questão do pagamento ao jornalismo, que é algo importante para qualquer parlamentar, para qualquer membro da sociedade. Mais do que não ter entrada com parlamentares, vemos muitos parlamentares que não estão acompanhando. Estamos tentando, justamente, sensibilizar muitos parlamentares de que essa discussão é fundamental para a sustentabilidade do jornalismo no futuro próximo.

O que o fato do governo ter tirado a exclusividade da canalização dos recursos para o jornalismo sinaliza?

Acho que já respondi. Mas, enfim, a preocupação é passarmos a falar de uma coisa muito mais ampla, e não focarmos na necessidade da defesa do jornalismo. Temos que lembrar que, se temos uma democracia hoje, foi porque muitos jornalistas, inclusive muitos jornalistas da imprensa independente, ficaram na linha de frente esse tempo todo. O que seria do Brasil hoje se não fossem os fact checkers? O que seria do Brasil se não fosse a Vaza Jato? O que seria sem o jornalismo,  que deu informações sobre a Covid quando era necessário? Ou de jornalistas locais que coletaram comida para suas comunidades na pandemia? Jornalistas trabalharam muito para mantermos nossa democracia.

O quão importante para o jornalismo brasileiro poderia ser uma lei bem desenhada? 

Nada sozinho vai salvar o jornalismo. Esse é um problema da nossa geração. Precisamos criar mecanismos para impulsionar o setor, e mecanismos assim existem para todos os setores da economia. Minha mãe quer abrir um restaurante e recebeu apoio e treinamento. Se alguém quer abrir um escritório, um comércio, uma indústria, tem apoio público e tem orientação. No caso da mídia, não existe isso, o Brasil não tem uma política [para apoiar o jornalismo]. Nós da Ajor criamos os nossos veículos e os conduzimos com zero apoio. Não há uma entidade governamental aonde eu possa ir e falar, “estou escrevendo uma reportagem sobre direitos humanos numa área que ninguém cobre, o que eu posso fazer?” Ou seja, só queremos uma política para esse setor econômico que emprega, que informa e é um serviço, como existe para vários outros setores. 

Em termos de exemplos internacionais, quais você considera positivos, e quais negativos?

A Austrália e a França fizeram pagamento diretos às empresas. Foram modelos que não deram muito certo, justamente porque ajudaram a concentrar nos grandes [veículos]. Isso dentro do modelo de regulamentação. Mas, quanto ao uso de fundos, há muitas iniciativas interessantes. Na Áustria, na Suécia, na Dinamarca. A Itália também criou um fundo de apoio ao jornalismo em 2016. Cada país tem as suas características nacionais, e segue um modelo próprio. Por exemplo, na Itália, há fomento para mídias tradicionais e impressas, mas também para mídias digitais específicas. Na Holanda, lançaram um acelerador que é muito legal. Dão não só financiamento, mas também capacitação, tanto para startups de jornalismo, quanto para mídias tradicionais que querem fazer a sua conversão para o digital ou  lançar novas plataformas digitais. 

Há algo mais que você gostaria de dizer?

O mais importante é algo que escrevo desde o ano passado: os jornalistas  tradicionalmente ficam alienados, e ficam felizes restritos aos seus lugares de empregados. Mas o jornalismo mudou, e cabe aos jornalistas ajudarem a discutir e a pensar em soluções para a sua sustentabilidade. É uma questão geracional, e se nem os jornalistas se interessarem em participar dessa discussão, não podemos esperar que a sociedade vá fazer isso. Estamos em um momento de crise na indústria, mas ela é um serviço fundamental para defender a democracia. O que mais me frustra é a pouca participação dos jornalistas na discussão.

Artigos Recentes