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Casos em Brasil e Chile ilustram como criminalização da difamação ameaça liberdade de imprensa na América Latina

A jornalista brasileira Schirlei Alves assinou, em novembro de 2020, uma reportagem que contava como uma jovem havia sido humilhada durante o julgamento do homem acusado (e depois inocentado) de tê-la estuprado dois anos antes. A revelação do caso teve grande repercussão e motivou uma onda de ataques online contra Alves. Também resultou na aprovação de uma lei para proteger vítimas de violência e em uma sanção ao juiz responsável pelo caso.

Ainda assim, três anos depois da publicação dessa reportagem, Alves foi condenada a um ano de prisão em regime aberto e a pagar R$ 400 mil em indenizações ao juiz e ao promotor do caso, que a processaram criminalmente por difamação. O caso de Alves é o mais recente na América Latina a ilustrar como a criminalização da difamação tem impacto sobre as vidas e o trabalho de jornalistas e ameaça a liberdade de imprensa e de expressão na região.

A condenação de Alves “redobra nossa preocupação com a manutenção desse tipo de legislação, que na realidade acaba sufocando o direito à informação e, sobretudo, a investigação jornalística”, disse Carlos Jornet, presidente da Comissão de Liberdade de Imprensa e Informação da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), à LatAm Journalism Review (LJR).

Jornet lembrou que a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) “é muito clara” sobre esse tema. “O Princípio 10 afirma precisamente que a proteção da reputação deve ser garantida somente por meio de sanções civis, ou seja, não se deve aplicar a lei penal nesses casos”, destacou.

Segundo a organização Media Defence, difamação “é amplamente entendida como a comunicação de uma declaração falsa que injustamente causa dano ou prejuízo à reputação de uma pessoa jurídica ou física”. As figuras jurídicas correspondentes à difamação variam entre países, e podem incluir calúnia, injúria e desacato – esse último é aplicado em casos de suposta ofensa a funcionários, instituições e símbolos públicos.

Apesar das reiteradas recomendações da CIDH e da Organização das Nações Unidas (ONU) e de campanhas contínuas de organizações da sociedade civil para que os países retirem a difamação de seus códigos penais, a Unesco afirmou que o movimento de descriminalização da difamação em países latino-americanos estagnou nos últimos anos.

No relatório “O ‘uso indevido’ do sistema judicial para atacar a liberdade de expressão”, a Unesco afirmou que, entre 1993 e 2012, pelo menos 12 países da América Latina e do Caribe “revogaram leis de desacato e outras semelhantes ou aboliram a difamação criminal em relação a questões de interesse público”. No entanto, crimes por difamação persistem em 29 países na região “e continuam a ser utilizados contra jornalistas e blogueiros”.

O caso de Schirlei Alves

reportagem de Alves publicada pelo site Intercept Brasil no dia 3 de novembro de 2020 trouxe trechos da gravação, até então inédita, de uma das audiências do julgamento do empresário André de Camargo Aranha, ocorrida em julho de 2020. Ele era acusado de ter estuprado a influencer Mariana Ferrer em 2018. A gravação mostra que, ao questionar Ferrer, o advogado de defesa de Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho, mostrou fotos sensuais dela e disse que “jamais teria uma filha” do “nível” dela e que “pedia a deus” para que o filho dele não encontrasse “uma mulher como ela”. Ao ver Ferrer chorando, o advogado diz se tratar de “choro dissimulado” e “lágrimas de crocodilo”.

Aranha foi absolvido da acusação de estupro em setembro de 2020.

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Reportagem de Schirlei Alves no site Intercept Brasil revelou bastidores de julgamento do caso Mariana Ferrer. (Captura de tela)

Após a publicação da reportagem, o promotor Thiago Carriço de Oliveira, o juiz Rudson Marcos e o advogado Rosa Filho moveram ações criminais e cíveis por difamação contra Alves.

Em 20 de dezembro de 2020, o Intercept foi obrigado judicialmente a editar a reportagem de Alves. A versão retificada da matéria informa que Oliveira “realizou esclarecimentos e fez intervenções” e Marcos “realizou várias intervenções para manutenção da ordem, esclarecimentos à vítima e advertências ao advogado de defesa” durante a audiência. Também afirma que esses fatos “foram omitidos” no trecho da gravação da audiência divulgado pelo Intercept.

Em julho de 2023, a juíza Andrea Cristina Rodrigues Studer, da 5ª Vara Criminal da Comarca de Florianópolis, Santa Catarina, absolveu Alves nos processos movidos por Rosa Filho. Segundo o portal Metrópoles, Studer absolveu a repórter afirmando que ela exercia sua “liberdade de expressão” e não extrapolou “os limites da liberdade de imprensa”, e que a discussão é fundamental para o “pluralismo de ideias”.

Dois meses depois, no entanto, Studer condenou Alves nas ações movidas pelo juiz e pelo promotor. Eles alegaram que a repórter cometeu o crime de difamação ao usar a expressão “estupro culposo”, que não foi usada na audiência nem consta nos autos do processo. O termo aparece na reportagem em alusão à alegação da promotoria de que Aranha não tinha como saber que Ferrer não estava em condições de consentir o ato sexual, e por isso não havia dolo.

Em nota acrescentada à reportagem de Alves no mesmo dia da publicação, os editores do Intercept afirmam que a expressão “estupro culposo” foi usada “para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo”. “O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo”, diz a nota.

Na sentença, a juíza Studer afirmou que o uso do termo “ultrapassou a barreira da narrativa e da crítica jornalística”. Ela condenou Alves por “difamação contra funcionário público, em razão de suas funções, e por meio que facilitou a divulgação do caso”, segundo reportagem da Agência Estado. A juíza determinou que a repórter pague R$ 200 mil de indenização ao juiz Marcos e a mesma quantia ao promotor Oliveira, e cumpra seis meses de prisão em regime aberto para cada caso – R$ 400 mil e um ano de prisão, no total.

reportagem de Alves teve repercussão nacional e levou à aprovação da lei 14.321/2022, que ficou conhecida como lei Mariana Ferrer. A norma tipifica o crime de violência institucional e pune agentes públicos que intimidem ou permitam a intimidação de vítimas e testemunhas de crimes violentos. E em novembro de 2023, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou, por unanimidade, a aplicação de uma pena de advertência ao juiz Marcos por sua atuação nesse julgamento. Segundo o CNJ, o juiz “se omitiu ao permitir excessos de comportamento do advogado de defesa do réu”.

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) considerou “inadmissível e ultrajante” a condenação de Alves, segundo declaração assinada pela entidade e outras oito organizações. O Comitê para Proteção de Jornalistas (CPJ), a Repórteres Sem Fronteiras (RSF), a Coalizão Mulheres no Jornalismo e a Rede Voces del Sur, que reúne organizações de 17 países na América Latina, também manifestaram repúdio à sentença e pediram sua anulação.

Rafael Fagundes, advogado do Intercept Brasil e defensor de Alves no processo, declarou em nota à LJR que “a Defesa está inconformada com a sentença, que ignorou a realidade dos fatos e a prova dos autos, resultando em uma decisão flagrantemente arbitrária e ilegal”.

Segundo ele, “a sentença cometeu uma série de erros jurídicos primários, agravando artificialmente a condenação e contrariando toda a jurisprudência brasileira sobre o tema”. “Incapaz de esconder preocupações corporativistas, essa sentença pode servir como uma ameaça contra aqueles que ousam denunciar os abusos eventualmente cometidos pelo Poder Judiciário”, afirmou Fagundes. A defesa entrou com recurso contra a sentença.

Katia Brembatti, presidente da Abraji, também apontou “corporativismo” na condenação de Alves e disse ser preocupante essa “união” entre forças do Judiciário para se defender. Segundo ela, esse caso se insere em um contexto de crescente assédio judicial contra jornalistas no Brasil.

“Quando se fala de assédio judicial, sempre se pensa em uma enxurrada de ações contra um jornalista. Mas um único processo, se for um processo muito substancioso, muito intimidante, é capaz de tolher o jornalista e fazê-lo parar de falar sobre aquele assunto”, disse Brembatti.

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Katia Brembatti, presidente da Abraji. (Arquivo pessoal)

A Abraji está trabalhando na proposição de uma lei modelo anti-SLAPP no Brasil, disse ela, com base em parâmetros internacionais. Um exemplo é a orientação geral estabelecida pela União Europeia em junho deste ano para proteger “jornalistas e os defensores dos direitos humanos de ações manifestamente infundadas ou de processos judiciais abusivos”. SLAPP é a sigla em inglês para “ações judiciais estratégicas contra a participação pública”, que são geralmente iniciadas por empresas ou pessoas com poder institucional ou financeiro com o objetivo de silenciar críticas por meio da intimidação judicial.

Brembatti também observou que os juízes no Brasil têm o poder de não aceitar “ações que são claramente intimidatórias”. Existe inclusive uma recomendação do CNJ aos tribunais pela “adoção de cautelas visando a coibir a judicialização predatória que possa acarretar o cerceamento de defesa e a limitação da liberdade de expressão”.

“Esse é um poder que está na mão do Judiciário, e o Judiciário poucas vezes usa”, afirmou.

Sentença da Corte IDH aponta caminhos no Chile e além

Assim como Alves no Brasil, o jornalista chileno Felipe Soto Cortés também vive, desde janeiro, com uma condenação criminal por difamação. Ele é diretor do meio local Resumen, da cidade de Concepción, a 500 quilômetros ao sul de Santiago, capital do país. Cortés foi condenado criminalmente por difamação por uma reportagem publicada em julho de 2022 que tratava de acúmulo de salários em prefeituras da província de Biobío.

No texto, ele cita um relatório da Controladoria Geral da República que apontava que Rodrigo Daroch, ex-vice-presidente nacional do Partido pela Democracia (PPD) e então funcionário do governo regional de Biobío, havia mantido trabalhos paralelos em duas prefeituras da região em 2021. A reportagem usava a expressão “método Daroch” para se referir a casos de outras pessoas mantendo trabalhos paralelos em outras prefeituras.

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O político Rodrigo Daroch processou criminalmente Felipe Soto Cortés após reportagem no site Resumen. (Captura de tela)

Daroch entrou com uma ação penal por “injúria grave” contra Soto Cortés, que em janeiro foi condenado a 61 dias de prisão, ao pagamento de uma multa equivalente a 822 dólares e à proibição de ocupar cargo público durante a pena. Como ele não tem antecedentes criminais, a pena de prisão foi substituída por uma “remissão condicional” de um ano, durante o qual Cortés deve comparecer mensalmente a uma delegacia.

A defesa de Cortés recorreu da sentença e, enquanto aguarda os desdobramentos na Justiça, o jornalista é alvo de outros dois processos similares relativos a outras reportagens, contou ele à LJR.

“Mais do que algo relacionado à verdade, um processo por difamação é um jogo de poder”, disse Cortés. “Você acaba ficando com medo e pensando ‘bem, até que ponto posso incomodá-los? Até que ponto o que eu vou dizer pode significar desconforto para eles e eles vão me perseguir nos tribunais?’ Então, muitas vezes você acaba dizendo ‘quer saber, não, esse assunto não serve para nós, vamos descartá-lo porque já temos um processo judicial por conta disso’.”

A condenação criminal por difamação tem justamente esse “efeito silenciador”, disse Javier García, fundador e presidente do Observatorio del Derecho a la Comunicación (ODC), à LJR.

“Depois da [primeira] condenação, você sabe que na segunda condenação a sentença será efetiva ou mais intensa, portanto, o efeito silenciador existe (...) Além disso, o impacto não é apenas sobre você: é sobre todos os seus colegas, porque quando você é condenado, não apenas você se silencia, mas também o outro jornalista que diz ‘a mesma coisa pode acontecer comigo’. Portanto, é um efeito disciplinador sobre as vozes críticas ou de denúncia”, disse García.

Resumen tem uma equipe de oito jornalistas, segundo Cortés, e se dedica a investigações sobre poderes locais, como prefeituras e o governo regional. A autocensura imposta pelo medo de novos processos e condenações afeta também a capacidade de o meio se financiar, já que Resumen se sustenta com contribuições de assinantes, além de investimentos dos próprios jornalistas.

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O jornalista chileno Felipe Soto Cortés. (Arquivo pessoal)

“Somos um meio pequeníssimo, que está investigando coisas que ninguém mais investiga”, disse Soto Cortes. “Quando você se autocensura e deixa de investigar, o conteúdo que você apresenta em seu meio de comunicação é pouco inovador, pouco noticioso, pouco relevante e, portanto, diminuem suas visitas [de leitores] (...) Torna-se um meio como eles [as pessoas que o processaram] gostariam, ou seja, um meio que só publica notas que já vêm prontas, comunicados de imprensa e esse tipo de coisa. Torna-se um meio inócuo, irrelevante.”

García disse que a hipótese da ODC é que o jornalismo local é o principal alvo de processos criminais por difamação no Chile.

“Os poderosos têm evitado confrontar a grande imprensa, porque há uma opinião de que o Chile tem condições muito boas de liberdade de expressão e é esteticamente feio pressionar jornalistas”, afirmou. “O que temos encontrado é esse trabalho mais subterrâneo, de procurar o mais fraco, o vulnerável, aquele que não terá repercussão pública, que não terá uma defesa corporativa.”

García e a ODC estão assessorando a defesa de Cortés. Um dos caminhos para reverter a condenação do jornalista é uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), divulgada em fevereiro, que determinou que o Chile é responsável pela violação do direito à liberdade de expressão de um defensor ambiental condenado criminalmente por difamação em 2004.

sentença do tribunal internacional determina, entre outros pontos, que o Estado chileno “deve estabelecer vias alternativas ao processo penal para a proteção da honra de funcionários públicos com relação a opiniões relacionadas à sua atuação na esfera pública”. Também afirma que, enquanto não se conclui a descriminalização da difamação no país, “é necessário que as interpretações de casos envolvendo processos por difamação (...) estejam de acordo com os princípios estabelecidos na jurisprudência desta Corte sobre liberdade de expressão”.

Segundo García, “a Corte Interamericana está há anos, para não dizer décadas, estabelecendo um padrão muito claro no qual diz que a lei, e sobretudo a lei penal, não deve ser usada para assediar jornalistas. Como isso não teve impacto, acho que a Corte tomou uma medida mais drástica, incluindo isso em sua jurisprudência”.

“Esse é um aviso que a Corte Interamericana está dando a toda a região, a todos os países”, avalia.

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