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Como a falta de correspondentes brasileiros na China afeta a percepção dos dois países

Este artigo de Giovana Fleck apareceu originalmente em Global Voices em 4 de junho de 2021.

Gráfico de jornal

Jornalistas alertam para um conjunto de narrativas “homogêneas” e “exóticas” para reportar sobre a China. | Imagem: Giovana Fleck / Global Voices

“Não dá para entender a China sem estar na China”, disse o jornalista Marcelo Ninio. Ele é o único correspondente brasileiro credenciado em solo chinês. Na verdade, o único sul-americano. “Tem também uma repórter cubana. Mas apenas nós dois da América Latina.”

Mas por que tão poucos jornalistas? Considerando que a China é o maior parceiro comercial do Brasil e tão vasto e múltiplo, é plausível que seja do interesse público relatar mais sobre o país aos brasileiros. “Você quer a resposta curta ou a resposta longa?”, disse Ninio, em teleconferência com o Global Voices.

A resposta curta é o que se espera: dinheiro. Ele ressalta que o alto custo da manutenção de um repórter em outro país, somado à falta de recursos em muitas redações, fez com que uma das primeiras áreas a sofrer cortes no orçamento fosse o jornalismo internacional.

Mas esse problema é mais complexo. Para Ninio, isso inclui questões culturais e a dificuldade de ser jornalista na China, um país cheio de restrições. “A gente precisa de mais informações e boas análises sobre a China, caso contrário, continuaremos vendo a desinformação e a sinofobia crescendo no Brasil”, afirma. “Isso diminui as possibilidades de o brasileiro entender o mundo”.

Uma cultura de estereótipos

“A referência da Ásia ao Brasil é algo muito homogêneo. É comum ouvir que chinês, japonês e coreano são iguais no Brasil”, afirma a jornalista Talita Fernandes, em teleconferência com o Global Voices. Depois de mais de três anos como repórter do jornal Folha de S. Paulo, um dos principais jornais do Brasil, Fernandes decidiu se mudar para Pequim para se dedicar aos estudos de chinês. “Na imprensa, a imagem da China não é livre de menos estereótipos, quando o país é citado a partir da analogia de um "dragão raivoso", por exemplo”, diz ela.

Esses clichês também foram  observados pela colunista da Folha Tatiana Prazeres, que é bolsista sênior da Universidade de Economia e Negócios Internacionais de Pequim. Prazeres publicou uma coluna em fevereiro de 2021 dizendo que, no Brasil, “há opiniões apaixonadas, posições categóricas e visões definitivas sobre a China”, e faltam informações e análises.

Depois da coluna de Prazeres, Talita Fernandes foi ao Twitter publicar sua própria perspectiva sobre a falta de cobertura sobre a China:

Tweet por Fernandes

“Daqui e agora vejo o quanto somos ignorantes no Brasil sobre a diversidade que é a China: culturalmente, socialmente, economicamente. Vemos a China como um bloco monolítico e não é isso que vi aqui até agora. ”

 

Para não se distanciar tanto da prática jornalística, assumiu a redação da newsletter Shūmiàn, plataforma coordenada por voluntários que buscam estabelecer pontes de entendimento entre a China e a América Latina. O fato de ser voluntário também é uma medida de proteção. “Se eu fosse remunerada para isso, estaria praticando uma atividade ilegal, pois o frila é algo que não existe na China”, diz Fernandes.

Em seu trabalho, Fernandes explica que tenta fugir das narrativas que acompanha com frequência na imprensa brasileira. “Os meios de comunicação são muito dependentes de agências de notícias ou redações globais, o que significa que a cobertura perde nuances e às vezes acaba sendo superficial ou sem vínculo com os brasileiros. Ou, quando o repórter quer se aprofundar, sempre acaba apresentando a China ao leitor, em um tom repetitivo que às vezes é muito crítico ou muito ingênuo”.

Marcelo Ninio diz que a comunidade de repórteres internacionais na China é unida. “Todos nós passamos pelas mesmas dificuldades, e criamos uma rede de apoio para nos ajudarmos na medida do possível.”

Para ele, a cobertura de seus colegas representa muito do que é comum às democracias ocidentais, mas não traz ideias centrais para os brasileiros. “Meu desafio aqui é fazer uma cobertura que escape da tensão entre o Ocidente e a China. Há batalhas que não fazem parte da estratégia internacional Brasil-China e vice-versa”.

Ninio diz ainda que o principal, para ele, é analisar o ambiente ao seu redor e entender as perspectivas chinesas sem paternalismo.

A maneira como os chineses veem os direitos humanos é um exemplo. Para os brasileiros, o conceito de direitos humanos costuma estar associado à liberdade de expressão, enquanto para os chineses o discurso é mais voltado para o desenvolvimento. “As duas coisas são complementares, mas eu sei que preciso explicar isso para o público brasileiro.”

Esta é a segunda vez de Ninio como correspondente na China. A primeira foi entre 2013 e 2015, também em redação do jornal Folha de S. Paulo. Jornalista internacional com experiência nos Estados Unidos, Europa e cobertura de conflitos, Ninio decidiu apresentar ao jornal O Globo a ideia de uma coluna do ponto de vista chinês, com perspectiva brasileira.

“Cheguei à China em outubro de 2020. Além da pandemia, o que ficou claro para mim é que a dificuldade de acesso às informações ficou muito maior”, diz Ninio.

Ele atribui isso aos conflitos crescentes com a administração Trump no ano passado. Ninio explica que o acesso a fontes oficiais do governo é quase impossível, mas agora os cidadãos também estão mais relutantes em expressar uma opinião. Além disso, o idioma é uma barreira e ele tem que contar com tradutores para auxiliá-lo nas entrevistas. “Mas todas essas barreiras nos obrigam a criar mecanismos para dar conta do trabalho”, afirma.

Ninio usa uma combinação de pesquisa e relatórios de campo para cobrir a China, uma vez que o acesso a fontes e dados oficiais é muito limitado. “Até hoje, ouço dos brasileiros que a China é a culpada pela pandemia, que a China quer controlar a economia... O Brasil precisa de repórteres que cubram a China abordando essas lacunas de informação.”

“Heróis invisíveis”

As dificuldades de cobrir a China não são compartilhadas apenas entre os brasileiros. Talita Fernandes descreve os cidadãos chineses que trabalham como assistentes de publicações internacionais sediadas na China como “heróis invisíveis”. Eles são os únicos com conhecimento e fontes locais, mas são contratados sem o título de “repórter” e não assinam suas reportagens. Isso ocorre porque os cidadãos chineses não podem trabalhar como jornalistas no país para meios de comunicação estrangeiros.

Mas esse arranjo não impediu Haze Fan, uma assistente de notícias da Bloomberg News, de ser  presa em 2020. As acusações que levaram à sua prisão não foram esclarecidas pelo Escritório de Segurança Nacional de Pequim. Ela permanece detida por suspeita de colocar em risco a segurança nacional.

Em março de 2021, a BBC decidiu transferir  seu correspondente de Pequim para Taipei por causa de ameaças devido à cobertura do povo uigur. O Clube de Correspondentes Estrangeiros da China afirma que pelo menos 20 repórteres tiveram que deixar o país desde 2020.

Tweet do Clube de Correspondentes Estrangeiros da China

Essa hostilidade é exatamente o que os especialistas consideram prejudicial  à imagem da China em todo o mundo. Tentando preencher essa lacuna, algumas iniciativas jornalísticas independentes como ChinaFile, Caixin Global e Diálogo Chino  (ou sua versão em inglês, China Dialogue ) - além da própria newsletter  Shūmiàn - tentam fazer a ponte entre a China e o Ocidente. “Precisamos de diversidade e competição para fazer reportagens sobre a China para evitar falsas narrativas como a do 'vírus chinês' que se tornou tão popular no Brasil”, diz Fernandes.


Este artigo é parte de uma   investigação do Observatório da Mídia Cívica sobre narrativas concorrentes sobre a Iniciativa Cinturão e Rodoviária da China e explora como as sociedades e comunidades têm percepções diferentes dos benefícios e danos potenciais do desenvolvimento liderado pelos chineses. Para saber mais sobre este projeto e seus métodos,  clique aqui.

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