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Como autoridades potencializam ataques misóginos e racistas contra jornalistas nas redes

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  • 20 julho, 2022

*Por Laís Martins e Giovana Fleck, publicado originalmente no site da Revista AzMina

Atenção: A reportagem abaixo mostra trechos explícitos de conteúdo misógino e racista. Optamos por não censurá-los porque achamos importante exemplificar como o debate é violento nas redes, como a violência contra mulheres jornalistas se espalha, quais termos são frequentemente utilizados e como podemos identificá-la. 

O assédio online a jornalistas no Brasil se intensificou nos últimos anos devido ao potencial de exposição criado pelas redes sociais e à institucionalização desses ataques. Através de um número crescente de ataques verbais, o discurso de ódio contra profissionais da imprensa cala, intimida e pune – especialmente as mulheres. De um lado, as investidas do presidente Jair Bolsonaro (PL) contra jornalistas naturalizaram esse tipo de violência nas plataformas; do outro lado, quem deveria dar respaldo a esses profissionais peca pela falta de responsabilização. É o que revela estudo sobre violência contra jornalistas nas redes sociais.

O estudo – Como operações de influência entre plataformas são usadas para atacar jornalistas e enfraquecer democracias? – mostra que a misoginia e o racismo estão presentes nas estratégias de ataque aos profissionais da imprensa. O trabalho foi feito colaborativamente por InternetLab, Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia na Democracia Digital (INCT.DD), Laboratório de Pesquisa Digital Forense do Conselho Atlântico (DFRLab), Instituto Vero, Revista AzMina e Volt Data Lab.

Carta branca para atacar

Desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência, em janeiro de 2019, indicadores que medem a situação do jornalismo no país registraram pioras. Entre 2019 e 2020, a ONG Artigo 19 denunciou uma queda acentuada na liberdade de expressão, revisando a classificação do ambiente jornalístico brasileiro de “Aberto” para “Restrito”.

Em 2020, a Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) registrou 428 episódios de violência contra profissionais da imprensa, enquanto a ONG Repórteres sem Fronteiras (RSF) totalizou 580 ataques no país. Em 2021, pela primeira vez em 20 anos, o Brasil foi colocado pela RSF na zona vermelha de seu ranking sobre liberdade de expressão. Desde o início da gestão Bolsonaro, o país já perdeu 10 posições.

Cresceu também nos últimos anos o número de ataques a jornalistas que partem de autoridades públicas, dentre elas o próprio presidente da República. E frequentemente esses ataques têm um alvo: mulheres. O monitoramento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) sobre violência contra jornalistas mulheres identificou que 52% dos ataques partiram de autoridades, encabeçados por Bolsonaro.

É importante lembrar que o fato dessas agressões partirem de autoridades públicas pode incentivar cidadãos comuns a atacar jornalistas por conta própria.

“Uma vez que existe a sinalização do funcionário público, isso é quase como uma mensagem cifrada para que os apoiadores passem a atacar, abusar e ofender jornalistas e qualquer pessoa que se oponha ou critique o que essas pessoas fazem no poder”, disse Carlos Gaio, gerente jurídico sênior do Media Defence, que presta assistência jurídica a jornalistas ao redor do mundo.

Ataques racistas e misóginos

O ambiente virtual é especialmente violento para jornalistas. No Twitter, por exemplo, mulheres jornalistas recebem mais que o dobro de ofensas que seus colegas homens. Na análise textual dos ataques, o preconceito de gênero foi evidente. Mas há também uma presença significativa do racismo: “Há diferenças entre jornalistas homens brancos e jornalistas mulheres brancas, mas a disparidade é ainda maior se os compararmos com jornalistas não brancos”, diz Pedro Borges, co-fundador e editor-chefe da Alma Preta, agência de jornalismo especializada na temática racial.

Em 2020, Borges foi bloqueado no Twitter pelo então presidente da Fundação Cultural Palmares (FCP), Sérgio Camargo, que também usou seu perfil no Twitter para afirmar que a agência “defende bandidos”. Em outra publicação, dois anos depois, ele chamou o veículo de “vitimista”.

Borges não foi o único, visto que Camargo também atacou outros jornalistas, como Flávia Oliveira, comentarista da GloboNews e apresentadora do podcast Angu de Grilo. “Me disseram que os comentários da publicação dele foram ainda piores”, afirma Borges. “Essa foi a única coisa que me poupei, de ler os comentários.”, completa o jornalista.

“Nunca fizemos nenhuma matéria falando sobre a vida pessoal de Camargo. Ele tem todo o direito de criticar uma reportagem, sinalizar quando algo está errado, mas ele sempre opta por atacar [jornalistas] no campo pessoal”, ressalta Borges.

O editor-chefe ingressou na Justiça contra o ex-presidente da FCP em duas ações. A primeira solicita o desbloqueio no Twitter para garantir o direito ao exercício da profissão de jornalista. A segunda pede indenização por danos morais em decorrência dos ataques e ofensas sofridas. Segundo Borges, as ações seguem tramitando sem decisão judicial até o momento. Ele diz que receber ataques é algo constante em sua prática, antes e depois do episódio vivido por causa de Camargo.

Construção do discurso de ódio

No estudo – Como operações de influência entre plataformas são usadas para atacar jornalistas e enfraquecer democracias? – foi observado que a linguagem é diferente em ataques contra jornalistas de determinado gênero e etnia. Mulheres negras e asiáticas, por exemplo, são mais associadas aos termos “tendenciosa”, “parcial” e “ridícula”. Mulheres brancas, por outro lado,  estão mais próximas de termos que as associam ao comunismo, não simplesmente como posicionamento político, mas como uma forma de atacá-las, sendo também chamadas de “terroristas” ou “jornazi”.

No Twitter, as palavras-chave que centralizam os ataques foram identificadas como pertencentes a seis grupos principais: grupos minorizados (negro, mulher, indígena, racismo, estupro), termos sexuais (puta, viado, chupador, cu), termos que criticam posições políticas mais à esquerda (comunista, esquerda, Cuba, Venezuela, corrupto, bandido), competência profissional (parcial, travestido de jornalista, manipulador, partidário), suposta falta de capacidade intelectual (analfabeto, analfabeto funcional, ignorante, burro, demência) e outra variedade envolvendo suposição de falta de capacidade intelectual (imbecil, ridículo, jornazi, idiota, retardado).

Já no YouTube, o estudo observou uma série de xingamentos dirigidos, especialmente, a veículos de comunicação. O canal de TV Band e o jornal Folha de São Paulo são associados às palavras “podre”, “mentiroso”, “militante”, “tendencioso”, além de expressões mais específicas como “furo”, usadas com conotação sexual para atacar jornalistas mulheres. “Lixo” e “esgoto” são associados a outros canais como Globo, UOL, CNN, juntamente com “falir”, “desinformação” e outras palavras que indicam suposta falta de credibilidade ou mentiras. Quando os xingamentos são dirigidos a jornalistas,  usa-se expressões como “vagabundo”, “comunista”, “canalha”, “puta”, entre outras.

Segundo Fernanda K. Martins, diretora do InternetLab e uma das coordenadoras da pesquisa,  “observar o vocabulário utilizado para atacar as e os jornalistas, nos faz perceber que as ofensas carregam vocabulário concentra várias ofensas implicitamente ou explicitamente sexuais, que marcam os ataques feitos por conservadores radicais no Brasil”.

Resposta insuficiente

Na avaliação de Carlos Gaio, que trabalhou por dez anos na Corte Interamericana de Direitos Humanos, a resposta institucional a ataques contra jornalistas tem sido insuficiente.

Do lado do poder Executivo, o Programa de Proteção a Defensores, que pode incluir comunicadores, tem falhas, e é um dos poucos mecanismos do tipo que poderia proteger jornalistas sob ataques.

O poder Judiciário, inclusive o Supremo, também tem falhado em coibir processos apresentados contra jornalistas, afirmou Gaio. Há, inclusive, um conflito de interesses, já que uma das facetas dos ataques contra jornalistas é o assédio judicial.

É o caso do repórter Rubens Valente, cujo caso ganhou repercussão nacional e internacional nas últimas semanas. Experiente na cobertura de direitos humanos e particularmente questões indígenas e de terra, temas de risco para jornalistas, Valente viu o assédio e ataque contra sua figura profissional partir de um ambiente muito mais institucionalizado: o STF.

O jornalista foi condenado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sentença depois confirmada pelo Supremo, a pagar mais de R$300 mil ao ministro Gilmar Mendes por “danos morais” pela publicação do livro-reportagem Operação Banqueiro. Nele, Valente investiga o banqueiro Daniel Dantas, preso em 2008 em operação da Polícia Federal.

A sentença ainda determina que ele “inclua numa eventual reedição do livro, como direito de resposta, a sentença, acompanhada da transcrição integral e fiel da petição inicial interposta por Gilmar Mendes”, de acordo com reportagem da Agência Pública, que jogou luz sobre o assédio judicial sofrido pelo jornalista.

Valente diz que desde 2014, quando o ministro Gilmar Mendes impetrou a ação contra ele, seu trabalho como jornalista foi impactado de duas maneiras. Primeiramente porque ele se absteve, voluntariamente, de cobrir o ministro Gilmar Mendes apesar de dicas que recebia de fontes. “Me declarei eticamente impedido”, disse Valente em conversa por vídeo. Num segundo plano, o jornalista aponta para o tempo perdido em construir sua defesa e para ataques que sofreu como consequência da ação movida por Mendes.

Embora o assédio judicial contra Valente não tenha se convertido em ataques nas redes sociais, o que preocupa o jornalista é a permanência das inverdades propagadas contra ele. “Um objetivo da campanha difamatória é criar essa nuvem, essa sombra, então o objetivo é atingido”, disse o jornalista, demonstrando preocupação sobre como fica sua imagem perante organismos internacionais, que podem eventualmente julgar seu caso.

O caso de Rubens Valente foi levado pela Abraji, em parceria com o Media Defence e Robert F. Kennedy Human Rights, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A avaliação é de que a decisão contra o repórter representa um perigoso precedente para a liberdade de imprensa no Brasil.

Defesa em rede

Tem restado para a sociedade civil a missão de marcar posição e auxiliar jornalistas a se protegerem dos ataques. Isso tanto em casos em que jornalistas publicam de forma independente, como quando faltam respostas e reações mais incisivas por parte de instituições do governo e redações.

O Instituto Vladimir Herzog coordena desde 2018 a Rede Nacional de Proteção a Jornalistas e Comunicadores, um espaço para articular o combate à violência.

Em 2021, a Abraji lançou o Programa de Proteção Legal para Jornalistas, financiado pelo Media Defence em parceria com o Instituto TornaVoz. O programa até agora acolheu quatro casos, dentre eles dois jornalistas que são alvo de ação judicial movida por Luciano Hang.

Segundo Gaio, a reação em rede é importante para dar visibilidade aos crescentes abusos. Mas essa resposta não isenta nenhuma das outras partes – veículos de imprensa, plataformas de redes sociais e instituições de governo – de se responsabilizar e tomar medidas para cessar agressões contra profissionais da imprensa.

Plataforma mais popular entre jornalistas, o Twitter tem políticas claras sobre comportamento abusivo e propagação de discurso de ódio na plataforma, mas peca no monitoramento, identificação e remoção das ofensas. “As plataformas dizem que estão fazendo um grande esforço, mas a lacuna ainda é muito grande em relação ao volume de ataques, funcionamento de bots e trolls atacando jornalistas. Por outro lado, parece que eles são rápidos em silenciar ou bloquear contas por ofensas que não chegam perto da violência desses ataques, então parece haver um dois pesos, duas medidas ali”, disse Gaio, do Media Defence.

Como mostrou uma análise anterior, realizada por AzMina com apoio do Núcleo Jornalismo, profissionais que cobrem política estão mais expostos a ataques massivos nas redes sociais, o que reforça a necessidade de que medidas sejam tomadas especialmente em anos eleitorais. No caso de ataques contra jornalistas mulheres negras ou indígenas, a reportagem identificou que apenas duas em cada 10 ofensas no Twitter foram removidas pela plataforma.

Profissionais devem pensar preventivamente ao compartilhar informações pessoais e sensíveis nas redes sociais que podem municiar eventuais ataques. Para isso, é crucial que redações e organizações de mídia, como sindicatos e associações de jornalistas, capacitem e treinem seus jornalistas em segurança digital. E no caso de agressões conflagradas, redações devem dar apoio.

“Depois ou durante um ataque também é importante documentar esse tipo de situação, e ter alguém de confiança na redação que possa acompanhar o jornalista”, afirmou Gaio.

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