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Como cobrir o Carnaval? Jornalistas especializados dão dicas e alertas

Conhecido por sua abundância de cores e corpos, por sua exuberância esfuziante e por suas multidões em ruas e avenidas, o Carnaval brasileiro também é um assunto sério que envolve trabalho, dedicação, tradição, poder e saberes tradicionais – e, como tal, é um prato cheio para o jornalismo.

Maior festa popular do país, contemplando desde minuciosas tradições locais até acirradas e milionárias competições no caso das escolas de samba, o Carnaval envolve uma complexa cobertura, que abrange desde veículos especializados no tema até todas as maiores televisões e jornais do país.

Em preparação há muitos meses – em muitos casos, desde o fim do Carnaval do ano passado –, com seu ápice durante o feriado que vai do próximo sábado até o meio-dia da quarta-feira, a celebração exige da imprensa cuidados específicos, desde estudo e conhecimento sociológico sobre a festa, até, no caso de correspondentes e enviados estrangeiros, noções básicas do Brasil, incluindo, por exemplo, o seu clima durante o verão e os seus códigos de vestimenta.

Para entender como cobrir a folia, a LatAm Journalism Review (LJR) conversou com uma série de jornalistas especializados e experientes no tema. Por questões logísticas, os entrevistados foram todos do Rio de Janeiro, que tem a festa carnavalesca mais famosa internacionalmente, embora grandes celebrações aconteçam em inúmeras partes do país e boa parte das dicas também seja válida para elas.

Para além de reforçar itens válidos para qualquer trabalho jornalismo, como a importância da preparação e pesquisa antes da cobertura, todos os entrevistados deram alertas contra coberturas superficiais e estereotipadas, que reforcem clichês e se limitem a uma cultura de celebridades, em vez de abordar com complexidade uma festa plural, repleta de criatividade e trabalho, e em permanente transformação.  

Parade of the Imperatriz Leopoldinense samba school in 2023 including elaborate floats, costumed dancers, and the Apoteose monument at the Sambadrome Marquês de Sapucaí during the Champions Parade

A escola de samba Imperatriz Leopoldinense, campeã do Grupo Especial com enredo sobre Lampião, faz o Desfile das Campeãs no Sambódromo da Marquês de Sapucaí em 2023 (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

 

Houve um consenso entre os entrevistados da importância de explorar a diversidade cultural, étnica e social presente no evento, com ênfase no valor de destacar dramas individuais, esforços coletivos e experiências únicas dos participantes.

“O Carnaval é um espetáculo fantástico, cheio de efeitos especiais e mulheres lindas. Mas por trás disso existem milhares de pessoas que passaram meses se preparando, fizeram sacrifícios e deixaram suas famílias de lado. Muitas vezes, a imprensa fica focada só em celebridades, que têm o lugar delas, e esquece de contar as histórias das outras pessoas”, afirmou à LJR Anderson Baltar, âncora da Rádio Arquibancada, a maior rádio especializada em desfiles de Carnaval no Brasil, e desde 2015 professor de um curso para jornalistas especializado no assunto.

“Há milhares de histórias a serem contadas, incluindo histórias de perseguição religiosa e social. O Carnaval é uma grande arena onde milhares de pessoas que são invisibilizadas têm o seu grande palco”, acrescentou.

Dicas dos desfiles

O Carnaval no Rio se divide entre os desfiles das escolas de samba, que acontece durante a noite e a madrugada, e os blocos de rua, que reúnem milhões de pessoas espalhadas em centenas de festas principalmente durante o dia.

Especializado em coberturas de escolas de samba, Baltar dá uma séria de dicas técnicas para quem vai para a avenida Marquês de Sapucaí, onde acontecem os desfiles.

“A cobertura de carnaval tem muitas semelhanças com a cobertura esportiva. Mas não tem zona mista ou entrevista coletiva, é cada um por si”, afirmou. “Tem que estar muito atento para não ser surpreendido. Além disso, os diretores das escolas estão muito atentos. Se alguém estiver atrapalhando, vão abordar essa pessoa”.

O jornalista sugere que os novatos observem como os outros profissionais trabalham. No dia dos desfiles, ele sugere entrevistas curtas. 

“O ambiente da Sapucaí não é muito propício a entrevistas de fôlego. Todo mundo está uma pilha de nervos, você não vai parar alguém naquela hora e fazer uma entrevista muito profunda”.

Antes do desfile, ele sugere que entrem em contato com as próprias escolas, que têm assessorias de imprensa bem organizadas, e peçam informações relevantes e personagens para matérias.

“O desfile é a única competição entre bairros que tem repercussão mundial. É a maior competição entre bairros do mundo”, afirmou. 

Além disso, ele dá dicas práticas, como manter-se hidratado e estar fisicamente preparado para longas horas de trabalho em pé. Como o desfile ocupa toda a noite, a recomendação é chegar o mais descansado possível. É também necessário usar roupas confortáveis e levar capa de chuva.

“A Sapucaí é o único lugar do mundo onde todos trabalham de bermuda”, afirmou.

O detalhe entre o todo

Leila Youssef, responsável pela produção, coordenação e planejamento da cobertura do jornal O Globo e com cerca de 20 coberturas de Carnaval de experiência, destaca o valor dos detalhes na cobertura.

“É um espetáculo enorme, e você ganha na cobertura quando traz detalhes interessantes, principalmente para os veículos sem transmissão ao vivo. A cobertura ganha quando traz detalhes interessantes dentro do todo. Isso vale para a avenida e para o carnaval de rua”, disse Youssef à LJR.

“Quando, durante um desfile, três mil e poucos pessoas desfilam durante 70 minutos, uma só cena é o que vai chamar a atenção. O desfile como um todo você vê na TV ou na internet. Mas, se você traz uma história de uma passista, de alguém que sambou tanto que sangrou o pé, ou o drama de uma ala, a cobertura ganha vida”, acrescentou.

O mesmo, segundo ela, vale para o Carnaval de rua. A cada ano, o evento se torna maior, e envolve milhões de pessoas distribuídas em centenas de festas, que podem variar de dezenas de foliões até centenas de milhares de pessoas.

Women dressed in costumes and carrying musical instruments dance during the parade of the Céu Na Terra block in Rio de Janeiro on February 3, 2024

No dia 3 de fevereiro de 2024, pessoas fantasiadas e com instrumentos musicais participam animadamente do desfile do bloco Céu Na Terra, no Rio de Janeiro (Foto: Thomaz Silva: Agência Brasil)

 

“Ano passado, uma das matérias mais legais que fizemos foi quando o bloco inteiro parou e se sentou na rua para achar uma criança desaparecida. Na função de coordenadora, digo sempre para as equipes buscarem o detalhe entre o todo”, disse Youssef. 

Brasis fora do óbvio

Para além das dicas práticas, é necessário também levar em conta a complexidade cultural do evento. Para o jornalista e pesquisador João Gustavo Melo, autor de “Vestidos para brilhar: Uma epopeia dos grandes destaques do Carnaval carioca”, o, jornalista que vai cobrir os desfiles das escolas de samba precisa entender de cultura e religiosidade brasileira, e “não simplificar coisas que às vezes são complexas”.

“É uma oportunidade para revelar outros Brasis que fogem do óbvio e estão de fora da experiência desencantada do capitalismo. Pode-se contar histórias de povos e pessoas que são silenciados e pouco ouvidos”, afirmou à LJR.

Também protagonista na produção do Carnaval, na condição de compositor da escola de samba Viradouro, Melo disse que “ a primeira coisa que um jornalista pode errar é fazer algo superficial sobre um evento que dura o ano inteiro”.

Segundo ele, muitos profissionais de imprensa “não fizeram uma apuração nem sequer do básico. Chegam no barracão e perguntam ‘qual é a cor dessa escola’, algo que se descobre no Google em um minuto”, disse ele.

“Outra pergunta muito recorrente é ‘quais são as celebridades que vão desfilar na escola?’ Para nós, as celebridades são, por exemplo, os ritmistas, os moradores do bairro. Mas muitos querem saber de pessoas midiáticas”.

Para se informar, Melo sugeriu que os novatos visitem sites especializados, como a Rádio Arquibancada, o Carnavalesco e o Carnaval Carioca

Apesar de ressaltar a importância do preparo, Melo também valorizou a importância do olhar do leigo, que às vezes percebe elementos já naturalizados por quem vive aquilo todos os dias.

“Precisamos do olhar encantado do leigo que olhe para coisas que para nós é paisagem. Às vezes um jornalista que não é tão informado, tão imerso nesse universo, traz questões não pensadas antes”, disse. 

Um complexo cultural

Jornalista da TV Brasil e autora dos livros sobre o Carnaval“Estrela que me faz sonhar” e “Pé, cadeira e cadência”, Bárbara Pereira cita uma expressão empregada pelos autores Luiz Antonio Simas e Ney Lopes para descrever a celebração: o Carnaval, segundo os três, é “um complexo cultural”. Isto é, um conjunto de elementos distintos que envolve “aspectos de sociabilidade, de transmissão de saberes, e a própria formação da sociedade carioca e brasileira”, afirmou Pereira à LJR

“As coisas mais óbvias do Carnaval são a economia e a felicidade, mas há culturas muito distintas. Você pega uma escola de samba e pensa que há uma uniformidade ali, mas não há. Cada núcleo é um microuniverso”, disse a pesquisadora. 

“A ala das baianas é um universo diferente da porta-bandeira. Eles se misturam, mas têm fundamentos diferentes e próprios. Cada aspecto envolve formas de vida diferentes”, acrescentou.

Woman wearing a costume in tribute to the cangaceiro Lampião during Imperatriz's parade in 2023

Mulher com fantasia em homenagem ao cangaceiro Lampião durante o desfile da Imperatriz em 2023. (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Pereira observa que uma dinâmica análoga existe em relação ao Carnaval de rua. A cobertura, segundo ela, às vezes se esquece de que, por trás de um grupo que forma um bloco de Carnaval local, muitas vezes há uma relação específica com o território, e histórias que ficam invisibilizadas 

“Às vezes, por exemplo, podem ser músicos que têm dificuldade para se apresentar no resto do ano, ou vizinhos que quiseram celebrar algo. É preciso entender como aquele grupo se formou, quais são suas relações de sociabilidade, qual é sua relação com o território”, afirmou Pereira. “Cada lugar tem sua própria ideia de brincar, e esse aspecto lúdico, de brincadeira, é muito importante para o Brasil”. 

A ênfase na abordagem de aspectos ligados ao prazer, como a sexualidade e a sensualidade presentes no Carnaval, por vezes oculta dimensões interiores importantes, como por exemplo a possibilidade de experimentar outras identidades, disse Pereira. 

“Muitas vezes, fala-se só no aspecto profano, e se  esquece que a festa tem um motivo, como celebrar a vida, ou botar para fora um ano ruim. Há um elemento catártico que está por trás do momento. O Carnaval é onde é possível se vestir do que quiser e ninguém vai te ridicularizar, porque esse aspecto lúdico faz parte do processo”, afirmou a pesquisadora.

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