Era uma sexta-feira a três dias do Natal, e, com a redação operando em esquema de plantão, o editor da sucursal do Metrópoles em São Paulo, Fabio Leite, precisava de uma matéria para abrir o site no dia seguinte.
Com o noticiário fraco, decidiu fazer uma aposta. Desde setembro, uma idosa conhecida sua do interior de São Paulo reclamava de descontos mensais não autorizados em sua aposentadoria realizados em nome de uma entidade chamada Associação dos Aposentados Mutualistas para Benefícios Coletivos (Ambec). Leite já instruíra a aposentada a procurar o INSS para tentar bloquear os saques e reaver o dinheiro, mas as cobranças continuavam.
Ao buscar rapidamente no Google por “Ambec”, o jornalista descobriu no site Reclame Aqui incontáveis contestações contra a associação. O editor mandou então Luiz Vassallo, repórter investigativo do Metrópoles, apurar a história.
“Eu falei, 'Vassallo, dá uma olhada nisso, porque, bicho, tá muito estranho'”, afirmou Leite à LatAm Journalism Review (LJR).
Buscas no site do Tribunal de Justiça de São Paulo rapidamente mostraram a existência de mais de 600 processos contra a Ambec – em todo o país, eram mais de 2 mil. Os aposentados diziam não saber por que estavam sendo descontados.
A abundância de pessoas potencialmente lesadas tornava fácil contatá-las para ouvir os seus relatos. Vassallo também descobriu naquela mesma tarde que a Ambec estava em nome de uma auxiliar de dentista, mas havia indícios fortes de que empresários próximos ao Centrão eram os seus verdadeiros proprietários.
“Eu falei, ‘vamos virar isso rápido’”, disse Leite.
A dupla não tinha então a mínima ideia, mas a manchete do site na manhã do dia 23 de dezembro de 2023, “Associação em nome de auxiliar de dentista dá golpe em aposentados”, dava início a uma das séries de reportagens de maior impacto no Brasil nos últimos anos. Ao longo de dezenas de reportagens e notícias espalhadas em quase um ano e meio, a cobertura do Metrópoles revelou a existência de um suposto esquema de falsas associações suspeitas de descontar irregularmente de aposentados mais de R$ 2 bilhões apenas entre janeiro de 2023 e abril de 2024.
Após a Polícia Federal deflagrar em 23 de abril uma operação cuja investigação cita matérias do Metrópoles dezenas de vezes, o presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, e o ministro da Previdência, Carlos Lupi, perderam os cargos. O Governo Federal busca minimizar o estrago e já começou a devolver aos aposentados o dinheiro dos descontos, enquanto a oposição tenta capitalizar politicamente e articula uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para investigar o escândalo.
A repercussão avassaladora do caso mostra o impacto potencial do jornalismo na vida de um país, abrangendo desde as suas altas esferas políticas até as contas mensais de idosos desvalidos. O repórter que revelou o caso e liderou a sua cobertura afirma, no entanto, que, ao longo de mais de um ano de trabalho, em boa parte do tempo, sentia-se como se o trabalho fosse em vão.
“Eu fiquei tanto tempo cobrindo isso meio sozinho”, afirmou Vassallo à LJR. “Eu pensava, ‘pô, isso daí não vai dar em nada”.
O editor do Metrópoles em São Paulo, Fabio Leite (à esquerda), e o repórter investigativo Luiz Vassallo (à direita) (Foto: Rodrigo Freitas/Metrópoles)
Na tarde do Natal de 2023, Vassallo protocolou um pedido via Lei de Acesso à Informação para saber quais eram todas as associações que tinham acordo de cooperação com o INSS, os seus números de filiados e o valor dos descontos. Recebeu uma resposta em janeiro, mas nela não constava a maior parte das informações pedidas. O repórter recorreu à Controladoria Geral da União; a pressão surtiu efeito, e no final de março o INSS finalmente lhe disponibilizou uma planilha com os dados.
Vassallo elogia o sistema Sistema Eletrônico de Informações ao Cidadão (e-SIC), ferramenta que permite a qualquer pessoa requisitar ao governo federal informações de interesse público.
"O sistema do governo federal deveria servir de bom exemplo para todos os órgãos públicos”, afirmou. “Apesar de a LAI às vezes ser vilipendiada no Brasil, ela funciona”.
As informações descobertas espantavam. Em troca de supostos serviços oferecidos aos associados, como assistência em saúde, 29 associações estavam autorizadas pelo INSS a praticar “descontos de mensalidade associativa” nos benefícios de aposentadoria e pensão de aposentados. Cerca de metade das associações era razoavelmente bem-estruturada e conhecida, e demonstrava de fato atuar em prol dos aposentados. A outra metade, no entanto, tinha o mesmo perfil da Ambec: origem desconhecida e recente e um crescimento extraordinariamente rápido em seu número de afiliados, disse Vassallo.
Contra essas associações, pesavam mais de 60 mil processos pelo Brasil de aposentados que afirmavam jamais ter requerido os seus serviços, disse Vassallo. Mais de R$ 2 bilhões tinham sido faturados assim só ao longo de 2023 e do início de 2024.
“Na hora a gente falou, isso aqui é a farra dos descontos’”, afirmou Leite, relembrando como surgiu o nome com o qual caso ficaria conhecido.
Após dois ou três dias de trabalho para organizar as informações e ouvir o INSS e representantes das empresas, o Metrópoles publicou a reportagem com o furo, intitulada “Exclusivo: Farra do desconto em aposentadorias fatura R$ 2 bi em 1 ano”.
As denúncias eram bombásticas: em seu conjunto, o faturamento mensal das empresas passou de R$ 85 milhões no início de 2023 para R$ 250 milhões um ano depois. Só a Ambec saltara de 40 mil para 600 mil associados em 15 meses. A própria Ambec faturava R$ 30 milhões por mês.
O que permitia os descontos eram os chamados Acordos de Cooperação Técnica (ACTs), uma legislação dos anos 1990 criada por sindicatos de defesas dos aposentados. Para filiar os aposentados, as associações precisavam cumprir algumas regras, exigindo necessariamente a assinatura dos filiados.
No entanto, as novas associações ignoravam essa regra e realizavam as novas filiações de forma fraudulenta, como por supostas autorizações telefônicas, mostrava a reportagem do Metrópoles. A Justiça já provara em alguns casos a existência de fraudes nas assinaturas.
“Nos casos que tinham sido julgados, conseguíamos ver que os argumentos das entidades na Justiça eram muito frágeis”, afirmou Leite.
Ao longo da cobertura, os acusados negaram afiliar pessoas contra a sua vontade, posição que mantêm até hoje.
A investigação do Metrópoles seguiu adiante. Desde a primeira matéria, destacava-se a figura de Maurício Camisotti, empresário do setor de saúde que parecia ser o verdadeiro proprietário da Ambec e de outras associações. Após revelar o alcance da farra, fontes de dentro das associações forneceram a Vassallo documentos. Segundo o repórter, as evidências mostravam que Camisotti e outros empresários dos ramos de seguros e planos de saúde estavam no controle das empresas, notícia publicada no início de abril de 2024.
“A partir do momento em que você publica uma matéria, pessoas que têm conhecimento do assunto ou estão rompidas com os atuais proprietários começam a te procurar”, afirmou Vassallo. “As pessoas falaram em on, ou então me entregaram documentos que evidenciavam o controle das associações”.
Várias reportagens se seguiram, como por exemplo uma de julho de 2024 que mostrava a vida de luxo e as relações com políticos dos supostos líderes das associações, e outra de setembro revelando que até uma antiga liga de beach tennis se tornara uma associação supostamente beneficiária de aposentados.
Há tempos, os jornalistas já sabiam que a Controladoria-Geral da União (CGU), o Tribunal de Contas da União e o próprio INSS conduziam investigações sobre os descontos. Em julho, o diretor de Benefícios do INSS, André Fidelis, perdeu o cargo por causa do escândalo.
Mesmo assim, a dupla de jornalistas considera a repercussão inicial de outros veículos, nas palavras de Leite, “tímida”. Um dos motivos para isso, segundo o editor, foi o fato de que a planilha com os dados a princípio não estava pública, o que dificultava a cobertura da concorrência. Eventualmente, alguns veículos, como o Jornal Nacional, faziam matérias, mas de teor recapitulativo e sem apresentar grandes avanços.
Segundo Vassallo e Leite, representantes dos envolvidos no esquema intimidaram tanto os jornalistas quanto a chefia do Metrópoles para interromperem a apuração. Embora ressaltem ter recebido apoio exemplar da direção do portal ao longo de todo o processo, contam que houve uma ofensiva agressiva para desistirem da cobertura, incluindo desde comunicados públicos com acusações de serem “inimigos dos aposentados” até insinuações de propostas financeiras para abandonarem o assunto.
“Mandaram todo tipo de gente para tentar me parar, inclusive atuando por cima de mim, falando com a chefia e tudo mais”, disse Vassallo. “Fui processado, intimidado extrajudicialmente. Essas pessoas tentaram me cansar a todo custo”.
A cobertura, todavia, não cessou. Nem o suposto esquema de fraude: no dia 11 de abril de 2025, o Metrópoles noticiou que, desde a publicação da primeira reportagem, só uma associação tivera o contrato rescindido com o INSS. Entre abril de 2024 e março de 2025, 21 entidades descontaram R$ 2,1 bilhões de aposentados, uma média de R$ 100 milhões por associação. Àquela altura, a CGU já constatara em uma auditoria que 98% dos aposentados dizia nunca ter autorizado os saques.
A situação finalmente chegou a um ponto de culminância no último dia 23 de abril. Oitocentos agentes da Polícia Federal participaram então de uma megaoperação, cumprindo 211 mandados de busca e apreensão e outros seis de prisão em 13 estados e no Distrito Federal. O seu objetivo foi “combater um esquema nacional de descontos associativos não autorizados em aposentadorias e pensões”. Segundo a Polícia Federal, a maioria das vítimas recebia até um salário mínimo de aposentadoria.
Agentes da Polícia Federal em frente a uma agência do INSS na operação do dia 23 de abril (Foto: Polícia Federal)
O então presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, foi afastado do cargo no mesmo dia da operação por decisão judicial, assim como outros quatro integrantes da cúpula do órgão e um policial federal. Trinta e oito reportagens do Metrópoles foram citadas nos pedidos da PF à Justiça antes da operação. O ministro da Previdência Social, Carlos Lupi, perdeu o emprego no dia 2 de maio.
Desde então, o escândalo das fraudes do INSS é o principal tema do noticiário político brasileiro. De acordo com o TCU, embora tenham começado durante o governo Bolsonaro, os descontos quase quadruplicaram na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O prejuízo político para o governo federal é indiscutível, e na última segunda-feira ele começou a devolver aos aposentados o valor descontado pelas associações.
Após trabalharem praticamente sozinhos durante quase um ano e meio, o repórter Luiz Vassallo e o editor Fabio Leite agora contam com a companhia de centenas de colegas na cobertura do tema. Eles seguem acompanhando os desdobramentos, cobrando das autoridades que não deixem o ressarcimento ficar só na promessa, nem tampouco os culpados escaparem impunes. Entre todos os efeitos de seu trabalho, a devolução do dinheiro aos aposentados é o que lhes dá mais orgulho.
"O mais gratificante – muito mais do que promover toda essa turbulência – é ver que quem foi lesado será ressarcido”, disse Leite. “É muito difícil a pessoa roubada conseguir o dinheiro de volta”.
Vassallo concorda, e diz que “essa é a correção, a cura da doença”. Para ele, é justamente esse tipo de impacto que dá sentido à profissão.
“A gente faz jornalismo justamente para proteger esse tipo de pessoa, quem está mais vulnerável, desse tipo de coisa”, afirmou. “De desmandos vindos de gente que mora nos metros quadrados mais caros de São Paulo e acha que pode fazer o que fez”.