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Como jornalistas de 10 países investigaram o crime organizado na Amazônia em memória de Dom Phillips e Bruno Pereira

A primeira cena do trailer do Projeto Bruno e Dom mostra o momento em que membros da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) encontram a carteira de imprensa do jornalista britânico Dom Phillips soterrada na lama na beira do rio Itaquaí, em Atalaia do Norte, no estado brasileiro do Amazonas. A imagem simboliza os esforços dos mais de 50 jornalistas envolvidos no projeto que honra o legado do jornalista e do indigenista brasileiro Bruno Pereira ao expor as atividades ilegais nessa área deflagrada na fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, onde os dois foram assassinados em 5 de junho de 2022.

projeto, liderado pela organização francesa Forbidden Stories, foi ao ar no dia 1o de junho e contou com 16 meios jornalísticos em 10 países: Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Amazônia Real, Folha de S.Paulo, Repórter Brasil e TV Globo, do Brasil; Ojo Público, do Peru; Der Standard, da Áustria; Expresso, de Portugal; Le Monde, da França; NRC, da Holanda; Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP), dos Estados Unidos; Paper Trail Media, da Alemanha; Tamedia, da Suíça; e The Bureau of Investigative Journalism e The Guardian, do Reino Unido.

Jornalistas desses meios investigaram ao longo do último ano o contexto e as circunstâncias que culminaram nos assassinatos de Phillips e Pereira, como o fortalecimento do crime organizado, atuante em atividades ilegais diversas como pesca, garimpo e desmatamento na Terra Indígena Vale do Javari. Quando foi morto, Phillips acompanhava Pereira, reconhecido especialista dedicado à proteção de indígenas isolados, enquanto realizava pesquisas para um livro que estava escrevendo sobre desenvolvimento sustentável na Amazônia.

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Equipe da Amazônia Real com habitantes da Terra Indígena Vale do Javari. Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real

Cada meio produziu e publicou conteúdo original com base nas investigações realizadas pelos repórteres em campo e nas redações e compartilhadas entre os parceiros do projeto. Muitos também republicaram as reportagens produzidas pelos colegas, inclusive traduzindo-as para outros idiomas, como fizeram Amazônia RealOjo Público.

Laurent Richard, fundador e diretor-executivo da Forbidden Stories, disse à LatAm Journalism Review (LJR) que o projeto tomou forma logo após a confirmação de que Phillips e Pereira haviam sido mortos, dez dias depois de eles terem desaparecido. A organização se dedica a continuar o trabalho de jornalistas assassinados, explicou ele, porque esses assassinatos sempre acontecem porque os jornalistas estavam investigando histórias importantes.

“Nossa missão é garantir que a história não desapareça com o jornalista, informar a opinião pública e fazer com que se saiba qual era a história pela qual o jornalista foi assassinado, qual era a história que [assassinos] tentaram silenciar. (...) A longo prazo, queremos dissuadir assassinos e agressores de jornalistas para que não façam mais isso, porque acaba sendo contraproducente”, disse Richard.

‘Jornalismo fez o que a polícia não fez’

A cena que abre o trailer do projeto foi captada pela equipe de filmagem do documentário “Vale dos Isolados: o assassinato de Bruno e Dom”, dirigido pela jornalista Sônia Bridi, da TV Globo, e disponibilizado na plataforma Globoplay. Bridi disse à LJR que o momento foi registrado em outubro de 2022, quatro meses depois dos assassinatos.

Munidos de um detector de metais, membros da Equipe de Vigilância da Univaja (EVU) encontraram também as carteiras de identidade de Phillips e Pereira, cadernos de anotação do jornalista e o celular do indigenista, que tem as últimas fotos dos dois, feitas momentos antes de eles serem assassinados.

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Uma das últimas fotos de Dom Phillips (à direita), tirada por Bruno Pereira e encontrada no celular recuperado pela EVU. Foto: Bruno Pereira / Projeto Bruno e Dom

 

O detector de metais foi cedido pela equipe do documentário, por solicitação dos membros da EVU, contou Bridi. Eles queriam encontrar a arma de Pereira, pois temiam que ela fosse encontrada por criminosos da região e usada para matar alguém.

“Nós perguntamos à perícia da Polícia Federal qual seria o detector certo, e o levamos e entregamos para eles. E fomos junto, pois sabíamos que podia acontecer alguma coisa”, disse Bridi.

A arma não foi encontrada, mas o resgate dos pertences pessoais do jornalista e do indigenista foi um momento muito forte para todas as pessoas presentes, contou ela.

“Eu também sou jornalista que trabalha na Amazônia, eu já encontrei Dom lá. Quando eu vi a carteirinha de imprensa do Dom [resgatada na lama], o crime fica tão gráfico, o assassinato de um jornalista… Todo o momento foi muito triste. Todo mundo estava ali procurando, alguém falava ‘olha, tem tal coisa aqui’, e ficava um silêncio. Foi um momento triste e respeitoso. Mas, para mim, o momento mais triste foi quando encontraram os cadernos [de Phillips]”, disse Bridi.

Eduardo Nunomura, editor de projetos especiais da Amazônia Real, disse à LJR que considera esse o “grande furo” do Projeto Bruno e Dom.

“O jornalismo foi capaz de fazer o que a polícia não fez”, disse Nunomura, que coordenou a participação da Amazônia Real no projeto. “Eles não acharam o celular [de Pereira], quem achou foram os indígenas. (...) Quem encontrou foram os indígenas porque eles conseguiram um detector de metal com a Globo, que teve espaço franqueado para acompanhar essas buscas. Temos o dever de tornar público e transparente o jornalismo. Quanto mais explicarmos o jornalismo para a sociedade, mais vamos conseguir mostrar nossa importância”, afirmou.

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Equipe da Amazônia Real e jornal Expresso durante reportagem na Terra Indígena dos Apurinã. Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real

Apesar da descoberta da equipe do documentário, Nunomura disse que logo no começo do projeto os jornalistas envolvidos se deram conta de que não se tratava de buscar um furo jornalístico. Tratava-se, na verdade, de continuar o trabalho de Phillips de contar sobre os problemas da Amazônia e suas possíveis soluções.

“Toda a cobertura que ele [Phillips] fez do garimpo em terras indígenas, por exemplo, era sempre pensando o seguinte: existe o problema, mas como vamos resolver esse problema? Ele falava que não podemos olhar para o garimpeiro como o grande sacana da história. São famílias também. Precisamos compreender, com um olhar mais amplo, por que essa trama econômica, essa lógica destrutiva, vinga na Amazônia. Não podemos perder de vista que grande parte das pessoas que estão lá não são de lá. Elas chegaram de outras regiões e não têm uma relação de pertencimento com a Amazônia como têm as populações indígenas. Mesmo os ribeirinhos, que são pescadores, têm uma relação predatória com a Amazônia. E essa é uma questão que temos que discutir”, disse Nunomura.

‘Você está buscando sua morte’

A Amazônia Real, meio brasileiro que é referência na cobertura da região amazônica, se destacou na cobertura a quente dos assassinatos de Pereira e Phillips por sua rede de contatos entre os indígenas, que foram quem lideraram as buscas pelo indigenista e pelo jornalista após seu desaparecimento. Para o Projeto Bruno e Dom, produziram três reportagens especiais: "Os guerreiros do Médio Javari", escrita por Elaíze Farias com fotos de Bruno Kelly; "A fome pelo ouro do rio Madeira", escrita por Francisco Costa com fotos de Bruno Kelly; e "Uma BR-319 no meio do caminho", escrita por Leanderson Lima com fotos de Alberto César Araújo.

Ao ser convidada para participar do projeto, Amazônia Real sugeriu chamar o meio peruano Ojo Público, que também vem se dedicando à cobertura da região onde Pereira e Phillips foram assassinados.

“Para nós, foi muito importante [participar do projeto], porque esta zona do Vale do Javari, compartilhada com o Brasil, que tem uma amplitude de territórios protegidos, coincide com o Vale do Javari peruano”, disse Nelly Luna, cofundadora e diretora de Ojo Público, à LJR. “Nessa zona, nos últimos anos, o Peru viu aparecer uma explosão de cultivos ilegais de folha de coca, e também a presença de grupos armados vinculados ao narcotráfico, à invasão de terras para o cultivo de coca e outros insumos, deixando em seu lugar muitas ameaças contra os povos indígenas que vivem nessa parte da fronteira”, afirmou.

A reportagem produzida por Ojo Público para o projeto trata da “tríplice fronteira da pesca ilegal” na região: como o pescado retirado ilegalmente de terras indígenas no Brasil atravessa as fronteiras do Peru e da Colômbia e entra no mercado formal. Como aponta a reportagem, autoridades do Brasil e do Peru sustentam que o narcotráfico está por trás do financiamento da pesca ilegal.

Luna contou que o repórter Rodrigo Pedroso e o fotógrafo Alex Rufino, que realizaram a reportagem de Ojo Público, foram alvo de intimidação e ameaças diversas vezes enquanto estavam em campo – evidência de que o cenário de insegurança e riscos para jornalistas que atuam na região pouco mudou desde o assassinato de Phillips e Pereira.

“Inicialmente pensávamos em fazer um vídeo da rota da pesca, mas em todo momento houve olhares e ameaças bastante diretas por conta da câmera e dos equipamentos. Então decidimos não expor a equipe e não gravar naquela situação”, disse ela.

“Nossa ideia era reconstruir a rota do pescado extraído ilegalmente que termina sendo lavado no mercado formal. E quando [o repórter] chegou a um dos containers dessas empresas com câmaras frigoríficas que estão em Letícia [Colômbia] e perguntou se lhe podiam mostrar o pescado, como chegava, uma pessoa diretamente lhe disse que ele estava buscando sua morte”, contou Luna.

Segundo ela, os profissionais trabalhavam sob um protocolo de segurança e logo após esse episódio decidiu-se que era necessário que encerrassem a viagem e voltassem para Manaus, capital do estado do Amazonas, no Brasil, onde estavam baseados.

Investigações compartilhadas

Muitos dos meios envolvidos no Projeto Bruno e Dom enviaram repórteres para a Amazônia para realizar investigações no terreno. A apuração em campo e desde as redações era compartilhada entre todos e debatida em reuniões virtuais realizadas periodicamente ao longo do último ano.

“Compartilhamos datas de viagem, achados das investigações, entrevistas… Todo o material bruto foi compartilhado durante esse tempo com a ideia de que cada meio poderia pegar o que outro também estava cobrindo, entrevistando, recolhendo de dados e claro, citando os devidos créditos nas histórias. Mas, no final, cada meio tinha a liberdade para fazer sua própria história com base no conteúdo compartilhado”, disse Luna.

Richard lembrou que essa disposição para o jornalismo colaborativo nem sempre é algo natural para repórteres acostumados à competição pela exclusividade.

“[Nos projetos da Forbidden Stories] precisamos de pessoas que realmente acreditem no jornalismo colaborativo, o que não é tão fácil. Você tem que compartilhar seu trabalho em andamento com seus parceiros. Às vezes, eles são seus concorrentes há muito tempo e voltarão a ser seus concorrentes amanhã, mas você vai ter que trabalhar em estreita colaboração com todos os jornalistas [no projeto]”, disse ele.

Bridi disse acreditar que “jornalismo colaborativo é o futuro do jornalismo”. Além do documentário, realizado pela Globoplay, ela também produziu pela TV Globo uma investigação sobre a retirada ilegal de madeira de terras indígenas em área amazônica no estado brasileiro do Mato Grosso.

“Todos nós gostamos de dar furo. Mas jornalismo é um negócio caro, que demanda dinheiro e tempo. Então quando você une forças, visões e abordagens diferentes, você tem um processo muito mais rico. E um resultado imensamente mais rico”, disse ela.

Memória e impacto

Três homens estão presos pelos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips: Amarildo da Costa de Oliveira e Oseney da Costa de Oliveira, que são irmãos, e Jefferson da Silva Lima. Eles confessaram o crime dias depois do desaparecimento do indigenista e do jornalista e levaram a polícia até onde haviam escondido os corpos.

Ruben Villar, conhecido como Colômbia, é apontado como o mandante do crime. Ele foi preso em julho de 2022 por falsidade ideológica e indiciado pelos assassinatos de Pereira e Phillips em maio, segundo reportagem do Fantástico, da TV Globo. Jânio Freitas de Souza também foi indiciado por participação no crime.

De acordo com a polícia, Villar é o líder de uma organização criminosa que financia a pesca ilegal e os pescadores Amarildo Costa de Oliveira e Jânio Freitas de Souza estão abaixo dele na organização.

A polícia registrou mais de 400 ligações entre os acusados, inclusive na data do crime, antes e depois da execução de Pereira e Phillips. As ligações seriam evidência de que se tratou de um crime premeditado.

No dia 8 de maio, Amarildo da Costa de Oliveira e Jefferson da Silva Lima apresentaram nova versão para o crime. Durante audiência para decidir se eles devem ir a júri popular pelos assassinatos, eles disseram que Pereira atirou primeiro e que eles atiraram contra Pereira e Phillips em “legítima defesa”. A defesa dos acusados também divulgou informações falsas sobre a exoneração de Pereira de um cargo da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que foram repudiadas pela própria agência indígena, conforme reportou a Veja.

Observatório dos Povos Indígenas Isolados (OPI) classificou como “fantasiosa” a nova versão apresentada pelos acusados. “Ao alegarem que se defenderam de disparos, os assassinos confessos agora tentam esconder o fato, comprovado pela perícia, de que Bruno Pereira levou o primeiro tiro pelas costas. Pretendem fazer esquecer que fizeram uma emboscada contra suas vítimas”, afirmou o OPI em comunicado. A organização também repudiou o que considera uma tentativa “de manchar a memória [das vítimas] como estratégia de defesa”.

Sônia Bridi disse esperar que seu documentário, primeiramente, ajude a “formar um escudo contra essa tentativa de assassinato moral contra as vítimas” por parte dos acusados pelo crime.

“A segunda coisa é manter viva essa memória. O Brasil tem uma produção tão grande e tão rápida de tragédias e de crimes que um vai enterrando a memória do outro. Mas nós temos que reavivar a memória desse crime. Ele não pode ser esquecido. Também gostaria que as pessoas entendessem o que está em jogo lá, entendessem por que Bruno morreu, por que Dom morreu, o que eles estavam fazendo lá, o que e quem eles estavam defendendo”, disse ela.

Nelly Luna disse desejar que as reportagens do Projeto Bruno e Dom ajudem a promover “maior conhecimento do estado de abandono em que se encontra essa parte da fronteira” e chamar a atenção das autoridades de Brasil e Peru, assim como das populações dos dois países, para o que está acontecendo naquela região.

“Embora a Amazônia esteja se convertendo em um cenário pavoroso do crime organizado, os assassinatos de Dom Phillips e Bruno Pereira devem nos fazer refletir sobre todas as cadeias de responsabilidades em torno disso. O crime organizado é um ator violento, mas temos que nos perguntar onde vão parar esses produtos que são extraídos de maneira ilegal. Há uma responsabilidade do mercado [formal] também na forma em que se está permitindo a lavagem desses produtos, porque parte do peixe acaba alimentando a população local, claro, mas outra parte acaba em restaurantes de luxo e em cadeias de exportação”, disse ela.

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