Por Rafaela Sinderski, publicado originalmente pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)
Ser jornalista em contextos politicamente polarizados significa correr riscos, especialmente quando se é mulher e/ou LGBTQ+. Em 2022, ano de uma das eleições mais acirradas do Brasil, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) registrou 557 casos de agressão contra profissionais da imprensa, 26% envolvendo algum tipo – mais ou menos explícito – de violência de gênero. Desse grupo, 5% foram categorizados como episódios de violência sexual, tendo 57,1% se passado na internet. Os dados são do monitoramento de ataques gerais e violência de gênero contra a imprensa feito pela Abraji, em parceria com a rede latino-americana Voces del Sur (VdS).
No ano passado, o monitoramento registrou como violência sexual ameaças de estupro e casos de importunação e assédio online e offline. Foram sete episódios do tipo ao longo de 2022 – isso significa que, em sete situações diferentes, jornalistas foram vítimas de agressões com caráter sexual enquanto tentavam fazer seu trabalho.
Era por volta de 7h da manhã do dia 14 de setembro de 2022 quando Maria Fernanda Passos ouviu um áudio que recebeu por mensagem direta no Instagram e que mudou o curso do seu dia. A jornalista do Diário do Centro do Mundo (DCM) recebeu ameaças de morte e estupro vindas de um perfil com o nome “Júlio Bordieri”, suposto morador de Porto, em Portugal – segundo informações da conta já apagada.
No áudio, a voz bradava ofensas à comunicadora, questionava suas capacidades cognitivas e ameaçava violentá-la. Ameaçar sua família foi outra forma de intimidação usada pelo agressor – “Vou te estuprar, te matar e matar sua família”, dizia na mensagem. O ataque, motivado por um texto de opinião sobre as eleições presidenciais, impactou a vida pessoal e profissional de Passos de maneiras que ainda podem ser sentidas por ela.
“Foi uma violência bem dura. Eu tentei ressignificar, não fazer o que ele queria – que era que eu recuasse, me calasse. Pelo contrário, continuei com mais força. Mas eu fico com medo. Eu trabalho com medo”, conta a jornalista. A mensagem agressiva foi uma entre tantas outras que recebeu durante o período eleitoral. Passos foi xingada diversas vezes em suas redes sociais – com ofensas que foram de “jornalista de merda” a “volta para o esgoto”. A violência até parecia “parte do jogo”, um preço a pagar por seu trabalho jornalístico e pelo posicionamento político. Mas as ameaças que ouviu naquela manhã de setembro atingiram outras proporções e atravessaram novos limites. “Depois disso, segui recebendo ataques. Isso me deixava um pouco em pânico. Não acho que me autocensurei [no trabalho, depois do áudio], mas cada vez que eu postava algo me dava medo de ouvir aquilo de novo”.
O agressor nunca foi identificado, apesar de a jornalista ter prestado queixa e feito boletim de ocorrência. Dados da Abraji mostram que 97% das agressões de gênero registradas em 2022 vitimaram mulheres, cis e trans, e 58,2% tiveram origem ou repercussão na internet. No que diz respeito à violência sexual, mais da metade (57,1%) ocorreu de forma online. Todas as vítimas de agressões sexuais identificadas no ano passado são mulheres.
De acordo com a professora Daniela Osvald Ramos, do Departamento de Comunicação da Universidade de São Paulo (USP), o ambiente digital tem o potencial de intensificar a violência de gênero: "[As agressões] sempre existiram de alguma maneira, mas agora encontram um meio de proliferação em escala, volume e intensidade muito maiores", afirma.
Vinculada ao Núcleo de Estudos da Violência da USP, Ramos defende que a intimidação online não é só mais uma expressão cotidiana de machismo, mas uma forma sistemática de afastar mulheres e pessoas LGBTQIA+ jornalistas do espaço público, diminuindo a diversidade de vozes dentro e fora da internet. “Geralmente, a reação de quem não vive essa realidade [de ser alvo de violência de gênero online] é a sugestão de uma saída ‘simples’: deixar as redes sociais. Isso revela como o espaço público continua a ser negado a mulheres que têm vida pública e opiniões próprias, um reforço do patriarcado em pleno século 21.”
Uma pesquisa publicada pela Abraji em dezembro de 2022 revelou padrões misóginos no tratamento de mulheres jornalistas após as eleições presidenciais. Os dados constataram que o uso dos termos “vaca”, “vadia” e “vagabunda” para ofendê-las no Twitter cresceu 300% em comparação com os 40 dias anteriores ao início da campanha eleitoral, que começou em 16 de agosto. Para a professora Ramos, esses ataques já se tornaram algo institucionalizado. “Infelizmente, nos últimos quatro anos, o cidadão brasileiro ‘aprendeu’ a hostilizar e atacar jornalistas em geral – e mulheres em específico –, seguindo o exemplo do ex-presidente da República, de seus seguidores e familiares”, lamenta. Como reverter esse cenário? Segundo ela, é preciso regulamentar plataformas de redes sociais, focar em educação midiática, combater a violência de gênero e punir exemplarmente casos graves de agressão e ameaças no ambiente digital. Mais ou menos nessa direção, há o Projeto de Lei nº 2630/2020, chamado PL das Fake News, que atualmente tramita no Congresso Nacional e busca meios de regulamentar conteúdos postados nas redes sociais.
Em março de 2022, durante o lançamento do primeiro relatório da Abraji sobre violência de gênero contra trabalhadores da imprensa, a ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lucia, destacou como os ataques a mulheres jornalistas não são demonstrações individuais de violência: “Esses ataques são direcionados contra a verdade dos fatos, o princípio da justiça e a prática da democracia”.
O efeito da violência de gênero nas vítimas, ampliada em seu alcance e intensidade pelas ferramentas da internet, é pervasivo e afeta profundamente sua saúde física e mental. Para Vanessa Lippelt, jornalista especializada em cobertura política, as ameaças que recebeu há cerca de um ano ainda fazem eco em seu dia a dia. “Ainda estou sofrendo com tudo isso”, afirma.
Em junho de 2022, quando era editora de um portal jornalístico focado em assuntos políticos, Lippelt recebeu ameaças de morte e estupro via e-mail. A mensagem foi motivada por matérias sobre fóruns virtuais que se mobilizavam para produzir conteúdo desinformativo em prol do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O texto agressivo contra ela foi acompanhado da foto de um revólver e dos dados pessoais da jornalista. Suas filhas, menores de idade, também foram alvos de ameaças. “Eles violam nossos corpos, nossa identidade, vão naquilo que é mais caro à mulher, que são os filhos. É cruel porque eles sabem onde dói. É um ódio muito grande. É como se quisessem dizer que não podemos estar onde estamos, que temos que nos recolher à nossa insignificância como mulher”.
Segundo o relatório “The Chilling: Global trends in online violence against women journalists”, estudo global do Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ, na sigla em inglês) e da UNESCO publicado em 2022, ofender, agredir e ameaçar familiares de mulheres jornalistas é um artifício comum, usado para intimidá-las, interromper suas investigações e calar suas vozes. Outra característica da violência de gênero contra comunicadoras é que ela não é pontual, mas sistêmica. Além da agressão em si, mulheres jornalistas precisam enfrentar a revitimização causada pela reprodução irresponsável ou descuidada de informações que envolvem os episódios, a falta de suporte das empresas para as quais trabalham, a omissão das plataformas de redes sociais e, consequentemente, a impunidade de seus agressores.
Lippelt viveu e reviveu esses diferentes estágios de violência depois do ataque. De acordo com o jornal Metrópoles, em abril de 2023, a Justiça brasileira determinou uma multa diária de R$ 100 mil à Google por se recusar a fornecer informações sobre os e-mails ameaçadores. A Polícia Civil do Distrito Federal identificou o suspeito como um jovem de 23 anos, mas a corporação não quis divulgar seu nome. “Como a gente convive com isso? Eu tenho que lidar até hoje com a polícia, porque quero que a pessoa [que fez as ameaças] seja punida. Mas, mesmo depois da solução, vão ficar as sequelas. Fica o medo. Não me arrependo da matéria e continuo trabalhando, mas de outra forma. Passo todas as informações que tenho, mas não me exponho mais”, diz.
Sobre as sequelas que perduram, ela explica: “Você passa a viver ansiosa, a temer algumas coisas. Eu tenho pavor de atender telefone. Quando me ligam de um número desconhecido, eu não atendo. Tive que colocar vários filtros na minha caixa de e-mail para não receber mais alguns tipos de mensagem. Tranquei e perdi minhas contas pessoais do Instagram e do Facebook. O que resta? Resta aprender a lidar com isso”.
Como forma de combater a violência de gênero online, o projeto “Segur@s en Línea” coleta e analisa dados sobre o tema em países da América Central e na República Dominicana, além de oferecer assessoria legal inicial para que as vítimas possam procurar – e encontrar – justiça. Silvia María Calderón López, analista de políticas públicas do Instituto Panamericano de Derecho y Tecnología (IPANDETEC), organização responsável pelo projeto, ressalta a importância de discutir o tema, especialmente em territórios da América Latina. “As legislações na América Central não têm uma tipificação específica para violência digital. Ela é invisibilizada. Por isso, nosso principal objetivo é reunir dados sobre assédio e violência digital que mulheres e outros grupos vulneráveis podem sofrer”.
O grupo entende como violência digital quaisquer “agressões cometidas com o auxílio parcial ou total das Tecnologias de Informação e Comunicação”. No Brasil, há duas leis que tipificam delitos na internet, ambas sancionadas em 2012: a Lei dos Crimes Cibernéticos (12.737/2012), conhecida como Lei Carolina Dieckmann, sobre invasão de dispositivos informáticos; e a Lei 12.735/12, que estabeleceu as delegacias especializadas em crimes digitais. Também há o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), sancionado em 2014, que regula o acesso e a divulgação de dados pessoais online. Ainda assim, casos como os de Maria Fernanda Passos e Vanessa Lippelt seguem sem resolução, mesmo que a violência que tenham sofrido seja passível de condenação segundo o artigo 147 do Código Penal, que trata de ameaças e violência psicológica contra a mulher.
A advogada Rita Mitre, também integrante do IPANDETEC, conta que plataformas como o Twitter também são espaços de ataques a jornalistas em países da América Central. “Com frequência, jornalistas compartilham informações de interesse público e são vítimas de desprestígio online. Isso é uma tentativa de desvirtuar o profissional e de atacar a liberdade de imprensa”, garante. Para ela, a subnotificação é um dos maiores obstáculos enfrentados por quem luta contra esses ataques online. “Quando falamos de violência digital de gênero, vergonha e medo entram em jogo”.
María Elena García, tesoureira do IPANDETEC, completa o raciocínio: “É importante que as vítimas saibam que não estão sozinhas, que podem denunciar e receber ajuda legal de organizações que trabalham com isso. Também é preciso fazer uso seguro da internet e das redes sociais”.
Dicas de segurança digital da equipe do Segur@s en Línea:
Violência política, de gênero e digital no Brasil em 2023
A Abraji lançou, durante o 18º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, o relatório “Silenciando o mensageiro: os impactos da violência política contra jornalistas no Brasil”, com dados de ataques à imprensa durante os primeiros meses de 2023. Para saber mais, acesse este link sobre o relatório.
*Rafaela Sinderski é jornalista de dados e pesquisadora na Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).