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Consórcio de veículos formado para divulgar dados da COVID-19 no Brasil se encerra com legado de colaboração e transparência

“Acabou matéria do Jornal Nacional.” Assim Jair Bolsonaro, então presidente do Brasil, respondeu em 5 de junho de 2020 a jornalistas que questionaram o atraso na divulgação dos dados sobre a pandemia de COVID-19. Na primeira semana de junho de 2020, quando o Brasil marcava novos recordes de mortes pela doença a cada dia, o Ministério da Saúde passou a publicar cada vez mais tarde os números diários da pandemia no país. O atraso inviabilizava a divulgação dos dados em telejornais do começo da noite, como o Jornal Nacional, da TV Globo, e em jornais impressos do dia seguinte.

Além do atraso, naquele dia 5 de junho de 2020 o governo federal chegou a tirar do ar o portal de divulgação dos dados. Quando voltou ao ar, quase 20 horas depois, o portal passou a apresentar apenas as mortes e os casos registrados nas últimas 24 horas, além de dar destaque a um número diário de “recuperados” da COVID-19. Deixaram de aparecer no portal o total acumulado de mortes e casos registrados desde o começo da doença no Brasil, assim como a distribuição regional dos dados e a taxa de letalidade. Também desapareceu a opção de baixar os dados completos em formato acessível.

A declaração do então presidente evidenciou que uma das intenções do governo ao mudar a forma de divulgação dos dados era prejudicar o trabalho da imprensa. Diante de uma crise sanitária sem precedentes, e com o Brasil rapidamente galgando posições no ranking mundial de casos e mortes por COVID-19, o governo federal agiu para esconder a realidade da pandemia no país. Seis meios de comunicação brasileiros responderam estabelecendo um consórcio colaborativo dedicado à transparência na divulgação dos dados da COVID-19 pelos 965 dias seguintes, entre 8 de junho de 202028 de janeiro de 2023.

O consórcio de veículos de imprensa uniu jornalistas dos portais online g1UOL e dos jornais O Estado de S. PauloExtraFolha de S. PauloO Globo, cujos diretores articularam a colaboração nos dias seguintes ao primeiro apagão de dados da COVID-19 promovido pelo governo.

“Os números [divulgados pelo Ministério da Saúde] não eram mais confiáveis. Não sabíamos mais se estávamos informando a verdade ou não”, disse Marcos Sergio Silva, chefe de reportagem do UOL, à LatAm Journalism Review (LJR). Segundo ele, no UOL começou-se a debater alternativas aos números do governo federal, como levantar os dados junto a cada Estado ou recorrer ao Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), que vinha publicando os dados informados pelas Secretarias estaduais de Saúde.

Silva disse que, ao ser informado pela diretoria do UOL sobre as conversas para estabelecer uma apuração colaborativa entre os seis meios, se colocou em contato com jornalistas das outras redações. Um deles era Daniel Bramatti, editor do Estadão Dados, núcleo de jornalismo de dados do jornal O Estado de S.Paulo.

table with data on covid-19 in Brazil

O último boletim do consórcio de veículos de imprensa (Divulgação)

“A partir do momento em que as direções decidiram fazer essa resposta conjunta a esse apagão de dados, em cada redação diferentes jornalistas foram incumbidos de fazer a colaboração funcionar”, disse Bramatti à LJR. “Ajudou muito o fato de que jornalistas que mexem com dados já têm um certo entrosamento, mesmo trabalhando em lugares diferentes. Esses jornalistas de dados normalmente se conhecem e convivem em eventos e fazem cursos juntos ou em comum, e mantêm uma comunicação no mundo real e no mundo online que os aproxima.”

Segundo Bramatti, por conta desse entrosamento prévio, “foi muito rápido formar um grupo e um método de trabalho”, que consistia no uso de uma planilha colaborativa do Google Docs, compartilhada e atualizada pelos jornalistas envolvidos na apuração dos dados. Cada meio de comunicação ficou responsável por levantar os dados de cinco ou seis estados brasileiros junto às suas Secretarias de Saúde.

O primeiro boletim feito pelo consórcio, publicado às 20h do dia 8 de junho de 2020, trouxe o número de mortes e casos registrados de COVID-19 no Brasil e em cada estado nas 24 horas anteriores, assim como o total acumulado de casos e mortes desde o começo da doença, que havia desaparecido do portal de divulgação do Ministério da Saúde. Também informou as 20 cidades com maior mortalidade e com mais casos registrados no período e a taxa de ocupação de leitos de UTI em cada estado, entre outros dados.

“Foi um momento muito emocionante, no dia 8 de junho, quando ali na hora eu estava vendo algo histórico e importante: nossa equipe fazendo frente à falta de transparência de quem deveria fornecer [os dados]”, disse Silva.

Bramatti comentou que, num primeiro momento, um problema enfrentado pelas equipes foi a discrepância no padrão de divulgação dos dados por cada estado. “Havia diferenças de horário, alguns demoravam mais para divulgar, alguns não tinham divulgação diária”, disse ele. Os jornalistas foram conversando com os órgãos estaduais e com o Conass explicando a necessidade de padronizar os dados, e segundo Bramatti, “quase todos [os pedidos em relação à divulgação dos números] foram aceitos”.

Person standing in front of a screen showing Covid-19 vaccination data in Brazil

Dados levantados pelo consórcio apresentados em telejornal da TV Globo (Reprodução/TV Globo)

Com o início da vacinação contra a COVID-19 no Brasil, em janeiro de 2021, o consórcio incluiu no boletim também os dados sobre o avanço da cobertura vacinal: número de pessoas vacinadas e com qual dose entre pessoas com comorbidades, público em geral, pessoas com menos de 18 anos, crianças, e bebês.

“O trabalho na verdade foi ficando mais complexo com o tempo”, disse Bramatti. “Cada vez tinha mais dado para coletar e divulgar. Cada veículo se preparou e se adaptou de uma maneira. Por exemplo, no Estadão, procuramos fazer rotinas automatizadas de coleta sempre que possível. Sempre que os dados eram publicados de uma maneira que permitia a leitura deles por máquina, nós fazíamos essa coleta também de forma automatizada”, por meio de funções na planilha do Google Sheets que raspavam os dados nos sites dos Estados, explicou ele.

‘Salvo-conduto’ para divulgação dos dados

Silva e Bramatti explicaram que os dados coletados pelo consórcio junto aos estados eram os mesmos repassados ao Ministério da Saúde para que fossem divulgados pelo governo federal. Segundo o chefe de reportagem do UOL, a ideia “não era competir com o governo federal ou com o Conass”. “Na verdade, o consórcio foi uma espécie de ‘salvo-conduto’, para que os números da doença continuassem sendo divulgados”, disse Silva.

“O consórcio teve como objetivo evitar que o governo federal deixasse de apresentar os dados do sistema [do Ministério da Saúde], que era alimentado pelos municípios e pelos Estados”, disse Bramatti. “O Ministério da Saúde, naquele momento, era o ‘centralizador’ dos dados, e eles [o governo Bolsonaro] tentaram se arvorar no direito de dificultar o trabalho da imprensa e de deixar a população menos esclarecida sobre o que estava acontecendo, no escuro. O consórcio reagiu a isso e foi atrás dos dados nos estados que alimentavam o sistema, portanto eles podiam pegar esses dados e passar para o consórcio, sem que isso tivesse que ser de alguma maneira autorizado ou que dependesse do Ministério da Saúde”, explicou ele.

No dia seguinte ao primeiro boletim divulgado pelo consórcio, o Supremo Tribunal Federal determinou que o Ministério da Saúde restabelecesse a divulgação diária dos dados sobre a pandemia da COVID-19, em sua integralidade e nos termos em que vinham sendo apresentados até o dia 4 de junho de 2020.

Ainda assim, o consórcio seguiu coletando os dados diariamente até o último dia 28 de janeiro, completando dois anos e sete meses de trabalho ininterrupto.

“Existia o risco de a qualquer momento o presidente [Bolsonaro] ou o ministro da Saúde mudar de ideia e decidir que não iriam divulgar os dados”, explicou o editor do Estadão. “O consórcio foi criado como resposta a uma ameaça de apagão de dados, e ele acaba no momento em que essa ameaça praticamente deixa de existir, com as novas autoridades que tomam posse [em 1o de janeiro de 2023, sob o presidente Luiz Inácio Lula da Silva] e que não mostram nenhuma intenção ou tendência de procurar esconder os dados reais da pandemia da população”, disse ele.

No entanto, caso essa tendência se altere e o atual governo reduza o nível de transparência nos dados da COVID-19 no Brasil, o consórcio deve voltar, afirmou Bramatti. “[O consórcio] foi formado para defender um princípio, que é o princípio da transparência, e todos os governos devem ser transparentes. Quando um governo não é transparente, deve haver uma resposta da imprensa, se possível conjunta, para que o problema se resolva”, disse ele.

Valor da transparência e da colaboração

Para o editor do Estadão Dados, a principal lição deixada pelo consórcio trata de fato do valor da transparência, especialmente em relação a uma crise sanitária da magnitude da pandemia de COVID-19. Somente no Brasil, até o dia 13 de fevereiro de 2023, pelo menos 697.674 pessoas morreram da doença. O país, que tem 2% da população mundial, concentra até o momento 10% do total de mortes causadas pelo vírus SARS-CoV-2 em todo o mundo.

“É preciso agir cada vez que os governos tentarem de alguma maneira dificultar o acesso a informações que deveriam ser públicas e que nem sempre são, informações que têm valor para a sociedade, em uma pandemia. Se as pessoas não sabem o que está acontecendo no dia a dia da pandemia, elas têm menos chances de fazer uma avaliação de risco e podem tomar decisões erradas, com consequências diretas para sua vida e para a vida da sua família. Uma decisão errada numa pandemia pode levar inclusive à morte de alguém. Então é muito importante que os dados sejam todos públicos”, disse Bramatti.

Outra lição deixada pelo consórcio diz respeito ao valor do trabalho colaborativo. Nesse caso, trata-se da colaboração entre veículos concorrentes entre si, que se uniram no contexto extraordinário da pandemia de COVID-19 e de um governo negacionista para cumprir sua missão de informar. Esse valor foi reconhecido pela Associação Nacional de Jornais (ANJ), que em dezembro de 2021 deu o Prêmio ANJ de Liberdade de Imprensa ao consórcio de veículos de imprensa e ao Comprova, projeto colaborativo de checagem contra a desiformação que reúne 24 meios de comunicação brasileiros.

Segundo Bramatti, pelo menos 113 pessoas trabalharam no consórcio em algum momento.

“Nenhuma das redações isoladamente teria condições de fazer essa coleta todos os dias nas 27 secretarias estaduais [de Saúde]. Isso daria um trabalho gigantesco, envolveria uma equipe muito grande e possivelmente seria inviável fazer esse trabalho de forma isolada. Quando há cinco ou seis veículos envolvidos, o trabalho é compartilhado, e as informações ao serem compartilhadas são inclusive checadas por mais gente”, disse ele, destacando que em mais de uma ocasião foi possível identificar imprecisões nos dados e evitar a divulgação de informações errôneas devido aos muitos olhos envolvidos no trabalho.

Silva sublinhou também que o trabalho no consórcio foi desenvolvido em “um processo muito democrático”, de conversas compartilhadas e comum acordo na tomada de decisões. “As vaidades foram deixadas de lado. Não existia o maior ou o menor [veículo] dentro do consórcio. (...) Se uma pessoa tinha alguma dificuldade para mexer na planilha, sempre outra pessoa estava disposta a ajudar”, afirmou.

Bramatti disse esperar que o legado do consórcio seja a valorização do trabalho colaborativo entre redações.

“Espero que isso permita que no futuro, quando houver pautas de interesse público e coberturas que sejam difíceis de fazer com poucas pessoas, que a forma de trabalho colaborativa seja de novo contemplada. Quando há interesse público envolvido, às vezes a concorrência entre veículos não faz muito sentido. É melhor juntar forças, trabalhar junto, em busca de um resultado, do que concorrer e muitas vezes nem conseguir arranhar a superfície de um tema complexo ou de uma montanha de dados que é muitas vezes inatingível e impossível de analisar se não tiver muita gente trabalhando em cima”, disse ele.

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