Antes de lançar o Gigantes uma publicação mensal voltada para crianças, o jornal uruguaio la diaria fez uma pesquisa com sua base de leitores para descobrir se havia uma necessidade para o produto.
Na Argentina, o site Cenital começou com uma newsletter, para entender o que interessava a suas audiências. Hoje em dia, os boletins temáticos ainda são sua principal forma de comunicação, e cada um deles é pensado para alcançar um público específico.
Já a Rádio Novelo, no Brasil, utiliza o seu principal programa, o Rádio Novelo Apresenta, para construir uma comunidade por meio de seus episódios semanais, enquanto, em paralelo, tocam outras atividades que se beneficiam dessa principal.
Segundo Ana Soffietto, diretora de programas para a América Latina do Media Development Investment Fund (MDIF), todos têm ao menos uma coisa em comum: incorporaram a abordagem de produtos para melhorar o seu desempenho com a audiência.
A abordagem consiste em um conjunto de estratégias e boas práticas que defende a tomada de decisões baseadas em dados e na valorização de ideias testáveis, promovendo uma gestão que busca atender a necessidades pontuais.
De acordo com Soffietto, a chegada da abordagem na América Latina é relativamente recente.
"O mais relevante hoje na região são as organizações que começam a ter esses cargos dentro de seus meios e que começam a pensar desde essa perspectiva", disse Soffietto à LatAm Journalism Review (LJR).
Segundo Joseph Lichterman, do Lenfest Institute for Journalism, e Anika Gupta, da Google Ventures, “um produto pode ser qualquer coisa que um meio de comunicação cria para resolver um problema ou atender a uma necessidade. Um produto eficaz atende a um público-alvo bem definido e geralmente está vinculado a uma forma específica de obter receita”.
No jornalismo, um produto pode ser, por exemplo, uma newsletter, uma revista, um podcast ou uma nova seção de um jornal. Projetos paralelos, como séries de eventos ou livros, também contam.
Adotar a mentalidade de produto no jornalismo implica em uma transformação significativa na maneira como os meios de comunicação abordam a criação e distribuição de conteúdo.
Esta mudança ocorre em um contexto de crise nos modelos de sustentabilidade do jornalismo e maior abundância na oferta de informações, disse Soffietto.
“Antes, fazíamos uma única coisa, não? Por exemplo, produzir conteúdo por meio de um site e publicar matérias sem pensar tanto em como essa audiência consome, qual necessidade da audiência está sendo atendida, qual é a minha audiência. Havia uma maneira mais linear de se comunicar com as audiências”, afirmou ela.
A LJR conversou com três especialistas em busca de dicas fundamentais. Abaixo, apresentamos sete recomendações.
A primeira sugestão dos consultores soa simples, mas acarreta em transformações importantes: incorporar a mentalidade de produtos implica em uma mudança de perspectiva em relação à visão tradicional de jornalismo.
Segundo Soffietto, pensar em termos de produto vai além de apenas criar algo novo. A tarefa consiste em entender o trabalho jornalístico como um serviço que deve atender a necessidades específicas de sua audiência.
“Introduzir a perspectiva de produto nas organizações, inclusive as mais pequenas e jovens, tem a ver com pensar que o que fazemos é um produto no sentido de que é um serviço que oferecemos a uma audiência e que tem que estar cumprindo uma necessidade”, afirmou Soffietto.
O desafio principal, segundo ela, não é fazer coisas novas, mas entender o que a audiência em particular realmente quer, e pelo que está disposta a pagar.
“Antes era assim: eu quero publicar esta informação porque acho que é relevante do meu ponto de vista. E muitas vezes isso não é o que as pessoas precisam", afirmou.
O primeiro passo concreto para preparar um produto, segundo Germán Frassa, consultor de jornalismo argentino que trabalha como diretor de produto no grupo espanhol Prensa Ibérica, além de atuar como coach e trainer em programas de produto na América Latina, é revisar o mercado para checar se existem estudos prévios no campo onde se quer atuar.
Segundo ele, sobretudo, em mercados grandes como Brasil, México, Colômbia e Argentina, costuma haver muita disponibilidade de relatórios feitos por consultorias, institutos de pesquisa e universidades, que podem servir como uma base de conhecimento.
“Isso seria o mínimo. Vou olhar qual é o conhecimento que outros geraram sobre isso”, afirmou Frassa à LJR.
Em seguida, há um segundo passo, que é identificar as lacunas para o seu projeto, uma vez que os estudos não foram feitos sob medida para o seu projeto.
“Então, analisando esses estudos, surgirão naturalmente dúvidas, coisas que esses estudos não respondem, e acredito que essas dúvidas deveriam fazer parte de um segundo passo de investigação por meio de pesquisas online", disse Frassa.
Realizar pesquisas quantitativas online para obter respostas segmentadas é uma etapa importante na compreensão das necessidades insatisfeitas e dos hábitos de consumo do público.
Essas pesquisas têm por objetivo entender como o produto a ser desenvolvido irá se adequar aos hábitos do público.
“A pesquisa pode ser uma consulta em redes sociais ou via Google Forms. O objetivo é entender como o seu produto vai se encaixar no dia a dia daquela pessoa. Ele vai se encaixar de manhã, na hora que a pessoa acordar, ou à tarde? É em formato de áudio ou vídeo?”, disse a consultora brasileira Luciana Cardoso à LJR.
Segundo Frassa, os custos destas pesquisas caíram muito.
“Com as plataformas sociais, é relativamente fácil lançar uma pesquisa online e distribuí-la por segmentos demográficos, segmentos geográficos, etc., e obter respostas segmentadas com bastante qualidade”, disse ele.
Uma vez tendo os dados estatísticos, há, segundo Frassa, um terceiro passo muito importante, que é entender, em termos qualitativos, qual é a necessidade daquele usuário
“Há muito valor em poder se sentar, mesmo que seja com um único usuário, para ,através de uma conversa não muito guiada, não muito controlada, entender quais são os hábitos desse usuário em relação à informação", disse Frassa.
O objetivo dessa conversa, segundo o consultor, não é perguntar se ele gosta do produto que estão desenvolvendo, nem tampouco questioná-lo sobre qual produto ele gostaria de ver desenvolvido, mas sim conversar com ele para entender como ele se relaciona com a informação.
“É quase como uma sessão de terapia, fazer com que o usuário fale para que nós, como detetives, possamos encontrar pequenas pérolas de conhecimento", afirmou ele.
Segundo Frassa, “isso é algo que se faz muito pouco, mas tem um valor imenso".
O passo seguinte é testar hipóteses por meio de um Produto Mínimo Viável (MVP, na sigla em inglês).
Em empreendedorismo, um MVP é a versão mais simples de um produto que pode ser lançada com uma quantidade mínima de esforço e desenvolvimento, evitando desperdício de tempo e recursos.
Esse conceito é crucial para entender a lógica de lançamento de produtos no mercado.
“O que precisamos fazer para criar um bom produto é não sair investindo grandes quantidades de dinheiro para criar um mega produto perfeito, mas sim começar com algo muito pequeno”, disse Soffietto.
Em seguida, testar a ideia de um modo econômico é crucial.
“Em vez de dizer 'vamos gastar todos os nossos recursos' – e por recursos, me refiro não só a dinheiro, mas também ao tempo que pode nos cansar e frustrar –, para que isso não aconteça, temos que simplesmente sair e testar se essa ideia funciona”, disse Soffietto.
Luciana Cardoso diz que, a partir do MVP, é necessário medir os resultados, analisando os dados de audiências.
“É preciso entender o está funcionando e o que que não tá funcionando, o que está sendo consumido e o que não está”, afirmou ela.
A medição de resultados é necessária para entender se o caminho correto está sendo seguido. Para isso, é importante ter metas e objetivos.
Cardoso diz gostar de uma metodologia de gestão de metas usada por organizações para definir e acompanhar objetivos e seus resultados: a chamada OKR, que significa “Objetivos e Resultados Chave” em inglês ("Objectives and Key Results").
“Você define um objetivo principal que quer atingir e estabelece os seus resultados chave. Você acompanha esses resultados, definindo, por exemplo, um objetivo com três resultados chave e monitorando semanalmente”, afirmou Cardoso.
Esse monitoramento permite saber se você está atingindo ou não esses objetivos.
“Desde o início, é importante ter claro qual é o objetivo, que é uma das grandes dificuldades. Ter um objetivo claro de onde quero chegar e não simplesmente dizer 'quero lançar um site'", disse Cardoso.
Nesse meio do caminho, enquanto se testa a viabilidade de um produto, é preciso buscar entender especificamente o que não está funcionando e como o produto pode ser relançado e melhorado.
À medida que se mede, é preciso constantemente ajustar e repetir as práticas após as mudanças, disse Soffietto. O termo usado por especialistas para esse expediente é iteração.
"Iterar é uma palavra que repetimos até o cansaço em produto. Antes, era muito difícil avaliar se um produto funcionava ou não porque havia menos informações. Agora, temos milhares de maneiras de saber se as coisas funcionam ou não e especificamente por que não funcionam”, afirmou Soffietto.
A consultora dá o exemplo de uma newsletter hipotética que não alcança a quantidade de seguidores ou assinantes esperava-se.
Em vez de desistir, se realmente se acredita que há um potencial ali, é importante tentar ver o que pode ser feito para engajar melhor a audiência.
”É um processo contínuo. Por isso, para mim, o crucial é sempre construir comunidade e estar em vínculo permanente, e entender como você pode melhorar o que já está fazendo”, disse.
Para quem quiser se aprofundar sobre o tema, sugerimos consultar recursos como como o site da ONG News Product Alliance, o canal no Slack da organização, o site do especialista Marty Cagan e o site do Membership Guide, disponível em português.