A palavra é nova, mas, como tudo na internet, se espalhou em pouco tempo. O crowdfunding, termo que pode ser traduzido literalmente como financiamento da multidão, está invadindo o Brasil. A explosão de sites desse tipo, a exemplo de Catarse, Multidão, Movere e Benfeitoria, demonstra a boa recepção da novidade em terras tupiniquins.
Um projeto chamou a atenção pela ousadia e pela proporção, além de inaugurar no país o crowdfunding em trabalhos jornalísticos. Criado pela jornalista Natália Garcia, o Cidades para Pessoas conseguiu R$25 mil por meio de colaborações de interessados em financiar uma viagem ao redor do mundo para trazer ao Brasil pistas sobre como tornar uma cidade mais habitável.
O Centro Knight para Jornalismo nas Américas conversou com Garcia, 27 anos, que largou seu emprego na redação da Editora Abril, a maior do mercado de revistas nacionais, para correr atrás do que acredita ser a prática do verdadeiro jornalismo: profundidade, iniciativa e empreendedorismo.
Centro Knight: Como nasceu o projeto Cidade para Pessoas?
Natália Garcia: A ideia surgiu quando eu comecei a andar de bicicleta. Eu deixei de ter com a cidade uma relação de proteção dentro do meu carro e comecei a ocupá-la. Então o assunto do planejamento urbano se tornou uma coisa muito importante na minha vida pessoal e eu fui levando minha vida profissional pra esse lado. Eu tinha um emprego na Editora Abril, pedi demissão pra ser freelancer e escrever sobre o assunto. No ano passado, fazendo reportagens pra um outro projeto chamado “Isso não é normal”, eu conheci o trabalho do Jan Gehl, planejador urbano dinamarquês que inspirou o Cidade para Pessoas. Ele que cunhou essa expressão e é o único no mundo especializado em melhorar as cidades para seus habitantes. Então eu tive a ideia de visitar as cidades em que o Jan havia atuado como planejador ou consultor. Ele serviu como critério para a minha seleção.
CK: E a ideia de viabilizar o projeto por crowdfunding?
NG: A ideia original era viabilizar o projeto do jeito tradicional, vender o projeto pra um grande veículo jornalístico e, com a venda de anúncios, viabilizar a viagem. Eu cheguei a começar essa negociação com um jornal de São Paulo, mas grandes veículos têm planejamentos orçamentários e problemas burocráticos, então estava demorando muito pra isso acontecer. Em novembro do ano passado, a revista Galileu me convidou pra escrever uma reportagem sobre crowdfunding. Quando fui chamada, não sabia nem o que era isso. Eu topei e, na apuração, conheci os meninos do Catarse [pioneiro no Brasil], quando o site ainda nem existia. Eu os entrevistei e aproveitei pra falar do meu projeto. Eles adoraram e a gente decidiu que o Cidade para Pessoas seria lançado junto com o Catarse. Isso foi em fevereiro de 2011. Até então eu não sabia se conseguiria viajar, tinha apenas a ideologia na cabeça e grana nenhuma na mão.
CK: A que você atribui a colaboração que financiou o trabalho?
NG: O que eu sinto é que muitos dos que apoiaram querem fazer suas cidades melhorarem, mas não sabem como. Querem descobrir como isso é possível. E ai, ao invés de comprar um jornalzão todo dia, preferem apostar num projeto jornalístico que dialogue com os problemas que são importantes para eles, que os atingem. Todo mundo sofre com trânsito, com poluição. Eu quero, com esse projeto, pelo menos dar uma luz a esses problemas.
CK: E como é a execução do projeto?
NG: Em abril, antes de começar as viagens internacionais, eu fui pra Curitiba fazer um piloto do que eu faria em cada cidade. A ideia é ficar um mês fazendo apuração, entrevistando gente da academia, dos movimentos de engajamento cívico, que anda de bicicleta, planejadores urbanos, pessoas ligadas a planejamentos na prefeitura. Os produtos são vídeos e textos. Tudo que for produzido será publicado no site Cidade para Pessoas.
CK: Qual a periodicidade de publicação?
NG: Eu ainda estou aprendendo qual é a periodicidade (risos). Toda semana tem algo novo, isso com certeza. Estou viajando, produzindo e editando sozinha, então o que deve acontecer é mais ou menos o processo de Curitiba. Primeiro, eu tento fazer o maior número de entrevistas e apurar o maior número de coisas possível. Quando eu chego na metade, começo a entender o que é matéria, o que tem relação com o quê, o que falta. E a partir daí eu descubro quantas matérias vão ser e quais os seus formatos. Depois começa o fechamento. Sobre Copenhague, eu acabei de lançar o vídeo teaser, tenho dois vídeos já prontos e a minha ideia é todo dia fechar uma matéria (serão 16). Então, a partir de agora, pelo menos uma matéria a cada dois dias vai ser publicada.
CK: Como é feita a distribuição do material produzido?
NG: Isso é importante. Todo material produzido pelo Cidade para Pessoas é licenciado em creative commons. O que significa que ele pode ser livremente replicado ou usado em obras derivadas, desde que sem fins comerciais. Eu quero mais é que as informações sejam espalhadas, então qualquer pessoa que queira a versão bruta de alguma entrevista pode entrar em contato comigo que eu disponibilizo. Como quase 300 pessoas pagaram para eu estar aqui, o mais justo é que as informações sejam livres. É isso que eu penso ser a grande quebra de paradigma no jornalismo. Não é só conseguir viabilizar projetos independentes, mas fazer com que a informação seja livre.
CK: Então você não pretende publicar o material em um veículo da grande mídia?
NG: Sim, mas também de um jeito fora da curva. Eu fiz um acordo com o siteUOL e algumas das matérias que eu publicar no site Cidade para Pessoas vão ser publicadas em um canal especial do portal. Mesmo sendo publicadas lá, elas continuam com o selo creative commons e o acordo é basicamente conteúdo por audiência. Só com o meu site, dificilmente eu atingiria um público de massa, então todo o esforço coletivo de produzir as informações pra melhorar as cidades seria em vão. Esse acordo foi a melhor forma que eu encontrei de não ferir o propósito de que a informação seja livre e de garantir que o projeto tenha audiência.
CK: Você chegou a pesquisar outros projetos jornalísticos viabilizados colaborativamente?
NG: Eu cheguei a pesquisar pra matéria da Galileu e descobri o Spot.us. Lá o que acontece é que jornalistas do mundo todo fazem uploads de reportagens especiais, muitos deles em multimídia, e viabilizam só aquela matéria. Geralmente é assim que acontece. Mas ainda não vi nada tão grande quanto o Cidade para Pessoas, projeto de um ano de viagem.
CK: Como pioneira no Brasil, você acredita que o crowdfunding de projetos jornalísticos vai ganhar força por aqui?
NG: Eu acredito que isso pode virar uma tendência. E pode ser uma porta aberta pra jornalistas que são empreendedores, mas não têm muito espaço pra empreender por falta de grana, por exemplo. Eu acho que o jornalismo padece de um mal. A grande maioria dos meus colegas de faculdade abandonou a profissão. Rola uma certa falta de iniciativa, de um modo geral. Os jornalistas se acomodam em uma redação hardnews ou cansam de ser repórteres, de tentar ir mais a fundo, de buscar se especializar em algum assunto, estudar. Falta tônus na profissão. Por outro lado, eu vejo vários jornalistas que são empreendedores, que pensam em projetos especiais, mas que não conseguem viabilizar. O crowdfunding é um jeito de fazer isso mudar e pode ajudar a, pelo menos, pensar fora da caixinha.
Nota do editor: Essa história foi publicada originalmente no blog de jornalismo nas Américas do Centro Knight, o predecessor do LatAm Journalism Review.