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Dupla de jornalistas apresenta a mais completa investigação já feita sobre o abuso sexual na Igreja Católica do Brasil

Apesar de abrigar mais católicos do que todos os outros países do mundo, o Brasil pouco sabe dos crimes cometidos por seu clero. Enquanto outros países, como Estados Unidos, Portugal, Argentina e Chile, já tiveram grandes escândalos midiáticos relacionados a abusos sexuais cometidos por padres, que aumentaram a atenção pública sobre todos os seus sacerdotes, no Brasil, as denúncias que envolvem a Igreja Católica permaneceram isoladas, sem nenhum esforço sistemático de síntese.

Essa lacuna começa a ser preenchida neste mês com o lançamento do livro “Pedofilia na Igreja: Um dossiê inédito sobre casos de abusos envolvendo padres católicos no Brasil” (ed. Máquina de Livros), de autoria dos jornalistas Fábio Gusmão e Giampaolo Morgado Braga. A investigação, que demorou mais de três anos para ser concluída, apresenta pela primeira vez um panorama dos casos de abusos sexuais cometidos por padres contra crianças e adolescentes no Brasil que chegaram à Justiça, e promete ser um passo fundamental para descortinar a profundidade real do problema.

A investigação revela que, no século XXI, ao menos 108 membros do clero brasileiro foram acusados, indiciados, denunciados, condenados ou se tornaram réus por envolvimento em abuso sexual de 148 crianças, adolescentes ou pessoas com deficiência intelectual. O livro apresenta todos os casos identificados, e discute em detalhes – por vezes, muito perturbadores – cerca de 20 deles. Além disso, a obra analisa como as denúncias costumam ser conduzidas pela Igreja e pela Justiça, aborda ações adotadas pelo Papa Francisco para enfrentar o problema e apresenta experiências internacionais de combate à pedofilia na Igreja.

Embora a investigação vá mais longe do que qualquer outra pessoa já foi para tornar público o tema do abuso sexual na Igreja Católica no Brasil, os autores, que são especializados na cobertura de segurança pública e trabalham juntos há quase 20 anos no jornal O Globo, no Rio de Janeiro, não têm ilusões de que as práticas abusivas devem ser na verdade muito mais disseminadas do que conseguiram descobrir. 

Dois homens olham para a câmera dentro da redação de um jornal

Os jornalistas Fábio Gusmão e GIampaolo Morgado Braga, autores do livro, na redação de O Globo, onde trabalham juntos há quase 20 anos (Foto: Divulgação)

 

Como a dupla se restringiu a casos nos quais houve processos judiciais, suspeitas não judicializadas não foram consideradas. Além disso, o próprio acesso às informações às ações judiciais é restrito, pois causas que envolvem menores estão sob segredo de Justiça.

No prefácio do livro, a americana Anne Barrett Doyle, codiretora da organização BishopAccountability.org, sediada em Boston, afirma que “é razoável supor que centenas e provavelmente milhares de molestadores de crianças no sacerdócio brasileiro permaneçam não identificados para o público”. A esperança dos autores é que, com a visibilidade do assunto, a sociedade promova uma discussão mais ampla sobre o tema, e outras vítimas se manifestem em busca de Justiça e do fim dos abusos.

“Há muitos mais casos, tanto de outras vítimas dos mesmos padres que citamos, como vítimas de outros padres, em casos que nunca foram divulgados pela imprensa. Desde o lançamento, já começaram a surgir informações de casos de outros padres, inclusive casos que nunca chegaram nem à polícia, nem à Justiça”, afirmou Morgado Braga à LatAm Journalism Review (LJR). “Isso que encontramos é apenas a ponta do iceberg”.

Justiça secreta

Os casos investigados foram descobertos por meio de uma pesquisa em mais de 25 mil páginas de documentos, incluindo processos em tribunais estaduais, federais, cortes superiores, inquéritos policiais, reportagens de imprensa e bases de dados estrangeiras. A lista inicial de denunciados tinha 160 nomes, mas os padres cujos casos já prescreveram não foram abordados. Os jornalistas também conduziram dezenas de entrevistas com vítimas e parentes, padres acusados ou condenados, membros da Igreja, promotores, advogados e policiais, entre outros.

O principal obstáculo que a dupla encontrou para levantar os casos foi o segredo de Justiça com que correm os processos. Por as vítimas serem menores de idade, não há divulgação dos casos, o que torna a pesquisa muito mais árdua. Essa dificuldade foi contornada a partir de pequenas pistas, como por exemplo documentos públicos que continham iniciais de acusados, ou então o nome de advogados, permitiam ir juntando evidências e montando um quebra-cabeças.    

“Às vezes, chegamos nos casos por falhas do sistema de cadastro, como por exemplo um cartório que registrou o processo errado e o deixou público, ou então instâncias superiores, como o Superior Tribunal de Justiça, que por engano não deixaram os documentos em segredo. Foi um trabalho brutal de paciência”, disse Gusmão à LJR. “Também tivemos um insight em relação a indenizações. Como essas são acusações civis, não há segredo de Justiça. Descobrimos vários processos a partir de pedidos de indenização”.

A dupla tem críticas em relação ao modo secreto com que os processos que correm: ao mesmo tempo em que eles protegem as vítimas – o que consideram fundamental –, acabam também por acobertar possíveis abusadores.

“Quando você protege a criança, o que é absolutamente necessário, você acaba por proteger também o abusador. Você esconde o abusador, impedindo que outras vítimas desse abusador apareçam e digam que também foram abusadas”, disse Morgado Braga.

Uma cura possível

A pesquisa do livro começou logo no início da pandemia de coronavírus, de modo que a maioria das entrevistas precisou acontecer a distância. A maioria das vítimas preferiu esconder a própria identidade e aparecem no livro com pseudônimos, embora haja também entrevistados que decidiram dar entrevistas com seus nomes reais, como parte de um processo de cura.

A capa do livro “Pedofilia na Igreja: Um dossiê inédito sobre casos de abusos envolvendo padres católicos no Brasil”, da editora Máquina de Livros

“A primeira dificuldade que tivemos era achar a vítima. Depois convencer a vítima da importância de falar sobre o assunto. É uma situação muito complicada, porque há muitas camadas de vergonha. Há a vergonha do crime sexual em si, a vergonha de ter confiado no padre, de ter passado por um abuso de confiança, ou então de pais que deixaram que isso acontecesse com seus filhos”, disse Morgado Braga.

Um jovem hoje com 29 anos abusado quando tinha 11 no Distrito Federal foi um dos poucos que quis dar entrevista. Ele disse aos autores que fez isso para servir de exemplo para fortalecer outras vítimas. 

“Ele nos disse que não conseguiu ler a própria história no livro até o fim , porque revive tudo o que passou. Ao mesmo tempo, entende que mostrar para as pessoas como conseguiu se reconstruir vai fazer com que outros se sintam fortes para também a resgatar a própria vida”, afirmou Gusmão. “Porque ele foi ao inferno, mas há uma reconstrução. Ele consegue se reerguer e encontrar um amor”.

Acobertamento da Igreja

O perfil das vítimas é o mesmo que foi registrado em outros lugares do mundo. A frequência é maior em cidades pequenas, embora haja também casos em São Paulo, maior município do país. As vítimas são em sua maioria de classes sociais desfavorecidas e do sexo masculino, em uma proporção de dois para um em relação a meninas. As idades dos alvos variaram de 3 a 17 anos.

Assim como verificado na mais famosa investigação jornalística mundial sobre a pedofilia na Igreja Católica – a publicada pelo jornal The Boston Globe em 2003 cuja produção depois foi adaptada no filme “Spotlight”, de 2015 –, os autores verificaram casos de acobertamento pela cúpula da Igreja, que, em vez de levar os casos à Justiça criminal, transferiram padres de paróquias.

Um dos casos dos padres transferidos é o do padre Tarcísio Tadeu, o primeiro descrito detalhadamente no livro, cuja crueldade é nauseante. Frei Tarcísio elaborou um manual com métodos para abusar de crianças, incluindo técnicas de abordagem, alvos preferenciais e estratégias para disfarçar os crimes. Outro padre acobertado é Paulo Back, contra quem pesavam incontáveis denúncias e suspeitas ao longo de décadas.

As condenações a padres tiveram tempo médio de 12,4 anos de reclusão, mas mesmo assim foram raros os casos de prisão, e a maioria dos culpados deixou a cadeia antes de completar o tempo da pena. Somados, os pedidos de indenização chegaram a R$ 150 milhões, mas, até 2022, o montante de fato pago totalizava menos de R$ 1 milhão.

Embora por vezes tenha ajudado os abusadores a escapar, a estratégia de defesa legal da Igreja costuma ser negar que tenha responsabilidade sobre os crimes, atribuindo-os somente aos padres.

“Na maior parte das vezes, a Igreja tenta se desvincular dos casos. Ela diz que não tem ascendência sobre o padre, e não poderia responder pelo que ele fez. Quase sempre a linha de defesa vai por esse caminho. Muitas vezes, a Igreja perde e acaba tendo que pagar indenização, mas em alguns casos conseguiram se desvincular”, disse Gusmão.

No final do livro, os autores discutem as iniciativas tomadas pelo Papa Francisco para combater a pedofilia no clero. Além de ouvirem especialistas dentro e fora do Brasil, Gusmão e Morgado Braga também conversaram com pessoas que tentam combater as práticas abusivas de dentro da Igreja. 

No Brasil, há menos iniciativas para combater a pedofilia do que fora do país – a Arquidiocese de Boston, por exemplo, expõe ativamente quem são padres abusadores –, mas mesmo assim há pessoas empenhadas nesta causa, como padres solitários e o grupo Lux Mundi, voltado para prevenir a violência no ambiente eclesial. 

Os autores demonstram certa simpatia por Francisco, mas também ceticismo quanto à possibilidade de mudanças radicais no futuro próximo. 

“Desde o início do papado, Francisco assumiu a questão da pedofilia dentro da Igreja como um tema central. Ele resolveu mudar a legislação canônica, em uma tentativa de mudar a postura da Igreja”, afirmou Gusmão. ”Só que sabemos que essa cultura é uma das coisas mais difíceis do mundo de mudar. Uma decisão que se toma no Vaticano não necessariamente chega numa pequena diocese no interior do país. A Igreja é muito grande e capilarizada, e notamos resistência por parte de bispos que estão mais baixo na hierarquia”.

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