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‘Em momentos difíceis, a esperança é o que nos fortalece’: 5 perguntas para Claudia Ferraz, da Rede Wayuri de Comunicação Indígena da Amazônia

Há quase seis anos, comunicadores indígenas espalhados pela região do Alto Rio Negro, na fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela, trabalham juntos para informar seus parentes – termo que, entre indígenas, não significa parentesco de sangue, mas sim o reconhecimento de uma irmandade para além da diversidade de etnias, culturas e modos de viver.

Rede Wayuri de Comunicação Indígena da Amazônia surgiu em novembro de 2017 para cobrir as necessidades informacionais dos 23 povos indígenas nas 750 comunidades na região de São Gabriel da Cachoeira, município localizado no extremo noroeste do Brasil, no estado do Amazonas. A cidade é conhecida como “a mais indígena do Brasil”, pois 90% de sua população é indígena e, além do português, tem mais quatro línguas oficiais: baniwa, nheengatu, tukano e yanomami, que são apenas alguns dos muitos idiomas falados pelos habitantes do município.

Na Rede Wayuri, comunicadores indígenas voluntários atuam como correspondentes desde suas comunidades de origem, e também como locutores e editores em um boletim de áudio mensal, o Boletim Wayuri. O boletim é distribuído por aplicativos de mensagens, compartilhado entre celulares por bluetooth e transmitido por radiofonia, em uma área onde o acesso à internet é escasso e instável. Também está disponível em plataformas online. Por conta da diversidade linguística da região, o boletim é produzido em português e nas línguas indígenas de seus correspondentes.

woman wearing a blue shirt looking on and smilingO trabalho de comunicação da Rede Wayuri também acontece online por meio de redes sociais e presencialmente em eventos e reuniões nas comunidades indígenas, além de intercâmbio com outras redes de comunicação comunitária e com indígenas de outras regiões do país. A rede conta com a assessoria do Instituto Socioambiental (ISA) e faz parte do Programa de Apoio ao Jornalismo (PAJOR) da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF).

Nos últimos dois anos, o trabalho da Rede Wayuri foi reconhecido internacionalmente em pelo menos duas ocasiões. Em junho de 2020, a RSF incluiu a rede em uma lista global de “heróis da informação sobre o coronavírus”, que celebrou o trabalho de 30 meios e profissionais que “enfrentaram o desafio” de informar a população sobre a pandemia de COVID-19. Já em maio de 2022, a Rede Wayuri recebeu o prêmio Rule of Law 2022 do World Justice Project (WJP), organização dedicada a promover o estado de direito em todo o mundo. O WJP reconheceu a rede “por suas extraordinárias realizações no combate à desinformação sobre a COVID-19 e às ameaças ambientais existenciais na região mais preservada, mas cada vez mais ameaçada, da Amazônia brasileira”.

Claudia Ferraz, do povo Wanano, é uma das comunicadoras da rede. Além de locutora e editora dos boletins mensais, ela também é uma das apresentadoras do Papo de Maloca, programa semanal transmitido ao vivo pela rádio FM O Dia, de São Gabriel da Cachoeira, e que também é disponibilizado online nos canais de áudio da Rede Wayuri. Segundo ela, a rede, que começou com 17 comunicadores, conta hoje com mais de 80 pessoas espalhadas pela região.

Ela falou com a LatAm Journalism Review (LJR) sobre o trabalho da Rede Wayuri e os aprendizados reunidos ao longo de seus seis anos de existência. A palavra wayuri, do idioma nheengatu, significa “trabalho coletivo”, “mutirão”. E é essa a chave da comunicação realizada pela rede, explicou Ferraz.

 “Em momentos difíceis, a esperança é o que nos mantém, nos fortalece. Pensamos nas famílias, nos idosos, nas crianças. Pensamos no coletivo, no bem da população, dos nossos povos”, disse ela.

Leia abaixo a entrevista, que foi editada para efeitos de clareza e concisão.

1. Desde 2017, ano de fundação da Rede Wayuri, o Brasil passou por duas eleições presidenciais marcadas pela propagação de mentiras com fins políticos, quatro anos de governo Jair Bolsonaro, abertamente hostil aos povos indígenas, e uma emergência sanitária sem precedentes, com a pandemia de COVID-19. Nesse contexto, como vocês veem o papel da comunicação e do jornalismo produzidos por comunicadores indígenas nas lutas por direitos e território e na defesa da Floresta Amazônica?

Claudia Ferraz: Durante esse período, vimos que a comunicação tem um papel fundamental, muito importante, de levar as informações para a população em diversas áreas. Nessa época [do governo Bolsonaro] era mais relacionada à questão de vários ataques [contra os indígenas] e várias informações falsas.

A produção em si da Rede Wayuri, com todos os comunicadores, também foi muito importante, porque tínhamos essa missão de levar essas informações para as comunidades mais distantes, que não têm acesso a meios; não têm rádio, TV, telefone. Simplesmente, muitas vezes, só têm a radiofonia.

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Claudia Ferraz com outros comunicadores da Rede Wayuri. Foto: Divulgação

Então nós, da Rede Wayuri, tínhamos essa missão de levar essas informações até eles, seja através de radiofonia ou através dos nossos comunicadores que ficam nessas comunidades, levando informações através do nosso podcast, que é um boletim de áudio, e o Wayuri, que é um boletim informativo [impresso].

Assim fomos levando essas informações até eles, orientando, alertando, esclarecendo sobre várias questões que estavam acontecendo durante esse período. Então vimos que foi muito importante fazer esse trabalho e conversar com os parentes, poder dialogar com eles, e tirar dúvidas deles também.

2. Vocês foram considerados “Heróis da Informação” pela Repórteres Sem Fronteiras pelo trabalho desenvolvido durante a pandemia da COVID-19 em 2020. Que aprendizados ficaram dessa experiência de comunicação durante os momentos mais difíceis da emergência sanitária?

O aprendizado que tivemos durante esse período foi de que um bom trabalho, feito coletivamente, com as pessoas, parcerias, apoiadores, colaboradores, isso faz o trabalho fluir. O aprendizado é que o trabalho assim, em conjunto, dá muito certo. Quando tem essa união, de todo mundo junto lutando por uma causa só, por um objetivo só, dá muito certo. Em momentos difíceis, a esperança é o que nos mantém, nos fortalece. Pensamos nas famílias, nos idosos, nas crianças. Pensamos no coletivo, no bem da população, dos nossos povos.

El auto con sonido de la Rede Wayuri, en São Gabriel da Cachoeira, lleva información sobre COVID-19. (Foto: Cortesía ISA).

Carro de som da Rede Wayuri circulando por São Gabriel da Cachoeira em 2020, transmitindo informações sobre a COVID-19. Foto: Arquivo/ISA

Foi um momento de muita união entre todas as organizações para orientar, alertar, levar as informações, não parar com os trabalhos, estar ali na linha de frente junto com os profissionais de saúde. Cada um se apoiando no outro e fortalecendo o trabalho, para não desistir. Foi um grande aprendizado de coragem, persistência, esperança e de que um trabalho feito coletivamente dá muito certo.

Foi um período muito intenso, mas muito gratificante. Hoje em dia a gente relembra com muita felicidade e gratidão por todas as pessoas que estiveram naquele momento conosco, que não desistiram, que estiveram de alguma forma também nos ajudando e nos orientando, mesmo à distância, para que nos mantivéssemos firme no trabalho naquele período.

3. Vocês também receberam o Prêmio Rule of Law 2022, do World Justice Project (WJP), pelo combate à desinformação na Amazônia brasileira. Como a desinformação tem afetado os povos indígenas atendidos pela Rede Wayuri?

Trabalhamos muito nessa questão de levar as informações verdadeiras, concretas, para os nossos parentes nas comunidades, através dos nossos comunicadores da Rede Wayuri, que estão espalhados pela região do rio Negro, que é imensa.

A Rede Wayuri é vinculada à Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro e a Federação tem a sua abrangência em três municípios: Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira.

Atuamos através dos nossos comunicadores que estão nesses três municípios, para levar informações verdadeiras para os nossos parentes, tirando dúvidas, alertando, orientando, porque às vezes acaba chegando nos territórios das comunidades, através de WhatsApp, alguma informação que não é verdadeira, como no caso da vacina contra a COVID-19: disseram que a vacina iria fazer mal, que a vacina iria trazer mais doenças, que quem tomasse a vacina iria virar jacaré… Eles acabam tendo dúvidas, e às vezes perguntam se é verdade ou não.

Fazemos esse trabalho com eles, levando informações verdadeiras, concretas, alertando também no território sobre os perigos e os riscos [da desinformação]. Seguimos fazendo esse trabalho de combate à desinformação que muitas vezes circula nos nossos territórios.

4. O atual governo Luiz Inácio Lula da Silva reaproximou o Estado brasileiro das demandas dos povos indígenas, criando o Ministério dos Povos Indígenas e nomeando pessoas indígenas em cargos-chave como a presidência da Funai e a Secretaria de Saúde Indígena. Como essa mudança na postura do governo federal impacta o trabalho da Rede Wayuri?

Ficamos muito felizes de ver as nossas próprias lideranças indígenas sendo nomeadas, estando nesses espaços, para lutar cada vez mais pelos direitos dos nossos povos.

E de alguma forma isso também facilita a nossa comunicação entre as organizações e instituições [estatais] para ter diálogo, troca de informação e comunicação, para que possamos levar também para os nossos parentes, tanto no nosso programa de rádio Papo da Maloca, como também para o nosso boletim informativo Wayuri, tendo a participação dos coordenadores em entrevistas, para levar essas informações para o território através dos nossos comunicadores.

Então ficamos muito felizes com essas nomeações, com a abertura que o novo governo está dando para os povos indígenas a nível nacional. E estamos com uma expectativa muito grande de trabalhar em parceria com essas organizações e instituições para levar informações para os nossos parentes, para as comunidades.

5. Quais são os principais desafios enfrentados pela Rede Wayuri neste momento e que tipo de apoio vocês consideram que a sociedade civil e o Estado brasileiro podem dar para que vocês sigam fazendo seu trabalho?

Os desafios são grandes. Como atuamos em um território imenso, do tamanho de um país, trabalhar com os nossos comunicadores não é fácil. Muitos comunicadores estão cada vez mais querendo entrar para a rede, que começou com 17 comunicadores em 2017 e hoje tem quase 80 pessoas que se interessam por essa comunicação e que estão espalhadas pela nossa região.

Duas pessoas transmitem audio por equipamento de rádio

Claudia Ferraz, durante a transmissão do boletim da Rede Wayuri, por comunicação de rádio. Foto: Arquivo Pessoal

O desafio grande é a questão da conectividade. Muitas comunidades ainda não têm sinal de internet, então fica difícil se comunicar com as pessoas. O meio de comunicação mais potente que a gente tem por aqui é a radiofonia, que é utilizada bastante pelos nossos parentes para trocar informações nas comunidades, porque esse é o único meio de comunicação por meio do qual conseguimos nos comunicar com nossos parentes nessas comunidades mais distantes.

A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro está instalando alguns pontos de internet em algumas comunidades, o que também já facilita um pouco, já ajuda a nos comunicar com nossos parentes. A Federação vem lutando por isso, para que as comunidades estejam conectadas.

Também tem a questão da logística. Nossas estradas, aqui, são os rios, e enfrentamos esses rios e cachoeiras e vários desafios. Mas não deixamos de fazer nosso trabalho como comunicadores indígenas da nossa região.

O que esperamos é que os trabalhos da Rede Wayuri avancem cada vez mais, e para que isso aconteça precisamos de apoio, de financiamento, para que possamos comprar equipamentos, materiais de comunicação para nossos comunicadores. Porque precisamos dar um suporte a eles também.

Anualmente, temos um encontrão geral dos comunicadores indígenas, que acontece aqui na sede em São Gabriel da Cachoeira, onde eles passam por uma formação, uma capacitação. Quando conseguimos apoio de alguma organização que financia a oficina, conseguimos comprar alguns equipamentos para oferecer para os nossos comunicadores. Mas sabemos que a demanda está crescendo. Muitos comunicadores estão começando a querer participar e entrar na rede. Precisamos realmente de materiais de comunicação para trabalhar de uma maneira melhor com os nossos comunicadores.

Participamos de editais, inscrevemos projetos, para que possamos adquirir mais materiais, formação e capacitação para os nossos comunicadores indígenas. Então ter apoio, financiamento, ajuda de organizações fortalece muito o nosso trabalho de comunicação indígena aqui no Rio Negro.

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